domingo, 16 de novembro de 2008

Theresienstadt

O Lager(Campo de Concentração)do horror encoberto

O campo de Terezin, que não escondia menos horrores que os outros, era apresentado ao mundo como uma comunidade judia autoadministrada. Os motivos desta fachada e da liberação de 1200 prisioneiros, na autobiografia de Fritzi Spitzer.

(Foto)Entre os prisioneros havia músicos e artistas de grande fama.
Desenho de Federica Spitzer.

Na grande literatura sobre o genocídio judeu, as memórias autobiográficas representam em conjunto uma modesta porcentagem. Muitos não tiveram a coragem de pôr por escrito suas recordações. Outros devem ter pensado que todo livro de memórias se transforma em literatura, e corre, portanto, o risco de ofender aos mortos, diminuindo ou apequenando a trágica enormidade do fato. Finalmente alguns que observam os preceitos religiososo sustentam que o mal é necessariamente inenarrável. Não basta. Para recordar o horror faz-se a condição de conseguir se impedir que desapareça a memória, protegê-la com uma sorte de couraça e assumir, frente a certos acontecimentos, uma atitude não só de distanciada imperturbabilidade, senão inclusive de ironia. Só assim as recordações assumem a credibilidade de um documento histórico.

Federica Spitzer, autora de um livro breve lançado em Berlim em 1997 e mais recentemente na editorial Dadò de Locarno (Anos perdidos. Do Lager à liberdade) se encontra entre aqueles que melhor tiveram êxito em contar a própria tragédia com o menor número possível de lágrimas e invectivas. Devemos lhe ser duas vezes agradecidos: pela extraordinária qualidade do livro e pela importância de um testemunho histórico que permite compreender melhor alguns dos aspectos menos conhecidos do genocídio judeu.

O primeiro deles é o campo de Terezin ou Theresienstadt, uma pequena cidade fortificada a 50 km de Praga, edificada em 1780 por José II e chamada assim em memória de sua mãe, Maria Teresa. Fritzi Spitzer foi recolhida ali com seus pais durante dois anos e meio, até início de fevereiro de 1945. Quando desde Viena chegou ali, no verão de 1942, fazia um ano que a fortaleza era campo de concentração. Mas não foi um campo como os outros.

Por razões muito discutidas mas até agora não totalmente aclaradas, o regime nazi decidiu fazer dele, aos olhos do mundo, uma “comunidade judia autoadministrada”. Theresienstadt teve um local de vendas, uma moeda, um serviço postal, um cabaré, uma orquestra, um hospital, uma padaria, uma grande manufatura artesanal, um conselho judeu presidido por Jacob Edelstein, uma espécie de centro cultural no que alguns rabinos traduziam e comentavam o Talmud; e até foi reacondicionado e pintado na ocasião de uma visita dos inspectores da Cruz Vermelha em janeiro de 1944. Por trás desta atraente fachada os prisioneros viviam em condições humilhantes, trabalhavam como escravos, sobreviviam com 800 calorias ao dia, eram duramente castigados pelas SS pela mínima transgressão, morriam de Tifo exantemático e finalmente eram enviados aos fornos crematórios de Auschwitz ou Treblinka.

Mas a ficção deixou aos internados pequenas margens de liberdade que haviam sido impossíveis em outros campos de concentração, e permitiu a Fritzi Spitzer exercitar o engenho, a fantasia e a iniciativa de que era dotada. Os pequenos furtos, o tráfego cotidiano, as astúcias e as aventuras picarescas da protagonista são outras tantas revanches da natureza humana contra a vida inumana do Lager.

Falta compreender porque o regime nazi havia montado uma ficção tão colossal. Para enganar, com uma operação de propaganda, a opinião pública mundial? Para “hospedar” as figuras principais da comunidade judia e os intelectuais que gozavam de notoriedade internacional? Para satisfazer àquele setor do regime que buscava talvez mitigar o furor persecutório de Hitler? Para dispôr de um bom número de reféns para trocar num momento oportuno?

O livro não responde a esta pergunta, mas a aventura de Fritz Spitzer sugere algumas hipóteses. Em 2 de fevereiro Fritzi supôs que 1200 prisioneiros partiriam à Suíça nos dias seguintes e compreendeu que poderia fazer parte do grupo com seu pai e sua mãe. Temeu que o comboio, como os que o haviam precedido, estivesse destinado a um campo de extermínio e duvidou. Mas apenas consultou aos pais e tomou uma decisão, lançou-se de cabeça à jornada e conseguiu se inscrever com eles na lista dos escolhidos. A partir desse momento começou um dos episódios mais singulares da segunda guerra mundial. Três dias depois cada um dos que iam partir receberam, com grande surpresa, um vaso de marmelada, um pacote de vitaminas, dois pãezinhos e a foi feito sentar em um trem que era composto por vagões-leitos e não por vagões de gado. A bordo daquele trem os 1200 atravessaram a Boêmia, dobraram ao sudoeste, face à Karlsbad, passaram a fronteira alemã em direção à Bayreuth, viram pela janela as ruínas de Ausgburgo, Friedrichshafen, Nürnberg e finalmente, do outro lado do lago de Constanza, às costas iluminadas da Suíça. Quando o trem entrou freiando e rangendo na estação de Kreuzlingen, o andar estava cheio de gente que observava em silêncio e cada tanto esboçava algum sorriso. Eram os habitantes da pequena cidade que havia acudido com presentes de todo tipo. Era o rosto hospitaleiro de um país que hoje se senta, a miúde injustamente, no banco dos acusados.

Por trás da liberação dos 1200 prisioneiros de Theresienstadt estava um político suíço que tinha boas relações com alguns representantes alemães. Chamava-se Jean-Marie Musy, havia sido conselheiro federal e havia fundado em 1936 uma associação nacional suíça contra o bolchevismo.

Quando alguns rabinos ortodoxos norte-americanos lhe pediram qe intercedesse para a liberação de um grupo de judeus, Musy esperou talvez que uma iniciativa humanitária havia allanado o caminho a seu projeto, acariciado desde há muito tempo: um pacto entre os aliados e a Alemanha contra a União Soviética. Pôs-se a trabalhar e se acercou de das pessoas que o ajudaram com motivações diversas: Heinrich Himmler, chefe das SS e da Gestapo, Walter Schellenberg, chefe da contraespionagem alemã. O primeiro queria aproveitar a operação para obter dinheiro e meios de transporte; o segundo, melhorar, dentro do possível, a imagem da Alemanha e abrir as tratativas com os aliados. Como o demonstram outros acontecimentos daqueles meses, o mais provável é que Himmler tivesse um objetivo predominantemente venal, enquanto Schellenberg persseguia um fim político. O acordo teve êxito quando Himmler renunciou aos meios de transporte (que nenhum estava disposto a proporcionar) e se “conformou” com cinco milhões de francos. Moreno Bernasconi, em seu prefácio, escreve que Adolf Eichmann havia intentado uma operação semelhante na Hungria: a liberação de um milhão de judeus e a clausura das câmaras de gás em troca de 10.000 caminhões e bens de primeira necessidade. Destas tratativas, levadas a cabo por homens que buscavam abrir uma saída de emergência para si mesmos, provavelmente Hitler nunca se enteró. Enquanto que o Führer, recluso no bunker da chancelaria, não tinha outra solução para seu país exceto um gigantesco “crepúsculo dos deuses”, nos muros da grande prisão nazi começavam a se abrir as primeiras grietas. Fritzi Spitzer esteve entre os poucos que conseguiram deslizar-se através de uma fisura para conquistar a liberdade.

O livro sugere uma última observação. Com algumas excepções (entre elas os livros de Primo Levi), a melhor literatura sobre os Lager alemães é feminina.

De agora e mais adiante recordaremos o nome de Fritzi Spitzer junto aos de Margarethe Buber-Neumann (que pode confrontar os campos de Hitler com os de Stalin), de Ruth Schwertfeger, autora de "Mulheres de Theresienstadt", de Ruth Krueger, autora de "Viver todavia" (outro livro sobre Theresienstadt, publicado em 1995 por Einaudi) e de Fey von Hassel, autora de memórias encontradas recentemente: quatro mulheres inteligentes, obstinadas e capazes de combater o nazismo com as armas de sua humanidade feminina. Diz-se que o Führer tinha uma relação difícil com as mulheres e que a miúde se detinha num umbral de inconstante galanteio. Começou-se a entender as razões.

Sergio Romano

O presente artigo foi publicado no Corriere della Sera
em 7 de março de 2001.
Tradução de Ana María Cartolano.

Foto 2: US Holocaust Memorial Museum
http://www.ushmm.org/wlc/article.php?lang=en&ModuleId=10005424
http://www.ushmm.org/wlc/media_ph.php?lang=en&ModuleId=10005424&MediaId=1609

Fonte(espanhol): Fundación Memoria del Holocausto
http://www.fmh.org.ar/revista/19/theres.htm
Tradução: Roberto Lucena

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