domingo, 9 de dezembro de 2007

Ter ou não ter pai - Traudl Junge

Traudl Junge falando no documentário rodado em 2001

No final de A Queda, podemos ver a verdadeira Traudl Junge numa breve declaração sobre o peso traumático das memórias do seu passado como secretária de Adolf Hitler. São imagens que pertencem ao filme Im Toten Winkel - Hitlers Sekretärin (2002), de André Heller e Othmar Schmiderer. Im Toten Winkel (à letra "O Ângulo Morto") é um impressionante testemunho de alguém que, desde o Outono de 1942 até à derrocada do regime nazi, partilhou o dia-a-dia de Hitler, permanecendo ao seu serviço inclusive no período final, no bunker de Berlim. Foi à própria Traudl Junge que Hitler ditou o seu testamento, a 28 de Abril de 1945, dois dias antes de se suicidar.

Recentemente apresentado em Lisboa, pelo Instituto Alemão, Im Toten Winkel é um exemplo extremo e fascinante desse modelo raro, difícil de definir, que é o "filme-entrevista". Se há um paralelo que faz sentido invocar, por razões simultaneamente temáticas e formais, é o filme de Hans-Jürgen Syberberg, Winifred Wagner (1975) trata-se também de uma entrevista a solo, neste caso centrada na figura de Winifred Wagner, mulher de Siegfried Wagner (filho de Richard Wagner), que fala do seu trabalho no Festival de Bayreuth, de 1930 até ao final da guerra, e consequentemente do seu envolvimento com Hitler e o nazismo.

Para além das muitas diferenças das duas personalidades (e dos dois filmes), por ambos perpassa uma mesma pulsão a de arrancar o passado ao silêncio, ao medo e ao insidioso labor da culpa. Mais do que isso: de o fazer através do poder catártico da palavra. O discurso de Traudl Junge corresponde a uma necessidade longamente acumulada, já que, na prática, estava a quebrar um silêncio de 56 anos (a rodagem é da Primavera de 2001, tendo ela falecido em Fevereiro de 2002).

Recusando qualquer "ilustração" de tipo televisivo, o filme concentra-se na sua entrevistada, desse modo sublinhando dois vectores fundamentais do discurso de Traudl Junge por um lado, a dificuldade imensa de aceitar o perdão para si própria; por outro lado, o não recalcamento da sedução que a figura do líder nazi sobre ela exerceu.

Aliás, ela vai mais longe e admite que, no momento (aos 22 anos) em que começou a trabalhar para Hitler, o Führer funcionou como o pai que sempre desejou ter. Repare-se não é uma "psicanálise" sumária, porventura cómoda. Ao definir Hitler como figura paterna, Traudl Junge não evoca uma relação fechada ("pai/filha"), mas sim o facto de ele ter sido essa referência dominadora capaz de gerar um fortíssimo efeito colectivo.

Claro que seria gratuito e demagógico tentar reduzir o horror nazi a um mero fenómeno de fixação psíquica na figura "paternal" que ocupou o seu centro. Em todo o caso, testemunhos como o de Traudl Junge podem ajudar a superar a visão que tende a excluir do espaço humano as manifestações do Mal mais difícil é reconhecer a proximidade, para não dizer a intimidade, dos gestos malignos. Nessa perspectiva, Im Toten Winkel é um complemento precioso às propostas de A Queda e à sua viagem ao coração de um sistema totalitário.

João Lopes
Fonte: Diário de Notícias(Portugal)
http://dn.sapo.pt/2005/04/21/artes/traudl_junge_ou_ter_pai.html
Mais informações:
Traudl Junge, "Until The Final Hour: Hitler's Last Secretary"
book essay by Ashley Kenike Tacub, March 15, 2006
http://www.history.ucsb.edu/faculty/marcuse/classes/133c/133cproj/06proj/TraudlJungeATacub063.htm

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