O filme Cinzas da Guerra, de Tim Blake Nelson, (2001) nos coloca diante de vários pontos e pretendo tratá-los, dentro de certos limites. Eu não os enumerarei, pois isso ficará por conta da exposição. Mas a primeira das preocupações que me surge é a seguinte: seria possível (e aqui já está posta uma questão filosófica essencial) estabelecer uma relação cognitiva apenas por descrição do Holocausto e de suas características? Explico: seria factível ao filósofo estabelecer uma relação unicamente narrativa com o Holocausto, sem penetrar nele, envolver-se com ele, como evento que possui uma larga projeção metafísica. Além de histórica?.
“A metafísica aborda sem tocar porque sua maneira de ser não é ato, mas relação social”[1]. A resposta à minha pergunta inicial nos leva a esta necessidade; porque não é no sentido comum da expressão narrativo que está a tarefa do filósofo. Do filósofo se espera que veja os fatos não como o historiador o faz, mas que veja neles, através deles, a sua essência, o seu sentido, a sua relação com outros estratos e dimensões do ser, especialmente sua relação com a própria esfera metafísica, que é a do relacionamento com o outro. Muita filosofia contemporânea remete para o senso comum as questões ontológicas existenciais e assumem uma posição descritivista diante da bruta materialidade ou diante dos entes, seja eles nocionais ou concretos, como a extensão e seu conhecimento. Nessa perspectiva, os filósofos estabelecem o que chamo de relação cognitiva primária . Mas quando a filosofia descritivista causal se deparar com o mundo da vida, ou melhor, quando se depara, especificamente, com a morte planejada de milhões de seres humanos, o discurso fica difícil e isto é natural, porque aqui se exige duas coisas, uma muito difícil e outra muito elaborada: a primeira é uma explicação. Como chegamos a este ponto, pergunta-se. A segunda se enuncia de outro modo. Qual a dimensão ética e metafísica da vida se o Holocausto ocorreu?
Assim, meu desafio é mais íngreme e certamente bem mais complexo, tanto é que é se inicia com uma indagação sobre a questão que devo enfrentar. Repito: primeiramente, é possível estabelecer uma relação narrativa filosófica com o Holocausto? É possível postular uma narrativa o Holocausto que seja histórica, mas também metafísica, existencial e moral?
Esta pergunta me leva à outra, como a possibilidade de abrir uma discussão sobre a representabilidade do Holocausto em termos de condições, ou falta de condições de apreensão do seu significado para nossa geração. Pode residir aí a relação estético-narrativa de um filme (não da filosofia), em especial do filme de Tim Blake Nelson, que aborda uma determinada característica do Holocausto, a saber: como ocorre a instrumentalização do homem para fins abomináveis, na qual o sistema de extermínio nazista liquida, antes do corpo, a corporalidade como dimensão fenomenológica, enfim o próprio ser do homem e do homem enquanto ser na sua especificidade, que é a do sentimento, da dor, da piedade, mesmo daquela piedade animal da qual falava Hannah Arendt; enfim, abduzido da sua dimensão ética, transformando num morto-vivo ou numa sombra de seu si próprio, que sequer ele reconhece mais como humano. Ou seja, o campo de morte, a vida na morte no crematório, o despojo do homem, altera a fórmula de Heidegger, na qual nossa condição de existência é a de um ser para a morte. A transformação de Auschwitz nos instala na condição de um ser na morte.
Como pessoas, o Holocausto nos priva de categorias de compreensão naturais que nos tornam capazes da mais elementar interpretação existencial que temos de nós mesmos como homens, ou seja, como seres que preservam, de um modo geral, uma imagem de nós mesmos como portadores de dignidade e capazes de piedade. Esta privação pode ser filosoficamente enunciada. Esta ausência de categorias normais já é a própria anormalidade. Como descrever o terror das câmaras de gás, dos crematórios, dos guetos, dos fuzilamentos em massa. Indiscutível que ao tratar do tema, o homem comum revolta-se. Mas não estou falando aqui de revolta, mas de cognição. É neste sentido, que pretendo insistir na ontologia existencial e a na fenomenologia (irmãs, senão a mesma), porque encontro nelas o universo categorial existencial e que, por essa razão, podem penetrar mais fundo naquilo que o filme descreve.
Deduz-se de Levinas, aproximando-se de Merleau Ponty[2] em termos conceituais, que a condição humana neste processo de extermínio destrói a própria corporalidade. Ela é a sublimação da maquinização do ser humano e extinção do nosso centro de gravidade ética.[3] Veja-se como essa categoria é fundamental. O primeiro ato brutal é assacado contra o corpo. No filme de Tim Blake Nelson, não há espaço para a vida. O universo dos crematórios de Aushwitz é acinzentado como a cor que sai da chaminé com a fumaça dos corpos humanos que as alimentam. As vitimas, antes de mesmo de massacradas, são vistas como corpos sem vida. Os que trabalham no crematório são vistos como corpos sem subjetividade, seu se centro de gravidade pessoal. Eles são só genuínos operários.
Entre eles anda restam esperanças, como a de explodir os crematórios e esperar, sem mais a linha se montagem da morte, a chegada dos russos, que estão há poucos quilômetros de Aushwitz. Mas a vida fiou no passado que apenas durante a sua execução é lembrado de forma lúdica. Os que possuem esperança serão inevitavelmente mortos. Em meio ao um ato de horror, dois dos prisioneiros falam que moravam próximos em Budapeste. Eles conviveram por 4 meses e não falaram sobre isto, porque naquele período eles eram operadores da morte O que éramos, o que fazíamos, o que amávamos? Eles jamais tratam da esperança, do medo ou do ódio. Morte, medo e ódio são modalidades de ser que Nelson Blake explorou visualmente. Há ódio, medo e morte por todo o lugar e seus portadores são engrenagens e sabem disso. A culpa por estarem vivos, se é que aparece no filme em poucos diálogos, é logo substituída por uma tarefa de rotineira: conduzir judeus para matadouro e depois retirar seus corpos de lá, burocraticamente. Não há tempo para reflexão, para pensar sobre o que se está fazendo.
Daí perceber neste impressionante filme, a dimensão do que foi o Holocausto para a experiência humana. A corporalidade, matriz da abertura para ético, para o reconhecimento do outro, abertura do ser para o outro, é extinta naquele universo de onde a vida e a corporalidade foram banidas. O corpo, sob aquelas condições, passa a ser coisa bruta. Devemos encontrar nessa dimensão reificada, mortificada, o contrário do que representa o corpo. O corpo é meu espaço de vida, nele eu respiro , me alimento, nele eu me construo e me relaciono com minha própria afetividade. O corpo é alvo de carícia, ternura, não de terror, porque senão ele deixa de ser corpo como fenômeno que se abriu para a alteridade e se transforma em coisa.
O corpo é a nossa possibilidade de sermos identificados como o Outro que também é Outro para nós, um outro que nos é estranho e nos atrai porque é um Rosto. Rosto que somos na relação ética que se estabelece no mútuo reconhecimento. O Rosto é aquele (não aquilo) que é capaz de proximidade e afeto, sofrimento, ternura e carícia, respeito e justiça.Essa era a situação do sonderocamando. O corpo transformado em coisa, em fardo da alma. Não somos esse isto, para lembrar de Martin Buber, esta coisa. O que torna difícil uma interpretação filosófica do Holocausto é precisamente este ponto. Como tamanha degeneração na própria interioridade é capaz de gerar o ódio que cega para a existência do outro, ou o burocrata da matança, que é indiferente para o sofrimento, que desfigura a alteridade e transforma tudo em rotina de extermínio. Obviamente, somente, a extirpação da capacidade de sentir afeto (modalidade do ser),foi capaz de criar a mais infernal (a comparação visual é com Dante, sim) burocracia do extermínio, a máquina do Holocausto.
O Holocausto é a medida última da extinção, pois o que ele extingue é a corporalidade em vida. Ele extingue a ética e por isso é impossível nomeá-lo, como diria Benjamin, pelo seu nome próprio. O seu nome é sempre impróprio e designa o que é único como ultraje ao humano, o singular como evento que não porta significado e porta todos os significados a um só tempo. Por isso nossa racionalidade é, diante dele, sitiada pela paralisia cognitiva e dele só podemos perceber um eco do nada em que de algum modo fomos todos lançados depois dele. Não podemos fazer, nestas condições, qualquer juízo moral sobre as condições de sobrevivência, jamais de vivência, dos sondercomando, personagens centrais do filme de Tim Blake Nelson. Eles eram homens numa situação impensável.
Mas o filme de Nelson não é um filme realista. Ele pode ser considerado impressionante pela fidelidade com que mostra as condições de vida no inferno. Pela ausência de trilha sonora. Os sons são apenas aqueles da máquina da morte executando seu propósito. Em meio a este lager da morte, surge uma chispa de esperança, que é retratada na face da menina que sobreviveu à morte na câmara de gás. Não devemos ver o filme apenas por sua estética o que ela possui de realista, por sua brutalidade indizível. Este é um componente central do filme, sem dúvida. Mas ali há um Rosto, que se abre aos operários da morte daquele mundo embriagado do inumano, naquele universo de torpor psíquico de mortos vivos. Um rosto que os faz retornar ao reconhecimento da morte, da corporal idade exterminada e de sua própria existência. A menina que escapa da morte mobiliza os operário do forno crematório a salvá-la, justamente eles que conduzem milhares de outros judeus à morte todos os dias. Tim Blake Nelson nos coloca diante de um paradoxo. É preciso salvar alguém que já está morto (a menina) mesmo que isto coloque em risco a vida da equipe de sondercommando Qual a razão? A meu ver,a razão é simples. Ao se depararem com a vida na menina, naquele local de morte, eles a reconheceram, como Rosto, não mais como coisa. No filme, o tema é tratado como uma epifania, que arrebata a todos os personagens do lager.
Para encerrar: no relato cerimonial que os judeus fazem, a cada ano, da libertação do Egito, há um registro sobre a importância de cada judeu se colocar no lugar do Outro, a cada vez que lembramos. Dizemos que devemos nos ver como se cada um de nós tivesse estado lá quando fomos escravos e quando obtivemos a liberdade. Para enfrentar o tema do Holocausto, do universo concentracionário, dos campos de morte, não se pode exigir menos que isso. Devemos nos ver como se cada um de nós tivesse estado lá e só então poderemos encontrar o nosso próprio Rosto que, dali em diante se perdeu.
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[1] Emmanuel Levinas, Totalidade e Infinito, Edições 70, 1988, p.95.
[2] Permito-me, na interpretação do universo do lager, fazer uso das categorias fenomenológicas sobre a dimensão do espaço corporal tal como definiu Maurice Merleau Ponty em seus estudos sobre a percepção. Assim, recomendo a leitura do da Primeira Parte da obra Fenomenologia da Percepção, na qual autor trata especificamente sobre o corpo, Em trecho que importa destacar para meus objetivos deste artigo, ele afirma, uma discussão sobre a corporal idade, reproduzo o seguinte trecho: O espaço corporal pode distinguir-se do espaço exterior e envolver suas partes em lugar de desdobrá-las. Porque ele é a obscuridade da sala necessária à clareza do espetáculo, o fundo de sono ou a reserva de potência vaga sobre os quais se destacam o gesto e sua meta, a zona do não – ser diante da qual podem aparecer serfes precisos, figuras e pontos . Em última análise , se meu corpo pode ser uma “forme” e se pode haver diante deles figuras privilegiadas sobre fundos indiferentes, é enquanto ele está polarizado por suas tarefas, enquanto existe em direção a elas enquanto se encolhe sobre si para atingir sua meta , e o “o esquema corporal” é finalmente uma maneira de exprimir que meu copo está no mundo”. (Maurice Merleau Ponty, Fenomenologia da percepção, Martins Fontes, 1999, pp. 146-7)Entre os prisioneiros do crematório, entre as demais características desta nossa corporalidade que só é tal enquanto direciona-se per si para sua tarefa na forma de um gesto, o corpo perde a dinâmica que o diferencia de um conjunto de órgãos com formato corporal.
[3] O meu corpo não é , para o sujeito, apenas uma maneira de se reduzir à escravidão, depender daquilo que não é ele; mas uma maneira de possuir, de trabalhar , de ter tempo, de superar a própria alteridade daquilo de que e devo viver. O corpo é a própria posse de s pela qual o eu, liberto do mundo pela necessidade, consegue superar a própria miséria da libertação (E. Levinas, Totalidade e Infinito, Edições 70, p102) E mais adiante, nua passagem notável sobre dimensão ética do corpo: “O corpo nu é indigente, identifica o centro do mundo que ele percepeciona, mas condicionado pela sua própria representação do mundo, é por isso como que arrancado do centro de onde partia - com uma água brotando de um rochedo. O corpo indigente e nu não é uma coisa entre coisas e que eu “constituo” e que vejo em Deus com relação ao um pensamento; nem instrumento de um pensamento gestual, cuja teoria marcaria simplesmente um limite. O corpo nu e indigente é o próprio reviramento irredutível a um pensamento, da representação em vida, da subjetividade que representa em vida que é suportada por essas representações que delas vive; a sua indigência – as suas necessidades – afirmam a “exterioridade” como não constituída, antes de toda afirmação.” (ibid, p 112).
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/054/54milman.htm