Historiadora e psicanalista, a francesa Elisabeth Roudinesco narra toda a trajetória dos perversos, cuja existência justifica a distinção entre o bem e o mal, tema de sua mesa na Flip
Ubiratan Brasil
Marquês de Sade, o comandante nazista Rudolf Höss, Barba-Azul, Darth Vader - a historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco conviveu com personagens pouco recomendáveis nos últimos tempos. Flagelantes, sodomitas, homossexuais, terroristas, pedófilos são pessoas que levaram uma rotina inversamente simétricas às vidas exemplares de homens ilustres e, por isso, são consideradas perversas. Interessada no fascínio despertado por tais figuras, Elisabeth reuniu abordagens até então independentes para escrever "A Parte Obscura de Nós Mesmos" (tradução de André Telles, 224 páginas, R$ 34), que a Jorge Zahar Editor lança nesta semana.
Em seus ensaios, a historiadora apresenta um balanço da perversão, revelada como um espelho para a humanidade por exibir a própria negatividade dos homens. “Absoluto do bem ou loucura do mal, vício ou virtude, danação ou salvação: este é o universo fechado no qual o perverso circula deleitosamente, fascinado pela idéia de poder libertar-se do tempo e da morte”, escreve ela, que viaja o mundo pregando que os perversos são uma parte de nós mesmos, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nosso lado mais sombrio.
Na segunda-feira, aliás, ela participou, em Viena, de uma conferência em que utilizou o vilão da saga Guerra nas Estrelas como ponto de partida. “Trata-se de uma bela reflexão sobre o bem e o mal na sociedade contemporânea”, comentou ela, no dia seguinte, em conversa telefônica com o Estado. E será também esse o tema de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty, que começa na quarta-feira - Elisabeth Roudinesco é um dos destaques do dia seguinte.
Em sua mesa, ela deverá mostrar como o Marquês de Sade defendia a negação das leis que regem a sociedade ao divulgar a sodomia, o incesto e o crime em seus livros. Também Rudolf Höss, comandante do campo de concentração de Auschwitz, para quem as vítimas eram as únicas responsáveis pelo próprio extermínio. Vai pregar ainda contra a eliminação da perversão, o que representaria destruir a distinção entre bem e mal que fundamenta a civilização.
Somos todos um pouco perversos?
Sim (rindo), somos. Mas há graduações, logicamente, pois todos os homens são assombrados pelo fantasma da perversidade que incentiva o desejo de matar, de molestar, de dominar, de se exibir, de fazer alguém sofrer. Por isso que intitulo meu livro como a parte obscura de nós mesmos. Acredito que ninguém escape dessa classificação, independentemente de ser um indivíduo ou uma organização, ou de estar ou não sob uma ditadura, na qual o Estado se converte em torturador e perseguidor.
E o que representa o mal absoluto dos tempos atuais? O terrorismo?
Não, de forma nenhuma, acredito que o nazismo ainda seja o pior. Trata-se da inversão radical sofrida por um Estado. A pior perversão acontece quando um Estado se torna perverso com o auxílio da ciência. Por isso que elegi o nazismo como o mal absoluto, pois foi o caso da completa inversão da lei do bem e do mal. O terrorismo também é uma forma de perversão, mas é praticada por um sujeito, ou por um grupo, e não pelo Estado. O pior da perversão acontece sob a chancela do Estado, daí ser o nazismo. Foi um momento em que todas as formas de perversões humanas foram aplicadas com o intuito de eliminar o “mal”.
A senhora acredita que a ciência ajudará a eliminar a perversão?
O melhor caminho seria uma ciência que se desenvolva pela ética.
A forma de definir o bem e o mal varia de acordo com a época. Assim, podemos dizer que a perversão ainda é sinônimo de perversidade?
Sim, gosto da idéia (aliás, freudiana também) de que dentro da perversão existe o prazer do mal. Portanto, há a perversidade também. Por isso que critico o vocabulário psiquiátrico moderno que pretende eliminar a palavra “perversão”, substituída por outro termo que lhe convém. Há o prazer de se praticar o mal e não simplesmente fazer o mal sem nenhum prazer. Por outro lado, o mal pode ser sublimado por meio da arte e da criatividade. É o que me faz pensar no Marquês de Sade: se não tivesse escrito uma obra de grande estatura, ele seria certamente um criminoso. No caso dele, ser perverso transformava-o em um duplo, pois tanto tinha contato com a alta sociedade como com a escória.
Em diversos países, o Brasil inclusive, há o confronto entre o desejo incontrolável de se desvendar a intimidade de um lado e a repressão de uma sociedade moderna de outro. Trata-se de um sintoma típico da sociedade moderna?
Com certeza, é o que trato no último capítulo do livro, A Pornografia e o Puritanismo. Trata-se de algo comum em vários países (no Brasil, nos Estados Unidos, na França), um exibicionismo não só sexual, mas de tudo que é privado. E sempre cercado por um profundo puritanismo. O exemplo americano é bem interessante - lá, a vida privada é muito preservada, mas o interesse pelo caso do presidente Bill Clinton com a estagiária Monica Lewinski foi alucinante. Ou seja, o exibicionismo e o puritanismo conviviam lado a lado. O que deveria ser preservado é escancarado em praça pública. Quem são os mais perversos? Clinton e Monica? Ou aqueles que os acusaram? Os puritanos é que são os mais perversos. Não creio que isso aconteceria na França, onde se preserva um pouco mais a vida do presidente. A religião protestante e o puritanismo são, de alguma forma, incentivadores da perversão.
A cultura pop é recheada de ícones perversos e um dos mais conhecidos é Darth Vader, vilão da saga Guerra nas Estrelas. O que pensa dele?
Um personagem fascinante. E por que ele te atrai?
Bem, porque é um personagem que surge como representante do bem até ser atraído pelo mal e, finalmente, retornar ao grupo dos bons.
Penso da mesma forma. Minha intenção era escrever um capítulo para o livro, mas fiz várias conferências a respeito. O que me atrai nessa saga é o lado negro da força, pelo qual Darth Vader é seduzido. O extraordinário da história é identificar como o mal habita dentro do bem, permitindo uma reflexão dialética sobre a passagem de um ao outro. Você observou bem essa troca de lados: Darth Vader passa para o lado mal por se decepcionar com o ideal do bem. E, em seguida, ele se transforma no mal absoluto, passando por uma mudança física que caracteriza sua figura abjeta, especialmente com o uso da máscara. Ele também adquire uma altura extraordinária enquanto o sábio Yoda é pequeno, tem uma estrutura frágil, mas também uma força descomunal. Trata-se de uma bela reflexão contemporânea sobre o bem e o mal, sobre a perversão. Também é um filme que faz uma pesada crítica ao totalitarismo e ao fascismo, pois o ideal da democracia é pervertido logo no início da saga, uma saga moderna que remonta às tragédias gregas.
Agora, voltando a figuras reais, o que dizer de certos escritores que sofreram por suas atitudes, como Oscar Wilde?
Ah, um exemplo notável. Veja bem: ao fim do século 19, a literatura é marcada pela descrição de si mesma e do mundo que a rodeia. Temos Balzac, Victor Hugo e também Oscar Wilde, especialmente seu personagem Dorian Gray, uma belíssima ilustração da perversão, pois é, ao mesmo tempo, um homem sublime e abjeto. No meu livro, eu o comparo a outro importante personagem, Gregor Samsa, de A Metamorfose, escrito por Franz Kafka. Apesar de se transformar em uma figura horrenda, Samsa carrega uma alma plena de ternura. Já a metamorfose sofrida por Gray, que se entrega a uma vida de excessos e ainda mantém intacta a beleza, deixará marcas profundas em seu retrato. São dois livros nos quais a perversão está na própria metamorfose.
Fonte: O Estado de São Paulo, caderno 2(Brasil, 29.06.2008)
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