De modo geral, a "questão judaica" foi utilizada tanto pela esquerda como pela direita: foi álibi no último período do czarismo russo, dividiu a França no Caso Dreyfus (final do século XIX), foi o centro do anti-semitismo de massas na Áustria e na Alemanha (ligado ao pangermanismo) e até incidiu no fraudulento Plano Cohen, utilizado como um dos pretextos para a implantação do Estado Novo no Brasil.
Atualmente, nos países da Europa Oriental, ex-comunistas, o anti-semitismo se reproduz como mutação da antiga tradição antijudaica clerical, como demonstrou Paul Hockenos (1988). No mundo ocidental do pós-guerra, rearticulou-se o preconceito hostil, amoldando-se a populismos e sistemas de crenças que pretendem explicar problemas complexos, como o conflito entre israelenses e palestinos, por meio de esquematismos irracionais. Em certos casos, quando acentuadamente rígidos e associados a uma causa determinada, tais sistemas acorrem à paranóia da conspiração judaica.
Das novas racionalizações anti-semitas, a mais difundida é o anti-sionismo, agasalhado oficialmente pela esquerda comunista ocidental. No Brasil, introduziu-se em um estrato esquerdista-fundamentalista, ativo no PSTU e no PCO, assim como em tendências ultra-radicais do PT e do MST, onde uma esquerda monástica cumpre papel importante na conformação ideológica de uma revolução campesina e na hostilidade a tudo que representa (estou falando de estereótipo) o capitalismo que escraviza o Terceiro Mundo.
O anti-sionismo é uma fórmula excêntrica, presente nesses meios esquerdistas, como nos setores direitistas e integristas; e - é claro - um motivo preferencial, exaustivamente difundido pelos negacionistas. A fórmula é excêntrica pelas razões expostas com clareza e simplicidade por Yehuda Bauer[7], numa conferência feita nos EUA:
O conflito árabe-israelense, e agora a confrontação entre israelenses e palestinos, fornece amplo material para o anti-semitismo que se vê como anti-sionista e não antijudaico. Certamente, alguém pode ser anti-sionista sem ser anti-semita, mas somente se disser que todos os movimentos nacionais são malignos, e todos os estados nacionais devem ser abolidos. Mas, se alguém diz que o povo das Ilhas Fiji têm o direito de independência, e da mesma forma os malaios ou os bolivianos, mas os judeus não possuem tal direito, então esse alguém é anti-semita e na medida em que exclui os judeus por razões nacionalistas, é anti-semita e sobre ele recai uma forte suspeição de ser racista (Bauer, 2003:2).A crença na ilegitimidade do Estado de Israel atualiza, no campo do discurso político radical, uma retórica agressiva e mistificatória quando se expressa por meio de seus representantes mais descontrolados. Nesses casos, reúne seu habitual panfletarismo com clichês que busca no negacionismo. Da fusão resultam acusações perturbadas, tais como as que financistas judeus levaram Hitler ao poder, que os sionistas foram aliados do nazismo ou que Göering era judeu.
Melanie Philips, em outro artigo, desta feita publicado no Daily Mail de Londres, em 22 de março de 2003, procurou penetrar mais fundo na caracterização do novo anti-semitismo que se vê legitimado por ser anti-sionista. Para ela, tal fenômeno tem relação com a mentalidade política européia com respeito a Israel:
A Europa estava aguardando, por mais de meio século, um modo de culpar os judeus por sua própria destruição. Assim, ao invés de soar o alarme devido ao ódio genocida islâmico contra os judeus, os europeus têm avidamente adotado a nazificação dos judeus, um processo que de fato teve início com a desastrosa invasão israelense do Líbano, em 1982. Esse fato marcou o início de uma sistemática inversão que faz da autodefesa de Israel uma agressão, juntamente com critérios duplos e fabricações maliciosas que nada têm a ver com a legítima (e necessária) crítica à Israel e tudo a ver com a deslegitimação do estado judeu, juntamente com a disposição pelos seu desmantelamento (Philips, 2003).Nada, no caso desse anti-semitismo de rejeição à existência de Israel pode ser confundido, como salientaram Bauer e Philips com algum tipo de crítica às políticas israelenses. Essa é outra confusão maliciosa, constantemente reiterada por anti-semitas. A malícia chega a ser grosseira porque uma rápida observação revela que a idéia de anti-sionismo não tem equivalente histórico, especialmente depois da era colonial. Ele não expressa um sentimento contra determinadas práticas ou políticas ou mesmo quanto à hegemonia de um país. Ele em nada é semelhante ao sentimento anti-americano, por exemplo. Você pode ser anti-americano por alguma razão, mas você não pensa que a existência dos EUA é ilegítima. Pessoas podem ter idéias contrárias, fundamentadas ou não, sobre as políticas de qualquer país. Mas não são idéias sobre a legitimidade da existência desse país, seja lá qual for. Ninguém jamais lançou dúvidas sobre a legitimidade da existência da Alemanha ou de Bengaladesh ou de qualquer outra nação.
A exceção é o anti-sionismo, que é permeado pelo preconceito anti-semita. Como tal, suas críticas a Israel são sempre existencialmente comprometidas, ou seja, sempre estão agregadas à agenda da ilegitimidade sionista. Idéia que combina traços de psicopolítica do ódio e conspiranóia, expressões que se aplicam ao anti-semitismo concentrado na rejeição a um estado judeu. Por ser uma deformação ideológica, explica-se porque, entre os disparates já citados e outros, os praticantes desse anti-semitismo de Estado, chegam a acusar os judeus de anti-semitas, de nazistas e a propor comparações paranóides entre a situação atual dos palestinos e a situação dos judeus europeus durante a 2ª Guerra.
Uma característica comum ao negacionismo e ao anti-semitismo de Estado é o uso da malícia semântica. Os judeus são acusados de semitas anti-semitas (sic) porque os palestinos também são semitas (sic) e os territórios palestinos estão ocupados militarmente por judeus. A imagem produzida não poderia ser mais repugnante: judeus oprimindo semitas, como os nazistas faziam.
O sofisma é duplamente pervertido, por causa da sua premissa (pois não há semitas) e da sua desconexa conclusão, segundo a qual os sionistas agem, com relação aos palestinos, como os nazistas. Quando nos defrontamos com esse tipo de insanidade, lembro que fazer ou falar uma bobagem é muito mais fácil do que desfazê-la ou desmenti-la. Assim, tentemos desmontar essa confusão elaborada por propagandistas profissionais.
Os territórios palestinos realmente estão ocupados desde 1967, mas isto não faz dos israelenses anti-semitas e, muito menos, permite que sejam comparados a nazistas, ou pior, ligados a nazistas. A ocupação tem uma história, está inserida num contexto de disputa e não será definitiva; mais ainda: os direitos nacionais do povo palestino à autodeterminação são reconhecidos por todos, inclusive por Israel. O problema é, no entanto, gravíssimo. Ele diz respeito aos israelenses e aos palestinos, além de regionalmente envolver jordanianos, egípcios, sírios e libaneses, assim como as potências internacionais.
De todo modo, só quem não sabe o que foi o nazismo ou o que foi o Holocausto é capaz de comparar a ocupação israelense às ocupações da Alemanha nazista dos territórios que dominou. Para se ter a medida desta comparação, basta constatar que se trata, mais uma vez, de uma comparação em isolamento. Ninguém chama os chineses de nazistas por terem anexado o Tibet, ou os ingleses por ocuparem a Irlanda do Norte, ou os russos porque ocupam a Chechênia, ou os espanhóis porque não concedem autodeterminação aos bascos, ou os turcos por abafarem as pretensões nacionalistas dos curdos, ou os sírios, por ocuparem militarmente parte do território libanês.
Da mesma forma, é absurda a alegação de que judeus sionistas oprimem um povo semita (os palestinos). Do ponto de vista social, cultural ou político, o termo semita não tem sentido, pois não há semitas, a não ser que se deseje discutir lingüística, porque a língua árabe e a língua hebraica (próximas entre si como o francês e o português), pertencem ao mesmo tronco. Nesse sentido - o único coerente-, ser semita é como ser falante de uma língua que pertence a um mesmo tronco lingüístico. Seria o mesmo que ser anti-latinista ou anti-swaili.
O anti-semitismo é um preconceito e o que define o termo o é o seu uso social, político e cultural. "'Anti-semitismo' representa o ressentimento contra os judeus.e refere-se à concepção dos judeus como um grupo estranho, hostil e indesejável e às práticas que derivam dessa concepção e a sustentam" (Bauman, 1988:54).
Anti-semitismo é sinônimo de antijudaísmo. Utilizá-lo em qualquer outro sentido é fazer o jogo de palavras dos anti-semitas, que acusam os judeus enquanto povo ou os sionistas (isoladamente há obviamente indivíduos judeus anti-semitas e anti-sionistas) de anti-semitismo. Na época em que foi concebido, o termo "anti-semita" foi circunscrito pela especificidade anti-judaica, como Bauer elucida:
O termo "anti-semitismo" é, como muitos de nós percebemos, o termo errado para aquilo que tentamos descrever e analisar. Ele foi cunhado, paradoxalmente, por um anti-semita, Wilhelm Marr, em 1879, porque ele necessitava de um novo termo para [designar] o ódio aos judeus. O antigo, Judenhass, era identificado como um termo de apelo cristão, basicamente teológico, e Marr era anticristão, porque o cristianismo fora, e nisso ele estava correto, uma invenção judaica. O novo termo soava científico, não mencionava judeus, mas todos sabiam o que ele significava e a quem era dirigido: ele descrevia um fenômeno recentemente desenvolvido, de abordagem nacionalista e bio-racial. Anti-semitismo, especialmente tal como pronunciado, é um absurdo vazio, porque não existe semitismo contra o qual você possa ser. Existem linguagens semíticas e dificilmente você pode ser contra linguagens semíticas. Passamos a usar "anti-semitismo" para descrever a aversão aos judeus desde os dias de Manetho, o sacerdote egípcio de cerca de 300 A.C., cujos comentários sobre os judeus formavam uma combinação de desprezo e ódio, provavelmente motivado pelo assentamento dos judeus em Alexandria. Não há diferenciação no [uso do] termo anti-semitismo, entre um ódio leve, moderado ou radical contra os judeus, ou um fenômeno que pode ser facilmente explicado por uma aversão geral a estrangeiros ou ainda um ódio ou aversão concentrados nos judeus.O anti-semitismo é um fenômeno da modernidade e tal como é hoje praticado, expressa confusa e cumulativamente tanto o antigo ódio ou desprezo aos judeus como o preconceito que deixou de ser motivado por uma apologética religiosa e entrou para a política por meio de uma modalidade "científica". O jargão negacionista e anti-semita reproduz intencionalmente atavismos discriminatórios e faz uso de simulações semânticas esdrúxulas, que servem a extremistas, de direita e de esquerda. Como propaganda continua alimentando uma retórica que se mostra especialmente exacerbada e fantasiosa junto aos grupos radicais e fundamentalistas, desde o Irã até os conhecidos Hamas, Hezbolá e Jihad Islâmica[8].
O termo é apropriado apenas ao ódio aos judeus לאשי תאנש, desde aproximadamente a metade do século XIX. Mesmo então, a mistura da oposição cristã e muçulmana aos judeus, da inveja econômica e à competitividade tradicional e dos motivos bio-raciais e nacionalistas ideológicos, torna difícil incluir tudo isso nesse termo essencialmente errôneo. Ele traz confusão a programas de pesquisa, assim como interfere com objetivos de diferenciação. De qualquer modo, todos o usamos, simplesmente porque não elaboramos uma terminologia apropriada. Assim, mesmo sabendo que estamos falando de um absurdo quando usamos o termo, que o usemos, faute de mieux. (Bauer, 2003:1).
O anti-sionismo é uma heterofobia de Estado, movido pela crença na ilegitimidade de Israel, que assim personifica um judeu coletivo. Esse desvio de compreensão política se faz ouvir por vozes de intelectuais de uma esquerda supersticiosa e por seu chamado jornalismo de tendência – o melhor exemplo, no Brasil é a revista Caros Amigos; e quando não é insinuado, é defendido abertamente por uma intelectualidade orgânica ligada a esta esquerda emburrada (nos dois sentidos), que se imagina fortalecida, quando, em verdade, mostra apenas que está empanturrada do velho e pernicioso anti-semitismo.
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[1] Bartov refere-se ao testemunho de David Wodowinski, no julgamento de Adolf Eichmann, registrado na página 1117 da coletânea The Attorney General against Adolf Eichmann:Testimonies, vol. 2 (Jerusalem, 1974- hebraico), citado no livro de D. Michman, The Holocaust and Holocaust Research: Conceptualization, Terminology and Basic Issues, Tel Aviv, 1998, p. 232. Kadish é o nome da prece dedicada aos mortos, na religião judaica.
[2] Sobre os mischlinge, Ver Raul Hilberg, The Destruction of the Eurupean Jews, New-York – London, Holmes and Meyer, 1985 e mais detalhadamente, Bryan Mark Rigg, Os soldados judeus de Hitler, Imago, Rio de Janeiro, 2003.
[3] Foram mortos cerca de 18 milhões de civis europeus durante a guerra. Um em cada três era judeu.Para detalhes sobre o número de vítimas e sobre como se processou o Holocausto desde o início da guerra, cf. Raul Hilberg, op. cit. e Yehuda Bauer, A History of the Holocaust, New York, Franklin Wats, 1982.
[4] A documentação da hecatombe é vasta, bem como o testemunho de sobreviventes e de agentes do extermínio. Algumas das obras mais importantes da histografia crítica sobre o assunto estão referidas na bibliografia que acompanha os ensaios dessa coletânea.
[5] Para maiores detalhes da reunião, ver Mark Roseman, Os Nazistas e a Solução Final. A conspiração de Wanssee: do assassinato em massa ao genocídio, RJ, Jorge Zahar, 2002.
[6] Cf. Zygmunt Bauman, A Modernidade e o Holocausto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1998. pp. 57-82.
[7] Autor de uma vasta obra sobre o Holocausto e o anti-semitismo, Yehuda Bauer escreveu, entre outros, Antisemitism today: Myth and Reality. Jerusalem: Hebrew University. Institute of Contemporary Jewry, 1985; A history of the Holocaust. New York: Franklin Watts, 1982; Jews for sale?: Nazi-Jewish negotiations, 1933-1945. New Haven: Yale University Press, 1994 e Rethinking the Holocaust,New Haven, Yale University. 2001.
[8] Deve-se registrar que há intelectuais árabes e palestinos que sempre denunciaram o anti-semitismo e o negacionismo. Um dos mais conhecidos, Edward Said, faleceu em 2003. Quanto à incorporação ideológica do anti-semitismo no mundo árabe, cito dois exemplos: o primeiro em nível programático e o segundo em nível de mídia de massa. Em 19 de agosto de 2003, um dos líderes principais do Hamas, Abdal Aziz Al Rantizi, publicou o artigo "Qual é o pior - O Sionismo ou o Nazismo?", no seu site (www.rantisi.net ) no qual cita os negacionistas Roger Garaudy e David Irving para sustentar que o Holocausto não ocorreu e que os sionistas colaboraram com os nazistas. Segundo ele, financistas judeus e bancos sionistas ajudaram os nazistas a chegar ao poder com grandes contribuições em dinheiro. O objetivo dos sionistas era, segundo Rantizi, aterrorizar os judeus a ponto de fazê-los migrar para a Palestina. No segundo caso, Em 2002, uma série em 41 capítulos foi exibida na televisão egípcia, que apresentava como verdadeiros os Protocolos dos Sábios de Sião. A imprensa egípcia registrou protestos de alguns intelectuais egípcios contra a série, que alertavam para o uso político de uma fraude e de métodos de propaganda racista, ao mesmo tempo em que configurava um erro tático, pois o Egito mantêm relações com Israel, que embora congeladas, em virtude dos últimos dois anos de sangrento conflito entre israelenses e palestinos, esse país não rompeu nem pretende romper.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico, Nº43, Dezembro de 2004, Mensal, ISSN 1519.6186
Autor: Luis Milman(Doutor em Filosofia, professor da UFRGS)