Parte 3: Para entender: Ciência vs. Pseudociências
4. O ceticismo científico
No último parágrafo do tópico anterior abordamos o segundo paradoxo do mundo das pseudociências: nem sequer os cientistas (em geral) vêem interesse nesses temas, nem os consideram adequados para estabelecer uma crítica. É compreensível: o fato é que um psicólogo especialista pode ficar completamente desconhecedor do que se “vende” atualmente no mundo da parapsicologia, ou um astrônomo ignorar por completo as afirmações dos astrólogos. Simplesmente, a própria especialização do mundo da pesquisa científica provoca um completo desinteresse por temas tão menores, de escasso conteúdo científico.
No entanto, é uma abordagem errônea, porquanto trata-se de assuntos que têm capacidade de chegar facilmente ao cidadão, de maneira que a ausência (por vontade própria) dos cientistas nestas arenas deixa os proponentes, os mais descabelados e os mais comedidos, com todo o cenário só para eles.
Este é o grande problema, e o grande desafio que as pseudociências colocam: afinal, são populares, e continuarão sendo se não houver uma crítica racional a elas. Esta ausência permite ademais uma certa impunidade por parte dos proponentes das pseudociências, que ficam como únicos interlocutores no panorama. Lembro-me a esse respeito de um programa de televisão, anos atrás, que apresentava um caso de poltergeist: uma casa onde as coisas se moviam sozinhas – supostamente – e em cujas paredes tinham aparecido manchas de sangue. Um dos “especialistas” que estava nesse programa propunha como explicação que um espírito de uma pessoa morta provocava a fenomenologia. Outra pessoa, que se auto-intitulava “cientista”, dizia que não era necessário: era energia da mente de um dos moradores da casa, que se transformava em matéria, neste caso, em manchas de sangue. Este pesquisador insólito aduzia como prova de suas afirmações que, como todo mundo sabe, através da equação de Einstein, a matéria e a energia podem transformar-se, e que neste caso isso é o que havia acontecido. Obviamente, fazia falta alguém que explicasse que se a primeira hipótese não era científica (por não ser falsificável), a segunda era diretamente anticientífica, isto é, uma pura estupidez. Receio, entretanto, que se os produtores do programa tivessem convidado um cientista, este não teria podido senão balbuciar alguma explicação: é difícil que tivesse um conhecimento da realidade do fenômeno dos poltergeists...
É aí que entram em cena os céticos. Esta palavra tem uma conotação negativa, proveniente da própria origem filosófica da doutrina da suspensão de juízo. Por isso, vamos tentar esclarecer o termo. Em geral podemos diferenciar vários tipos de ceticismo:
Um ceticismo niilista, extremo, afirma que é impossível alcançar qualquer conhecimento de maneira veraz. Levado ao extremo, tudo é válido porque nada é certo. É a dúvida absoluta e o passivismo completo. Este tipo de céticos admitiriam o mesmo corra que pare, pelo que é óbvio que não nos referimos a eles.
Um ceticismo menos extremo, como o do próprio Hume, no qual se formula a impossibilidade da certeza, mas que estabelece mecanismos de acordo para aceitar as coisas. Uma espécie de consenso para funcionar num mundo onde não existe uma confiabilidade completa.
Um ceticismo científico, nascido já neste século, impulsionado no início por filósofos pragmáticos, segundo o qual uma das bases do método científico é uma dúvida cética, que se supera quando se fornecem provas suficientes que justifiquem a tomada de decisão. Frente ao primeiro tipo de ceticismo, este permite chegar a conclusões e evitar a abstenção de juízo. Frente ao segundo, este ceticismo não chega a um consenso por maioria, mas sim por acumulação de provas, que se devem realizar conforme os postulados do próprio método científico.
Tenhamos em conta que definitivamente, no próprio processo da investigação científica, este tipo de ceticismo é básico. Um dos princípios do método é a conhecida navalha de Occam, que advoga por uma simplicidade nas causas, por não andar buscando mais além do que o que temos na mão, se não for estritamente necessário. Este princípio é um dos fundamentais do ceticismo também, como o é a afirmação antes mencionada de Hume sobre as afirmações e o peso da prova.
O ceticismo moderno difere, entretanto, da corrente principal da ciência, quando opina que é interessante analisar científica e racionalmente as afirmações que se fazem sobre o paranormal. Esta vocação de não deixar de examinar nada rompe com o atual costume da especialização, mas ao mesmo tempo entronca diretamente com o trabalho daqueles que se dedicam à comunicação social da ciência. Isso é assim porque se reconhece o poderoso atrativo do oculto para a gente da rua, e o perigo da sua aceitação acrítica. E toma posição a respeito, estabelecendo como necessidade ou conveniência que a ciência dê a conhecer o que realmente sabe sobre esses temas, e que não fique calada ante as afirmações irracionais.
Não é uma postura negativista, como se costuma afirmar dos céticos, mas uma tarefa elementar do cidadão, que reconhece que em nossa sociedade o rótulo de “cientista” tem um valor muito importante, e portanto não é conveniente que qualquer um possa usá-lo sem mais aquela. Os céticos não são “contra” os ovnis, os astrólogos ou os homeopatas. Simplesmente, advertem publicamente que as afirmações deste tipo estão mal fundamentadas, não têm comprovações adequadas e que além disso há suspeitas suficientes de que estejam funcionando mecanismos “normais” que podem explicá-los (a navalha de Occam antes mencionada).
Além disso, o ceticismo aposta na divulgação e comunicação social da ciência, porquanto sabe que conforme a sociedade compreenda melhor o papel (o valor e o método) da ciência, e desenvolva uma capacidade de crítica ante as afirmações de todo o tipo, as irracionalidades terão mais dificuldades para expandir-se.
De umas décadas para cá, pessoas interessadas em divulgar estas posturas (cientistas, filósofos, comunicadores ou jornalistas, e mais gente) foram-se estabelecendo como pequenos grupos céticos, tentando facilitar a informação científica sobre estes temas, e tentando promover um pensamento crítico na sociedade {2}. É um trabalho árduo, que não poderia ser levado a cabo sem a colaboração dos interlocutores mais dispostos, precisamente os que estão estabelecendo os vínculos entre a ciência e a sociedade: cientistas e educadores, comunicadores, divulgadores e jornalistas...
Como comentávamos anteriormente ao analisar a situação dos meios de comunicação com respeito às pseudociências, é claro que os jornalistas científicos não “caem” tão facilmente nas afirmações destas falsas ciências, porque normalmente dispõem de um critério científico para discernir entre afirmações fundadas e saltos no ar. Embora nem sempre: o jornalista científico (de fato, qualquer jornalista) possui as ferramentas básicas para exercer uma crítica ante qualquer tipo de informação que recebe. Talvez deveríamos intervir para que estes critérios da profissão de comunicador sejam levados às suas verdadeiras conseqüências, inclusive com temas que parecem menores como os horóscopos ou os discos voadores.
Como final deste artigo, quero mencionar que nos últimos anos em nosso país (mas não só aqui), esta reivindicação por parte dos setores implicados na comunicação social da ciência está ocorrendo cada vez com mais força. Algo que é interessante. Por exemplo, a Asociación Española de Periodismo Científico, com o impulso de seu fundador Manuel Calvo Hernando, está incluindo o tema das pseudociências entre suas principais atuações.
Notas:
{1} Normalmente em parapsicologia se discriminam diferentes faculdades: percepção extrasensorial, que inclui a telepatia (leitura de outra mente), a clarividência (“ver” à distancia, isto é, sem usar os sentidos) ou a precognição (antecipação de acontecimentos futuros); e psicocinese, ou faculdade de executar ações físicas sem fazer nada “físico”, apenas “mental”. O fato de que se achem tão caracterizadas não impede duvidar da sua existência, especialmente à falta de experimentação suficiente e suficientemente repetida por investigadores independentes.
{2} Na Espanha existe a ARP-Sociedad para el Avance del Pensamiento Crítico, Apdo 310, 08860 Castelldefels, que edita a revista El Escéptico. E-mail: arp_sapc@yahoo.com.
Referências:
[1] Ramonet, Ignacio. “Un mundo sin rumbo: crisis de fin de siglo”. Concretamente o capítulo intitulado “Ascenso de lo irracional”, reproduzido na revista El Escéptico, nº2 Outono 1998, pp 43-50.
[2] Sokal, Alan; Bricmont, Jean: “Impostures Intellectueles”, 1997, Ed. Odile Jacob; versão norteamericana intitulada “Fashionable Nonsense: postmodern intellectuals”, 1998, Ed. Picador.
[3] Grey, William, “Ciencia y Psi-encia: la ciencia y lo paranormal (I)”, La Alternativa Racional, primavera 1994, nº32, pp. 23-27; “La búsqueda de la verdad: la filosofía y lo paranormal (II)”, LAR, verão 1994, nº33, pp. 11-17; “El proceso de explicación (III)”, LAR, especial X Aniversario, nº34-35, pp. 41-46; y “Escepticismo y conocimiento (y IV)”, LAR, primavera 1995, nº36, pp. 25-31.
[4] Kurtz, Paul, “Is parapsychology a science?”, 1978/1981, The Skeptical Inquirer, Vol 3. nº.2, pp. 14-23; reimpresso em Paranormal Borderlands of Science, ed. Kendrik Frazier, Prometheus Books, pp-5-23.
[5] Angulo, Luis, “Evidencias sobre videntes”, LAR, nº 11.
[6] MacDougall, Curtis, “Superstition and the Press”, 1983, Prometheus Books.
[7] Menéndez, Oscar. Comunicação realizada no curso “La América Irracional”, organizado pelo Instituto de América em Santa Fé (Granada), 13-14 nov 1998. (publicação pendente)
[8] Almodovar, Miguel Ángel. Comunicação sobre meios de comunicação no II Congreso Nacional sobre Pseudociencias. Alternativa Racional a las Pseudociencias, novembro 1994.
Autor: Javier Armentia
Fonte: Paranormal e Pseudociência em exame
Original: Euskonews & Media #30
Fonte: ateus.net
Para baixar ou ler no site, texto inteiro em PDF: Ciência vs. Pseudociências; Autor: Javier Armentia
Javier Armentia, Diretor do Planetário de Pamplona(Espanha) e
membro da ARP-Sociedad para el Avance del Pensamiento Crítico
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