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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O Hitler "marxista". As falsificações de Hermann Rauschning - Parte 1

Já circulavam no Orkut "frases soltas" de um suposto livro de um alemão (que só não digo que alegaram que ele era historiador porque não salvei print disso e, como o Orkut rodou, o Google tirou do ar como a maioria já sabe, não dá pra recuperar as discussões) "provando" o marxismo de Hitler e consequentemente a falácia da extrema-direita liberal (que se denomina "libertária") de que o "nazismo é de esquerda".

O livro em questão é do Hermann Rauschning. Abaixo segue a explicação sobre o "status" do livro, vale a pena ler até o fim.

Mas irei mostrar mais uma vez porque não discuto esse tipo de idiotice com quem prega esse tipo de distorção. É uma discussão pueril, muitas vezes pior do que as que ocorriam com os "revisionistas" (ao menos esses leem o que pregam, ou têm uma ideia do que discutem, mesmo que façam distorções também).

Quem prega essas mentiras, com veemência (fanatismo tem disso), está assinando atestado de imbecilidade e desonestidade em último grau, ou está afirmando claramente (mesmo sem querer) que não tem ideia do que propaga e só repete bobagem que leu na internet pra defender seu extremismo político.

Só lembro remotamente de uma pessoa querendo discutir essa questão do "nazismo de esquerda" a sério, a pessoa tinha dúvidas e não "certezas", o que propicia um debate. Mas a maioria que repete esse mantra só sabe repetir clichê e defender a distorção, mesmo que mostrem que não tem valor algum.

Não lembro mais exatamente do teor exato das discussões mas lembro das citações desses trechos do Rauschning razoavelmente, era algo bem "bombástico" (entre aspas). Tão "bombástico" que nenhum Historiador de peso sobre nazismo "levou a sério" antes (essa é a parte hilária da coisa). O termo "bombástico" aqui é uma ironia, pois é absurdo alguém crer/achar que algum historiador de segunda guerra/nazismo não tenha ideia de que nazismo é de extrema-direita ou do que se trata o livro de Rauschning, e eles explicam o porquê do nazismo ser de direita/extrema-direita em livros sérios do tema. Há vários títulos nos posts de bibliografia e ranking, basta procurar. Só lê porcaria, hoje, quem quer. Informação não falta, é só procurar.

Sem mais delongas, o livro em questão é do Hermann Rauschning, conservador revolucionário alemão (pois é, existe "revolução conservadora", ao contrário do que certo astrólogo, guru de uma patota barulhenta espalhou dogmaticamente anos a fio na rede como sendo a "verdade das verdades"), que diz ter sido feito de conversações com Hitler. A quem quiser ler mais sobre esse movimento revolucionário conservador alemão, confira o post:
O Movimento Revolucionário Conservador alemão, precursor do nazismo
E a tag (marcador): Conservadorismo

Só há um "pequeno problema" com o livro do Rauschning: o livro é fraudulento, falso, tem crédito zero com historiadores de peso (como o Ian Kershaw, dentre outros nomes, ficarei devendo o trecho) que alegam que Rauschning inventou diversas partes do livro e que o livro é descartável. Só isso basta pra não discutir qualquer trecho reproduzido do livro por fanatismo político e panfletagem.

Podem ler a parte do verbete que comenta o caso e os que contestam, entre o Ian Kershaw (como já citei acima), autor britânico da que é considerada a melhor biografia de Hitler (a mais completa):

Clique em Authenticity of Hitler Speaks pra ler a contestação do livro. (A autenticidade de "Voice of Destruction", é como foi traduzido o título do livro pro inglês, ou uma das traduções). Ficarei devendo a tradução. Pode ficar pruma parte 2 deste post.

Em francês a parte onde comenta que o livro é fraudulento: Hitler m'a dit, une source discréditée

O verbete em português da Wikipedia sobre Rauschning é simplesmente deprimente, não menciona essa questão de que o livro não tem crédito e relata as "conversas" como se fossem sérias. Confirmando o que eu já disse sobre a Wikipedia, o problema dela é a versão em português, onde um bando de cabeças de bagre cortam o que é acrescentado, mesmo se correto, e deixam essa porcaria no lugar por sectarismo ideológico e desonestidade, a versão da Wikipedia em inglês é muito boa e completa. Se o dono do site observar esse problema (a polarização política, fanática, desonesta e sectária que há no Brasil principalmente), melhorará a versão em português.

A quem "chiar" (der piti) porque a Wikipedia foi usada, o conteúdo que consta dela (verbete em inglês) está correto, é isso que importa e não o fato de estar na Wikipedia, há as notas para verificar de onde foram tiradas as informações. Digo isso porque tem uma massa de pedantes (e ignóbeis) neste país que tentam desqualificar a informação/conteúdo só por o mesmo estar na Wikipedia, mesmo se você apontar o livro original (colocar links, trechos etc, como consta aqui e que constará no post da sequência). Repito isso, 'n' vezes se for preciso, porque chega dessa desqualificação ridícula como arma retórica. As citações nos verbetes em inglês contam com as informações nas notas, se o povo não verifica as notas é outra discussão, mas já desqualificam a Wikipedia sem fundamento (refiro-me à versão em inglês, a em português é de fato problemática). Este é um preconceito que perdura mais no Brasil (como vários outros preconceitos).

Voltando ao tema que interessa, a disseminação dessas frases do "Hitler marxista" ou "executor do marxismo" prosseguiram pela web, além do Orkut, obviamente.

Se as pessoas ao menos verificassem esses trechos sensacionalistas, de onde saem, verificariam a falsificação facilmente. Infelizmente a maioria não verifica trechos controvertidos demais (que não são aceitos por nenhuma correta historiográfica), preferem crer em qualquer bobagem que leem na rede.

O mais curioso é que a extrema-esquerda "esperta", que "sabe tudo" (que geralmente tem ranço com este blog por conta do nome), porque quando a gente comenta ou corrige algo deles alguns já ficam irritados porque "não pode estar errado", não souberam rebater/localizar uma bobagem dessas e evitavam participar das comunidades de segunda guerra do Orkut. Vivem num mundo à parte. Toda vez que aparecia uma olavete panfletando besteira sobre segunda guerra (como essa do post), esse pessoal da extrema-esquerda sectária costumava ficar perdido (embora nunca admitissem) por não entenderem que não basta fazer escárnio com esse tipo de extremismo, tem que mostrar seriamente que a panfletagem pregada por esse pessoal é uma distorção, uma mentira. Mostrar de onde foi tirada, o que é aceito como sério etc, indicar alguma fonte séria pro povo ler e não ficar fazendo "gracinha" gratuita por escárnio.

Há um desinteresse nesse pessoal (da extrema-esquerda e esquerda em geral) por temática de segunda guerra, guerra fria etc, mas acham que conseguem rebater o arsenal de distorções da direita radical (que adquiriu certa "tara" por segunda guerra) sem ler esses temas, com sectarismo, ficando em guetos.

Deixando essa questão de lado, irei transcrever uma citação do livro como ela costuma ser repetida a exaustão (inclusive com o nome do autor do livro escrito errado, pra vocês verem, nem um erro desses, banal, a turma da panfletagem corrigiu ou verificou), pois foi por esse trecho que localizei o livro. Inclusive o trecho tem antissemitismo escancarado.

Depois eu "passo" por "chato" (dizer a verdade num país onde grupos radicais inflados pela mídia querem falar mais alto que o Papa está virando um ato de resistência política) por afirmar que esses grupos radicais liberais do Brasil não veem muito problema em endossar esse tipo de panfletagem, embora quando são apertados começam a negar. Essa é a primeira:
"Eu não sou apenas o vencedor do marxismo. Se se despoja desta doutrina seu dogmatismo judeu-talmúdico, para guardar dela apenas seu objetivo final, aquilo o que ela contém de vistas corretas e justas eu sou o realizador do marxismo". (Adolf Hitler, apud Hermann Rauschinning, Hitler m'a dit, Coopération, Paris 1939, pp 211)
Outro erro, o termo "pp" em português é usado como sigla pra "páginas" (plural). Também não corrigiram. A transcrição acima (e as demais) deve ter sido coletada em algum site de extrema-direita francês (traduzidas pro português, mas vai que venham do espanhol), pois cita a edição em francês e o título do livro em francês também.

Quem quiser ver o livro original (em francês), confira neste link abaixo (em PDF):
"Hitler M'a dit" de Hermann Rauschning

E aqui a versão em inglês do livro (em PDF):
THE VOICE OF DESTRUCTION - Hermann Rauschning

Em espanhol (não localizei o PDF):
Hitler me dijo: Entrevista de Hermann Rauschning a Adolfo Hitler

O nome do Rauschning acima (no link dos PDFs do livro) está correto, ao contrário da tradução com erro do nome que está em destaque mais acima, com trecho do livro.

Curioso que num dos sites ou página que colocam essa panfletagem com os trechos do livro, diz que o "livro é raro". O livro é tão raro que tem logo dois PDFs dele acima com cópias, em francês e inglês, pra todo gosto, hahahaha. Se não me engano eu acho até que encontrei isso em espanhol. O livro se encontra a um clique e não o localizaram. Mas pra reproduzir besteira, são rápidos.

Sobre os sites que reproduzem a panfletagem como correta, podem achar pela web, eu não colocarei isto aqui pois não quero esse tipo de fanático enchendo o saco, chorando, achando que vou ceder e concordar com a mentira deles pra não ficarem "chateados". Essa gente olavete, ou neocon brasileiro, é muito, mas muito insuportável/chato, com um nível de discussão ridículo. Foi por isso que evitei ao extremo citar esse povo aqui, nunca os quis por perto, o nível baixa (quando falo em baixar, é no sentido literal: partem pra agressão, xingamento, grosserias e coisas do tipo) e sou chato nesse ponto.

Deixando isso de lado, como entendo melhor o inglês (eu não falo francês, apenas entendo porcamente alguma coisa, por enquanto, dá só pro gasto com ajuda do tradutor), usarei a versão do livro em inglês em vez daquela em francês.

O trecho que destaquei acima segue abaixo da edição em inglês (PDF, pág. 115), com tradução minha na sequência. E como dá pra ver, a tradução que fizeram antes está distorcida (pra variar...):
"I am not only the conqueror, but also the executor of Marxism—of that part of it that is essential and justified, stripped of its Jewish-Talmudic dogma."

"Eu não sou apenas o conquistador, mas também o executor do marxismo-daquela parte dele que é essencial e justificada, tirando dele seu dogma judaico-talmúdico."
E tem mais abaixo, só que sem indicar as páginas e não são traduções minhas, é como são encontradas pela web (eu as localizei na edição em inglês por páginas, num segundo post coloco o texto original com a nova tradução, se for necessária):
"Não é a Alemanha que será bolchevisada, é o bolchevismo que se tornará uma espécie de nacional socialismo. Aliás, existem entre nós nazistas e os bolchevistas mais pontos comuns do que há divergências, e, antes de tudo,o verdadeiro espírito revolucionário, que se encontra na Rússia como entre nós, por toda a parte onde os marxistas judeus não controlam o jogo. Eu sempre levei em conta esta verdade e é por isso que eu dei ordem de aceitar imediatamente no partido todos os ex comunistas"

"Eu aprendi muito do marxismo, e eu não sonho esconder isso. O que me interessou e me instruiu nos marxistas foram os seus métodos. Todo o Nacional Socialismo está contido lá dentro. O nacional socialismo é aquilo que o marxismo poderia ter sido se ele fosse libertado dos entraves estúpidos e artificiais de uma pretensa ordem democrática"

"Que significa ainda a propriedade e que significam as rendas? Para que precisamos nós socializar os bancos e as fábricas? Nós socializamos os homens"
Eu farei uma segunda parte deste post e nela coloco os trechos mencionados acima no livro original em inglês, citando a página do trecho, onde tentarei colocar os comentários do Kershaw (traduzidos, foi por isso que cabe um segundo post, mas tem o link sobre isso em inglês, acima) e outros autores sobre a credibilidade desse livro do Rauschning, já que só tem comentário sobre a fraude desse livro em sites "revisionistas", confiram o texto em inglês e francês (ambos os sites são negacionistas, fica o aviso):
Rauschning's Phony 'Conversations With Hitler': An Update. Mark Weber
Les fausses «Conversations avec Hitler» de Rauschning : une mise au point. Mark Weber

Os "revis" também afirmam que o livro é uma falsificação.

Vejam só a que ponto chegamos, o fanatismo dessa extrema-direita liberal (libertária) é tão grande que até "revis" conseguem demonstrar que algo está errado de tanta cretinice que esses "libertários" (ultraliberais) panfletam sobre nazismo e segunda guerra. Fiz o post na pressa senão acabaria deixando de lado.

Como acho que já mencionei acima (se for redundância depois eu corto, ou corrijo), esta panfletagem é também espalhada em círculos "conservadores neocons", que são reacionários que em tese "odeiam" o nazismo (mas nem tanto assim...). O "ódio" é porque hoje em dia "pega mal" eles declararem amor aos nazis com o sentimento anti-esquerda deles (com a retórica da guerra fria, quem for de esquerda é "comunista"), mas eles não sentem uma aversão "profunda", daí preferem manter "certa distância" desse tipo de denominação (taticamente) até que estoure algum regime fascista de novo na Europa e o Fascismo fique "fashion" (na moda) de novo, pra valer. Já vi vários declararem amor à Marine Le Pen em páginas de Portugal, amor à "verdadeira direita" (rs). Como disse em outros posts, esses "libertários" (ultraliberais) do Brasil são o PSTU da direita. Eles, o Bolsonaro e cia.

Com os últimos posts sobre fanatismo político no país, 3 perfis saíram do blog (da parte "seguir"), só pra mostrar a quanto anda o extremismo político no país.

domingo, 13 de dezembro de 2015

A lista (falsa) de sobrenomes de cristãos-novos de novo, agora na BBC, e a nova lei de Portugal sobre o assunto

A BBC recentemente publicou matéria sobre uma nova lei portuguesa que dá cidadania a brasileiros descendentes de judeus, segue a matéria abaixo:
Saiba como lei portuguesa pode dar cidadania a brasileiros descendentes de judeus

Esta lei copia (ou segue) uma lei semelhante na Espanha, com o mesmo propósito:
A oferta de nacionalidade aos sefarditas satura os consulados espanhóis em Israel

Eu já comentei sobre isso aqui (post "O primo do antissemitismo (filossemitismo) e a mixórdia sobre cristãos-novos e a "concessão" de nacionalidade espanhola" e o jornal El País (Espanha) já comentou sobre a lista falsa com sobrenomes que teriam "direito", listas disseminadas a esmo por grupos evangélicos (alguns se passando por judeus, ou que 'creem' que são):
Seu sobrenome também está na lista (falsa) para obter o passaporte espanhol?

A matéria da BBC Brasil do início do post reproduz a baboseira da lista falsa (ou uma delas). Mas não só ela, basta clicar aqui pra ver outra.

A quem se questionar porque estou fazendo este post, é porque muita gente aparecia em comunidades sobre "revisionismo" vindo encher o saco com esse assunto, com uma obsessão doentia (pleonasmo) com essa questão, na crença de que se se "tornarem" judeus seriam mais "abençoados", "ficarão ricos" etc. Ou seja, o pessoal 'bem-intencionado' repete os estereótipos dos ditos "revis" sobre judeus (sobre riqueza, poder etc).

Geralmente é gente de religião evangélica, ou de algumas denominações no Brasil que criam uma verdadeira mixórdia religiosa misturando idolatria a judeus, judaísmo etc com cristianismo. A quem quiser ler mais, só no verbete em inglês, o verbete em português é entupido de proselitismo religioso.

Essa postura vem importada dos EUA, e essas pessoas ficam circulando em torno desses assuntos apenas por crendice, fanatismo religioso ou mesmo por posturas não muito louváveis (como já citado acima: acham que irão ficar "ricos" ou melhorar status social "virando" judeu). Daí começam a fantasiar sobre "origem judaica" num passado remoto (faz um "pouquinho" de tempo 'meio milênio').

A Record também embarcou na pilha e fez um programa horrível sobre isso.

Sobre o post de um dos links acima (o do filossemitismo), ele foi feito na época que a Espanha fez o mesmo tipo de lei: a de dar cidadania espanhola a quem for descendente de "judeus expulsos" da Espanha na época da Inquisição. Cidadania que torna a pessoa cidadão da União Europeia também.

Seria assunto pra outra post, mas tem a ver com o que se passa. É visível que no Brasil parte da população passa por um problema de crise identitária e fica procurando 'identidades' outras pra se auto-afirmarem ou fazer parte de algum "grupo". Alguma "ascendência nobre" etc. Em vez de se enxergarem como brasileiros ou se proclamarem brasileiros, ficam procurando identidades que julgam ter "mais status" por algum menosprezo ou ódio ao país. Esse tipo de surto não é bom pois descamba pra algum ufanismo qualquer (o extremo oposto do complexo de vira-latas) como aqueles que aconteceram esse ano, com gente urrando com a camisa da CBF (da seleção da CBF) querendo mostrar que são "mais brasileiros" que outros só por ostentarem uma camisa amarela (como se isso tornasse alguém brasileiro ou mais brasileiro que outros), quando parte desse povo sente um menosprezo profundo pelo país.

Mas indo ao ponto.

Primeiramente, um sobrenome genérico numa lista não é prova que alguém seja descendente de algum judeu/judia convertido ao cristianismo (catolicismo) na época das inquisições.

A maioria dos sobrenomes (senão todos) dessas listas eram sobrenomes também de cristãos-velhos (se há o "novo" é porque havia o "velho", dã! rs), que eram os cristãos não convertidos ou cristãos não-judeus.

Pena que perdi os links (do Orkut) que tinham alguns ensaios sobre esse tema, mas também houve muçulmanos convertidos à força ao cristianismo na Península Ibérica e havia os moçárabes. Nunca ouviu falar deles? Clique aqui e aqui. Resumidamente (pois sei que tem gente que não vai clicar nos links), moçárabes eram cidadãos ibéricos, cristãos, que adotavam a cultura da potência invasora/dominante (então árabe e muçulmana), língua etc.

Ou seja: e se você for descendente, não de judeus, mas de algum moçárabe ou muçulmano árabe convertido ao cristianismo na época da Inquisição que veio ao Brasil e Américas? Vai pular do penhasco por isso? rs.

Por que fiz esta pergunta irônica (a do "pular do penhasco" com raiva? Se você tem visto os comentários de ódio irracional, movido por ignorância extrema, desses grupos contra muçulmanos entenderá o porquê da ironia com a pergunta. Veja que no Brasil nem tocam no assunto.

Só pra dar uma ideia da extensão genética da coisa, já que não achei a matéria que saiu sobre isso há algum tempo. Segue esta matéria em espanhol sobre o DNA na Espanha, Portugal segue um padrão semelhante:
Uno de cada tres españoles tiene marcadores genéticos de Oriente Medio o el Magreb (El Mundo, Espanha)

É a parte anedótica dessa "busca" (entre aspas) por antepassados judeus no Brasil. A pessoa pode descobrir que é descendente de algum moçárabe ou muçulmano convertido ao cristianismo à força. Curioso que as matérias não tocam no assunto.

Em resumo: essas listas com sobrenomes não servem pra coisa alguma.

Causa constrangimento e vergonha alheia ver a publicação dessas listas.

Pra você provar que tem algum antepassado judeu/judia convertido de forma remota (pois faz tempo...), vai ter que fazer uma "escavação arqueológica", provar genealogicamente a coisa, até porque não irão dar cidadania por "brinde", a menos que seja um grupo minoritário que conseguiu preservar desde essa época o culto judaico etc. Além de outros problemas com o tema: houve gente que se converteu porque quis também. Não era "status" ser judeu na colonização das Américas, essa coisa de "ser judeu pra ter status" é algo recente, novo, pós-segunda guerra. Até a segunda guerra muita gente mascarava isso com medo de perseguição e preconceito/racismo.

Só lembrando: a maioria absoluta dos convertidos se assimilaram à Espanha, Portugal ou outros países em que se fixaram. Sentiam-se parte dessas sociedades, mas não como "judeus".

Não avaliem o passado com anacronismo (repassando pruma época remota valores de hoje). Não havia internet na época, rastros se apagam com certa facilidade, principalmente num "mundo" onde tudo era precário.

Muita gente na época não queria ser "judeu", a não ser por questão de fé, porque a perseguição cedo ou tarde seria inevitável. A menos que alguém seja masoquista (tirando o que permanecia judeu por convicção religiosa), não era uma boa religião (do ponto de vista de se manter vivo) pra alguém se converter ou permanecer nela.

Muitas famílias adotaram sobrenomes de cristãos-velhos e se assimilaram totalmente a esses países (Portugal e Espanha), não sendo tão fácil rastrear a mudança. Não estamos falando de algo com 50 anos e sim de meio milênio. A maioria se sentia ou português ou espanhol, ou descendentes dos mesmos, professando o cristianismo (tornavam-se católicos).

Querer escavar essas coisas (tirando o pessoal de História, arqueologia etc, o pessoal das ciências, que tem que escavar mesmo) por fanatismo religioso e oportunismo, em minha opinião, não passa de escrotice da grossa, além de uma cretinice sem tamanho.

No vídeo da Record mostra uma pessoa seguindo (imitando) ritual judaico provavelmente por ser evangélico e com base nessa ideia de que sobrenome tal torna essas pessoas judias. É um crime (mentira) o que estão fazendo com essas pessoas, fora a ignorância histórica profunda.

Em suma, eu fico com vergonha do conteúdo dos programas com conteúdo "histórico" que passam no país. Ainda mais a BBC reproduzindo essa papagaiada sem avaliar a informação que repassa. A BBC tem um histórico problemático de conteúdo, tem bons documentários mas a cobertura jornalística é enviesada, tanto como a Globo (essa nem enviesada é mais, é partidarizada mesmo). Saem copiando listas de sites evangélicos ou de "judeus messiânicos" (evangélicos que 'pensam' que são judeus, pra proselitismo religioso) na web que dizem ser de "marranos" e colocam essas coisas sem critério algum, além de atiçarem a neurose de grupos antissemitas que veem judeus na sombra, na esquina, em qualquer canto.

Por isso que disse num dos posts (não só eu) que o 'filossemitismo' anda junto do antissemitismo, são unha e carne.

Chega a ser ridículo que Espanha e Portugal apresentem uma lei dessas (de "reparação", entre aspas) 500 anos depois que mataram gente por fanatismo religioso e racismo. Era melhor só ter admitido que cometeram os crimes e pedir desculpas pelo ocorrido (e põe pedido tardio nisso) e assunto encerrado. Esses países não estão reparando coisa alguma, só sendo hipócritas.

E um adendo, porque a internet infelizmente está infestada de gente fanática: eu não tenho interesse em discutir religião/religiões com A, B ou C, tampouco sou religioso. A quem quiser pregar a "verdade" (religiosa) pra mim, está dando viagem perdida. Digo isso porque no Orkut aparecia muita gente confusa (eu diria que até "perturbada") enchendo o saco com esse tipo de assunto/neurose quando esse pessoal deveria procurar ajuda especializada pra tratar disso, já que nem interpretar um texto direito conseguem ou querem. Estou sendo duro no comentário porque chega uma hora que a coisa extrapola e irrita de verdade, a gente vai "relevando" por educação, mas uma hora estoura.

O texto acima não trata de "crença" e sim de História, trata sobretudo da proliferação do preconceito no país, que se dá também através desse fanatismo religioso sectário e disseminação de mentiras como as citadas acima (listas falsas etc).

No Brasil a mídia (generalizando) serve mais pra dinamitar o país do que ajudar no progresso do mesmo.

domingo, 6 de dezembro de 2015

"Mein Kampf" (Minha Luta) regressa às bancas alemãs

Instituto histórico de Munique quer fazer edição pedagógica da obra que inspirou o regime nazi.


Numa altura em que o fluxo de refugiados a entrar na Alemanha está a gerar uma onda de descontentamento e a reacender os fantasmas da xenofobia , uma instituição universitária germânica vai lançar, em Janeiro do próximo ano, o manifesto ‘Mein Kampf’, de Adolf Hitler.

O livro, que explica a ideologia racista e antissemita que inspirou o regime nazi, foi publicado pela primeira vez em 1925, oito anos antes de Hitler chegar ao poder em Berlim. Na altura passou razoavelmente despercebido. Hitler era um ilustre desconhecido e livros de temática antijudaica eram muito abundantes na Europa de então – tinham passado apenas 30 anos sobre o caso de alta traição de Alfred Dreyfuss, que abalou todo o continente e afundou França num momento de vergonha nacional.

O Instituto de História Contemporânea, sediado em Munique, vai imprimir uma edição da obra de quatro mil exemplares, onde o texto original será acompanhado de mais de 3.500 notas, que pretendem assumir um cariz pedagógico oposto às propostas incendiárias do responsável direto pela morte de mais de seis milhões de judeus durante o conflito mundial de 1939/45.

Andreas Wirsching, diretor do instituto, já disse que o texto com comentários de especialistas irá “quebrar o mito” em torno do manifesto: trata-se de "um trabalho acadêmico" que, afirmou, pretende ir mais longe que as publicações “irresponsáveis” que estão amplamente disponíveis nas livrarias de segunda mão. Também Thomas Krüger, presidente do Centro para a Educação Política, uma organização estatal, veio defender a publicação, dizendo que é importante “quebrar o tabu ‘Mein Kampf’”.

A publicação da obra foi proibida logo a seguir à derrota dos nazis em 1945 e os seus direitos atribuídos pelas potências ocupantes ao Estado da Baviera. Segundo a lei germânica, estes direitos cessam ao cabo de 70 anos, em Janeiro de 2016, pelo que ‘Mein Kampf’ passa a ser de acesso livre no mercado. E para que ninguém faça uso abusivo da obra de Hitler – que foi um ‘best-seller’ com mais de 12 milhões de cópias –, as autoridades judiciais alemãs decidiram no passado que não deveria existir uma edição acrítica do livro. Mas, para já, não se livram das críticas de diversas instituições e grupos ligados à diáspora judaica – que alegam que a obra nunca mais deveria ver a luz do dia. Temem que a ‘bondade’ da nova edição se perca no meio da situação explosiva que se vive na Alemanha por estes dias.

03 Dez 2015 António Freitas de Sousa
antonio.sousa@economico.pt

Fonte: Económico (Portugal)
http://economico.sapo.pt/noticias/mein-kampf-regressa-as-bancas-alemas_236493.html

Ver mais:
“Mein Kampf”. O livro proibido de Hitler volta a ser publicado na Alemanha 70 anos depois (Observador, Portugal)

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Hitler era astuto, não tanto hipnótico, diz nova biografia alemã (Peter Longerich)

BERLIM (Reuters) - Uma nova biografia de Hitler escrita por um proeminente historiador alemão deve gerar controvérsias com seu argumento de que a perspicácia política do líder nazista foi subestimada e de que a crença de seu domínio hipnótico sobre os alemães é inflado.

O livro "Hitler", de Peter Longerich, que será publicado na segunda-feira é um tomo de 1.295 páginas que inclui material sobre os diários do chefe de propaganda nazista Joseph Goebbels e os primeiros discursos de Hitler.

"De modo geral, você tem uma imagem de um ditador que controlou muito mais, que era mais envolvido de perto em decisões individuais do que se pensava anteriormente. Eu quis colocar Hitler como uma pessoa de volta ao centro", disse Longerich em entrevista à Reuters.

Trabalhos recentes sobre o Terceiro Reich têm colocado mais ênfase nos climas social e político que levaram à ascensão do nazismo após a derrota na Primeira Guerra Mundial e as demandas de reparação incapacitantes.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, os alemães agarraram-se na crença de que eles foram mantidos reféns de uma gangue criminosa liderada pelo carismático Hitler, empenhada em conquistar a Europa e exterminar judeus.

Longerich, professor da Universidade de Londres, argumenta que enquanto todas as políticas de Hitler e os resultados foram catastróficos, ele agiu de maneira inteligente em situações específicas.

"A questão de porquê ele conseguiu chegar tão longe precisa ser abordada: Obviamente ele tinha habilidade para explorar situações individuais em seu interesse próprio e para seus objetivos próprios", disse ele.

Mesmo suas políticas raciais foram em grande parte devido a um oportunismo político, disse Longerich, que não acha que Hitler era radicalmente anti-semita na sua juventude.

"Nos anos de 1919-1920 ele percebeu que poderia ser bem sucedido em política ao abraçar e incitar o antissemitismo", disse, acrescentando que isso virou elemento central apenas em 1930.

A habilidade de Hitler de tomar o poder é ainda mais impressionante dado que o estudante de arte nascido na Áustria era um "ninguém" sem ideologia até seus 30 anos. Apenas então, recusando-se a aceitar a derrota da Alemanha, ele foi levado ao recém-criado Partido Nazista.

Longerich também busca desmascarar a teoria de que Hitler tinha um carisma irresistível que cativou os alemães, argumentando que ela foi em grande parte construída artificialmente pela máquina de propaganda nazista, que bombardeou imagens de fãs extasiados em comícios.

O autor não exonera os alemães, dizendo que grande parte da população apoiou Hitler enquanto outros foram oportunistas em segui-lo, mas argumenta que havia uma tensão social e um descontentamento, por exemplo dentro da Igreja.

"Não seria lógico pensar que um país profundamente dividido como a Alemanha de repente se uniu por trás de uma pessoa e compartilhava de uma única visão política", disse Longerich.

Setenta anos após sua morte, as atitudes dos alemães em relação a Hitler ainda estão evoluindo, disse Longerich.

"Eu não acho que há qualquer entusiasmo por Hitler, mas estamos vendo tabus sendo quebrados", afirmou ele, citando filmes recentes sobre o ditador e um debate sobre a publicação "Minha Luta".

Com um crescimento de temores sobre o radicalismo de direita na Alemanha, por conta da crise dos refugiados, ele alerta que com uma atmosfera política "mais dura", "o potencial de uma figura política singular é um fator que não deve ser subestimado".

(Por Madeline Chambers)
sábado, 7 de novembro de 2015 11:01 BRST

Fonte: Reuters Brasil
http://br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRKCN0SW0GH20151107
Hitler was shrewd, not so hypnotic, new German biography says (Reuters, EUA)

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Goebbels: "Mauer relata fuzilamentos em massa de judeus na Ucrânia"

Sou grato a Jason por encontrar esta citação, traduzida deste texto alemão de 19.10.41, também apontado em Herf.
Mauer relata fuzilamentos em massa de judeus na Ucrânia.

Ele pede com urgência material explicativo para a população ucraniana, porque eles não entendem a necessidade de tais medidas severas contra os judeus.

O Bolchevismo enfraqueceu o instinto antissemita no povo da União Soviética; em muitos aspectos, teremos que começar do zero aqui.

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2015/10/goebbels-mauer-reports-massive.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: Goebbels: "Mauer reports massive shootings of Jews in the Ukraine"
Tradução: Roberto Lucena

terça-feira, 15 de setembro de 2015

"O mito do "bom italiano", o antissemitismo e os crimes coloniais" [Fascismo]

Fascistas Italianos enforcando e matando Etíopes
(1935 – 1941)
A quem quiser ler (um aviso: está em inglês, apesar de ter título em espanhol e resumo também neste idioma), segue abaixo um PDF/texto com um "paper" tratando do mito do "bom italiano", ou mais precisamente do "bom fascista" italiano.

Mito propagado pra criar uma diferenciação entre os crimes dos nazistas (da Alemanha) e os fascistas (Itália), pra criar o mito dos "dois fascismos" como se só um tivesse cometido crimes bárbaros (fosse mais brutal) e o outro, em essência, fosse uma "coisa mais amena" quando serviu de inspiração pro fascismo alemão (nazismo). A mesma questão da mitificação debatida no texto também serve pra analisar os outros fascismos: espanhol, português etc.

O mito é tão propagado que até no livro "Holocausto: uma História" (Holocaust: A History em inglês) da Debórah Dwork e do Robert Jan Van Pelt (mas quem escreve esta parte aparentemente é ela, pelo menos a escrita é bem dela), ela de forma grotesca repete essa mitificação dos fascistas italianos para distingui-los (citando por alto, de memória) dos fascistas croatas (Ustashi) como se os fascistas da Itália fossem "lordes" ou coisa parecida, o que como fica claro no texto/ensaio (caso alguém queira lê-lo por completo), é uma tolice, e principalmente encontrar isso num livro sobre Holocausto.

Como o texto é longo (são 10 páginas no link do PDF), é inviável traduzi-lo e colocar aqui. Mas seria um erro não divulgar este texto/ensaio sobre a questão já que este mito é muito propagado e o povo o repete muitas vezes por puro desconhecimento e repetição automática de informação superficial sobre segunda guerra e crimes de guerra na mesma, sem falar na omissão das atrocidades italianas na Etiópia.

Resumo do texto (tradução minha):
"Meu texto pretende reconstruir as peripécias do mito do "bom italiano" na historiografia internacional com o propósito de analisar suas consequências na minimização do antissemitismo fascista. Em primeiro lugar, remontarei-me às origens do mito, considerando os motivos da atitude fascista nos departamentos ocupados pelas tropas italianas entre novembro de 1942 e setembro de 1943.

Na continuação, rastrearei a incidência deste clichê na historiografia do pós-guerra, particularmente nos livros dos historiadores León Poliakov e Renzo De Felice. Em terceiro lugar assinalarei que, em sua maior parte, os estudos recentes sobre o tema não retificaram esta interpretação incorreta. Ao mesmo tempo tentarei evidenciar que o antissemitismo fascista não cobrou forma seguindo as leis raciais nazis, senão de forma autônoma, seguindo uma regulação prévia da discriminação que havia sido introduzida na Etiópia pela administração colonial."

Título: THE MYTH OF THE “GOOD ITALIAN”, THE ANTISEMITISM AND THE COLONIAL CRIMES
("El mito del “buen italiano”, el antisemitismo y los crímenes coloniales")
Autor: Diego Guzzi
Link do PDF/Texto: http://www.constelaciones-rtc.net/04/04_14.pdf

Observação: obviamente que se o autor do texto pedir a remoção do mesmo, serei obrigado a removê-lo, embora até hoje nenhum tenha pedido isso, mesmo porque o texto se encontra disponível publicamente na web e o autor foi citado acima (foi dado os créditos, como é de direito), bem como o link pro PDF original também foi colocado.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A mente de Rosenberg, ideólogo do Holocausto, exposta. "Alfred Rosenberg. Diarios (1934-1944)" [livro]

Madrid, 7 set (EFE).- Pela primeira vez serão publicados mais de 400 páginas do diário de cabeceira do nazista Alfred Rosenberg com o título de "Alfred Rosenberg. Diarios (1934-1944)", o testemunho inédito em primeira pessoa de uma dos ideólogos do Holocausto, a quem foi apelidado por Hitler como "o pai da Igreja nacional-socialista".

Assim, esses diários, que saem amanhã em castelhano, num volume publicado pela Crítica (editora), completam-se com um amplo prólogo e 23 documentos com os discursos e artigos do nazi e os comentários dos editores do livro, os alemães Jürgen Matthäus e Frank Bajohr.

Além disso, o volume, que ocupa mais de 700 páginas, inclui também outros arquivos que ajudam a completar esta radiografia de uma das mentes mais influentes do Partido Nacional-Socialista da Alemanha.

E é um desses documentos, precisamente, onde se recolhe a proposta de Rosenberg (Talim, 1893 - Nuremberg, 1946) de levar a cabo o "extermínio biológico de todo o povo judeu na Europa".

Contudo, chama a atenção a sutileza desses "Diários" na hora de se referir ao Holocausto por parte de Rosenberg, a quem se cuidou de não incluir em suas memórias comentários explícitos sobre o extermínio judeu.

Mas isto não é algo novo nas memórias que se conhecem dos dirigentes nazistas, pois o mesmo cuidado se pode observar nos diários de Josef Goebbels, competidor, de fato, de Rosenberg, a quem mostra sua aversão pelo ministro da Propaganda de Adolf Hitler, referindo-se a ele, por exemplo, como "foco de pus".

Para a publicação desses "Diários", seus editores elaboraram uma primeira parte de moto que a introdução aporta pequenas pinceladas sobre a vida de Rosenberg e de seu papel num dos episódios mais terríveis da História do século XX.

Neste sentido, também abarca a história do paradeiro dos diários, que foram encontrados em 2003 depois de ter estado até 1993 em poder de Robert M.W. Kempner, um dos assessores legais estadunidenses durante os julgamentos no Tribunal Militar de Nuremberg e promotor no procedimento conhecido como "o caso dos ministérios".

Depois da morte de Kempner, em 93, o Museu do Holocausto estive mais de uma década buscando os documentos que faltavam, entre eles este diário, que o promotor havia retido ilegalmente, foi encontrado completo em 2013 e passou a fazer parte do Museu do Holocausto.

Depois desta introdução, as páginas dão passo ao conteúdo "reproduzido" dos diários de Rosenberg. Inclusive conservam seus "erros de ortografia, abreviaturas, rasuras, sublinhados e incoerências", segundo indicam os editores.

As anotações daquele que foi ministro para Assuntos do Leste do Führer se interrompem em 3 de dezembro de 1944, última data na qual Rosenberg escreve, a partir de seu refúgio em Berlim.

Alfred Rosenberg nasceu em Talim (Estônia) no seio de uma família germano-báltica e posteriormente cursou Arquitetura em Riga e Moscou e chegou à Alemanha em 1918, onde não tardou para se introduzir nos círculos nacionalistas alcançando certo renome como autor de textos políticos de orientação antissemita e anticomunista, antes de se unir ao regime nazista.

Ao fim de seus dias, foi acusado em Nuremberg de crimes contra a humanidade, crimes de guerra, participação na preparação de uma guerra de agressão e crimes contra a paz, acusações das quais foi declarado culpado e condenado à pena de morte. Foi executado na forca, em 16 de outubro de 1946.

Os editores do livro foram Frank Bajohr, desde 2013 diretor de pesquisa do Centro de Estudos do Holocausto no Institut für Zeitgeschichte em Munique, e Jürgen Matthäus, que desenvolve seu trabalho profissional no Museu Memorial do Holocausto em Washington DC.

eca/crs/ram
Cultura | 07/09/2015 - 16:38h
Elena Cortés.

Fonte: La Vanguardia (Espanha)
http://www.lavanguardia.com/cultura/20150907/54436319188/la-mente-de-rosenberg-ideologo-del-holocausto-al-descubierto.html
Título original: La mente de Rosenberg, ideólogo del Holocausto, al descubierto
Tradução: Roberto Lucena

Observação: este diário havia sido divulgado, online, pelo USHMM, anos atrás. Só que pelo tamanho do livro o material exibido pelo museu na época não foi integral (suponho).

Esta edição em espanhol saiu primeiro que a edição em inglês do livro, pelo menos no site de uma loja de vendas grande dos EUA o título em inglês ainda está em reserva. Tanto que já saíram algumas matérias do lançamento do livro todas em jornais da Espanha. Redundante dizer, mas... (tem gente que só entende com a menção), não saiu o título traduzido no Brasil e nem indicação de que irá sair.

sábado, 27 de junho de 2015

Os incompatíveis. À luz do passado fascista de Mircea Eliade através de Mihail Sebastian

Mihail Sebastian // Mircea Eliade
A amizade entre o estudioso das religiões Mircea Eliade e o novelista Mihail Sebastian era tão prometedora como o mundo na qual ela nasceu: a esperança palpável de um futuro melhor para Romênia, de um esperado debut literário para ambos e o amor compartilhado de uma mulher excepcional. Contudo, o surgimento do nazismo obscureceu tudo e os arrastou a um desencontro inimaginável pouco anos antes. Agora, a publicação malograda de uma série de livros permite reconstruir a história dessa amizade desde todos seus pontos de vista - assinados, todos, por uma extraordinária peculiaridade romena: a compatibilidade de incompatibilidades.

Por Juan Forn

Como Heidegger, Mircea Eliade também tinha um esqueleto no armário. Como Heidegger, os pecados políticos de Eliade implicaram numa traição a um ser querido. No caso de Heidegger, sua amante, a jovem Hannah Arendt. No caso de Eliade, seu melhor amigo de juventude, o escritor Mihail Sebastian. Diferentemente de Heidegger, Eliade nunca voltou a ver sua vítima: Mihail Sebastian morreu um ano depois do término da Segunda Guerra. Mas tal como Heidegger foi (para muitos incompreensivelmente) perdoado por Arendt, Mihail Sebastian terminou condenado sem resolver a questão com Eliade na tumba, e quando seu cadáver estava há mais de quatro décadas enterrado, Eliade passou este mesmo tempo desfrutando sua glória acadêmica nos Estados Unidos.

Talvez seja imprescindível ser judeu e romeno para entender em sua justa proporção a trágica história de Eliade e Sebastian. Ou talvez o alcance em ler a formidável novela autobiográfica "El regreso del húligan" (O regresso do hooligan), de Norman Manea (e seu livro de contos "Felicidad obligatoria" e seus ensaios como "Payasos. El dictador y el artista"), para entender que uma história não termina até que alguém a conte, alguém para quem essa história contém cifrada sua identidade como escritor.

Vamos por partes. Norman Manea é judeu e romeno ("um judeu do Danúbio" como prefere dizer ele), nascido trinta anos mais tarde de Eliade e Sebastian na Bucovina, no confim do Império Austro-Húngaro, que depois da Primeira Guerra se converteu em território romeno. Ao contrário de seus vizinhos, a Romênia (o mais latino dos países mitteleuropeus, ou Europa Central) pelejou aquela guerra no grupo oposto ao Kaiser e, no reparto posterior à vitória, o Tratado de Versalhes a premiou com os territórios da Bucovina e da Bessarábia. Nunca foi tão grande e próspero o território romeno (Bucovina, por exemplo, hoje pertence à Ucrânia); nunca foi mais mentiroso o comportamento dos romenos: na encruzilhada, a que vai do ano '30 até a entrada na Segunda Guerra ao lado dos nazis, Norman Manea situa o começo da quebra moral de seu país, com a escalada nacionalista antissemita, que não só havia de arrasar com a amizade entre Eliade e Sebastian, como que, décadas depois, terminaria convertendo a Romênia de Ceaucescu no único regime totalitário do mundo que praticava o comunismo e o fascismo ao mesmo tempo.

Eliade e Sebastian se conheceram em meados dos anos '20 ao ingressar na Universidade de Bucareste. Os dois queriam ser escritores, os dois mostravam um talento igualmente promissor, os dois eram (como os também jovens Emil Cioran e Eugene Ionesco) discípulos do famoso professor de lógica e metafísica Nae Ionesco. Eliade era, como seu mestre, cristão ortodoxo. Sebastian, cujo verdadeiro nome era Iosef Hechter (já veremos porque adotou em seus documentos esse pseudônimo em 1935), havia nascido no mesmo povoado do seu mestre, Braila, mas era judeu. A amizade entre ambos os jovens se desenvolveu sob a tutela de Ionescu e de uma jovem chamada Nina Mares, que seria primeiro namorada platônica de Sebastian e depois se casaria com Eliade. Nina passava à máquina os primeiros textos de Eliade e Sebastian enquanto eles percorriam o país dando conferências como membros da Associação Cultural Criterion, pregando o advento de uma nova literatura romena (eram anos de fervente curiosidade intelectual naquele país: para entendê-lo cabalmente, pode-se mencionar o fato de que os editores franceses, italianos e alemães vendiam quase uma décima parte de sua produção a livrarias romenas).

Sebastian adquiriu logo renome como jornalista ao se graduar, Eliade preferiu ensinar na universidade (uma viagem pela Índia que fez em fins dos anos '20 definiu a orientação intelectual de sua carreira), mas os dois jovens seguiam apostando em segredo pelas novelas que estavam escrevendo e que o professor Ionescu havia prometido prefaciar. Assim chegamos ao ano de 1934. Sebastian termina sua novela e a entrega a Ionescu para que ele escreva o prólogo. Entretanto, chamuscado pelos novos ares que sopravam da Itália e Alemanha, Nae Ionescu começou a se distanciar do cosmopolitismo pan-europeu e a predicar as bondades do fascismo mussoliniano e do programa de depuração nacionalista que pregava Adolf Hitler direto das páginas de Mein Kampf. Ionescu não havia se juntado ao movimento ultranacionalista Guarda de Ferro (fato que produziria a falência da Criterion), mas o texto que escreve para a novela de Sebastian (uma saga sobre os judeus do Danúbio intitulada "Desde hace dos mil años") é de uma virulência estremecedora. Em todo o prólogo se refere a Sebastian não pelo pseudônimo escolhido mas por seu sobrenome judeu, sustenta que a identidade romena se baseia de forma "inalienável" no cristianismo ortodoxo e diz coisas tão incendiárias como: "Iosef Hechter, tu estás enfermo porque só podes sofrer. Iosef Hechter, não sentes como se apoderam de ti o frio e as trevas?"

Ainda que Sebastian comentara perturbado a Eliade quando lhe mostrou o prólogo: "É uma autêntica condenação à morte", não se atreveu a retirá-lo antes da publicação. O livro produziu o previsível escândalo. Acusado pela esquerda e pela direita (de "inimigo" pelos judeus e de "pária" pelos nacionalistas), Sebastian não só adotou em seus documentos seu pseudônimo literário senão que escreveu uma resposta a todos aqueles ataques, um livro tão breve como potente que intitulou: "Cómo me hice húligan" ["Como me tornaram um vândalo"] (nesse mesmo ano Eliade havia publicado finalmente sua novela, chamada "Los jóvenes bárbaros"- título em romeno Huliganii -; é sugestivo assinalar que, nos anos comunistas na Romênia, aquele termo se usaria para assinalar a todo o inimigo do regime). O certo é que Eliade foi um dos poucos integrantes da Criterion que saiu em defesa de Sebastian, mas lentamente ele também adotou o rumo ideológico de seu mentor Ionescu, para então alcunhar "o Sócrates legionário". Em 1936 Eliade escreveu: "Sem delongas, sim, Mussolini é um tirano. Mas me interessa uma só coisa: que ele transformou um Estado de terceira ordem em uma das potências do mundo" (este sugestivo olhar internacional não se limitava à Itália; também disse o seguinte sobre a Hungria e Bulgária em 1937: "Dos chefes políticos da Transilvânia heroica, castigados e humilhados durante séculos pelos húngaros, o povo mais imbecil que existe na História depois dos búlgaros, esperamos nós uma Romênia nacionalista, armada, vigorosa, implacável e vingadora").

Muito já discutiram os intelectuais romenos que ficaram e os que se exilaram se Eliade pertenceu ou não à Guarda de Ferro. O certo é que, quando em 1938 a cúpula legionária (incluindo Ionescu) foi presa, Eliade se trasladou de apuro a Londres, onde logo se somou à delegação diplomática do governo militar de Antonescu na Inglaterra, até que a entrada da Romênia na guerra do lado nazi o obrigou a se trasladar para a embaixada de seu país em Lisboa (em Portugal Eliade passou toda a guerra; ali escreveu fervorosos elogios ao tirano Salazar e aos "mártires" franquistas da Guerra Civil espanhola). Sebastian permaneceu na Romênia, sobreviveu por milagre às purgas antissemitas e, em determinado momento de 1942, quando Eliade voltou à Bucareste incógnito (levando uma mensagem de Salazar para Antonescu), tentou contatá-lo para lhe pedir ajuda, mas Eliade evitou vê-lo. Até então, Sebastian outorgava o benefício da dúvida a seu amigo, mas esse episódio decretou o fim da amizade.

Em agosto de 1944, caiu o regime pró-nazi de Antonescu, os russos entraram em Bucareste e a Romênia se juntou aos Aliados na arremetida final contra a Alemanha. Em dezembro de 1944, Sebastian se inteirou da morte de Nina Eliade e escreveu em seu diário: "Uma onda de recordações se levanta do passado. Seu quartinho na pensão: a máquina de escrever na qual copiou as novelas de Mircea e minha, seu inesperado amor, sua boda civil em segredo, nossos anos de amizade fraternal e depois os anos de confusão e desintegração até a ruptura, a inimizade e o esquecimento. Tudo está morto, desaparecido, perdido para sempre". Menos de três meses depois, reabilitado pelo novo governo com uma cátedra na recém fundada Universidade Livre e Democrática, Mihail Sebastian esperava o bonde para dar sua primeira aula quando um caminhão o atropelou e o matou na hora. Eliade escreve a respeito em seu Diário português: "Tenho me inteirado pela Rádio Romênia de que Mihail Sebastian morreu ontem. A notícia me transtorna. Em meus sonhos era uma das poucas pessoas que me haviam feito Bucareste ser suportável. Inclusive durante meu clímax legionário o senti perto de mim. Contava com essa amizade para voltar à vida e à cultura romenas. E agora se foi atropelado por um caminhão! Com ele se vai também minha juventude. A maioria da gente que quis está mais além. Sinto-me mais só que nunca. Adeus, Mihail".

Terminada a guerra, Eliade se trasladou para Paris, onde foi professor da Ecole des Hautes-Etudes. Nos anos '50 emigrou para os Estados Unidos, onde alcançou a celebridade mundial como estudioso das religiões e onde morreu, em Chicago, em 1986. Diferentemente de Cioran, que na velhice confessou com escárnio suas simpatias legionárias da juventude (em seus diários evoca várias conversas com Ionescu nas quais, corado, pergunta-se: "Como pode ser tão insensato?"), Eliade deixou escritos quatro tomos de memórias mas nunca fez a menor luz sobre seu passado legionário (o médico de cabeceira que assinou seu atestado de óbito era outro romeno exilado de nome Alexandru Ronett, fervoroso legionário que havia dado asilo em seu hogar norte-americano à sobrinha do sanguinário chefe da Guarda de Ferro, Corneliu Codreanu).

Pouco depois, Beno Sebastian, o irmão mais novo de Mihail, morreu em Paris em 1990, sua filha entregou para sua publicação o diário que escreveu Mihail entre 1935 e 1944, um texto que havia sido tirado clandestinamente da Romênia e que Beno se negou a dar a conhecer em vida. Eliade já havia morrido há dez anos quando o texto por fim foi publicado, em 1996, e desatou a polêmica. Sob a pressão da adversidade e do horror, Mihail Sebastian conserva nas páginas de seu Diário a graça da inteligência. O tom intimista, a mistura de afeto e horror com a qual retrata a evolução de suas amizades (em particular as de Eliade, Cioran e Nae Ionescu) e os infortúnios que lhe tocam viver é demolidora. Sebastian nunca acreditou que sobreviveria à guerra. Mas escrevia essas páginas não para a posteridade senão unicamente para si, para manter secretamente sua relação com a escritura (como judeu, era proibido de publicar e ser jornalista).

O texto mais explosivo que se escreveu sobre a relação de Eliade e Sebastian o fez Norman Manea. Exilado ele mesmo do regime de Ceaucescu, e antes sobrevivente do campo de concentração durante a Segunda Guerra, Manea sofreu na própria carne o antissemitismo romeno e essa bizarra combinação de stalinismo e fascismo que asfixiou durante décadas seu país. O texto no qual compara o Diário de Sebastian com as Memórias e o Diário português de Eliade foi publicado na prestigiosa revista The New Republic (com o título "Felix culpa") e lhe valeu ameaças de morte provenientes tanto da Romênia pós-comunista como dos grupos de exilados romenos nos Estados Unidos. Manea se converteu para os romenos no que Orhan Pamuk representa para os turcos. Isso não evitou que Manea duplicasse a aposta alguns anos depois com sua novela "El regreso del húligan", um tipo de summa autobiográfica que funciona por sua vez como novela picaresca, ensaio político e afresco histórico do século XX romeno, e que lhe valeu desde sua aparição a candidatura ao Nobel.

Celebrado por autores como Claudio Magris, Philip Roth, Milan Kundera, Saul Bellow, Imre Kertesz e Antonio Tabucchi, o formidável livro de Manea propõe um contraponto entre a primeira viagem a sua terra natal depois de exilado (comparável ao que Tzvetan Todorov fez à Bulgária no "El hombre desplazado", em português "O homem desenraizado") e a história de sua vida na Romênia desde o momento em que seus pais o engendraram em Bucovina, no mesmo ano em que Eliade publicou sua novela hooligan e Sebastian seu manifesto anti-hooligan (a referência não é gratuita: os pais de Manea o conceberam nos altos de uma livraria onde ambos os livros, recém publicados, são o centro de um prolongado e febril debate sobre o futuro entre os mais jovens membros do clã Manea e seus amigos, que ignoram que pouco depois seriam arreados em conjunto para campos de concentração da Transnístria).

Manea relata com o mesmo desembaraço a episódios completamente incompatíveis. Vale a pena mencionar dois deles, arrepiantes: num conta como a polícia secreta romena convenceu a seu melhor amigo para que o espiasse, em troca de uma cama de hospital para seu pai moribundo (o amigo confessa isso a Manea e entre ambos redigem os relatórios de delação, assim creem haver burlado à Segurança até que o amigo consegue escapar da Romênia, e Manea passa anos observando paranoico a cada um de seus amigos, perguntando-lhes quem será o novo delator); o outro episódio é o misterioso assassinato do catedrático Ioan Culianu, em pleno dia, nos banhos da Universidade de Chicago. Culianu havia sido um colaborador de Eliade (graças a este havia chegado ao Estados Unidos) que, depois da morte de seu mentor, estava escrevendo um livro sobre o passado político de Eliade. Quando o FBI investigou o caso, apresentou a Manea para que os ajudassem a determinar se o assassino foi enviado pelo ex-rei romeno no exílio, ou uma seita parapsicológica inimiga das investigações religiosas de Culianu, ou pela "máfia acadêmica" (sic) ou os legionários sobreviventes no exílio, ou o novo governo romeno pós-comunista, ou por um/ou mero amante despeitado/a.

A assombrosa naturalidade com que Manea vem e vai ao longo do tempo por situações e registros inconcebíveis tem sua explicação numa frase de Mihail Sebastian que o autor de "El regreso del húligan" cita e completa. "Não há nada mais sério, nada mais grave, nada mais certo e nada mais falso nesta cultura de panfletários sorridentes. Sobretudo, nada é incompatível. Há aí uma noção que lhe falta completamente a nossa vida pública em todos seus planos: o incompatível", escreveu Sebastian em seu Diário em 1943. Manea vê nesta frase uma explicação antecipada tanto do inverossímil sistema político da Romênia de Ceaucescu, assim como do culto a um estudioso das religiões como Eliade que praticou uma ditadura supostamente ateu-materialista: "Em nenhuma parte se dá tão estranha, incompreensível compatibilidade entre incompatibilidades, entre os que poderíamos chamar convencionalmente de bons e maus. As evasivas e desconcertantes certezas morais, e não só morais, de nosso país. Muitas vezes ofereceram surpresas terríveis mas, é justo dizê-lo, houve também alguma surpresa benéfica de vez em quando. Só assim pode se explicar que um país onde se cometeram tais atrocidades contra a população judaica, tenha se conseguido sobreviver boa parte dela".

Correndo o risco de que a Manea arrepie os cabelos, para a exígua lista de surpresas benéficas produzidas por essa característica romena, deve-se agregar ao pequeno milagre de diversidade tonal que é "El regreso del húligan" ("O regresso do hooligan"). E outra mais: que a tradução de três livros de Manea ao castelhano, como a do Diário de Sebastian, como as do Diário português e a novela "Los jóvenes bárbaros" de Eliade, tenham sido lançadas ao longo dos últimos cinco anos, pela mesma pessoa: o espanhol residente em Bucareste Joaquín Garrigós. Só a Romênia pode fazer com que se sucedam coisas assim.

"El regreso del húligan" ("O regresso do hooligan"), "Felicidad obligatoria" e "Payasos", de Norman Manea, foram publicados pela Tusquets (Editora). "Diario 1935-1944", de Mihail Sebastian, e "Los jóvenes bárbaros" de Mircea Eliade, foram publicados pela Destino. O "Diário português", de Eliade, foi publicado pela Kairós.

Fonte: Página 12 (Argentina)
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/libros/10-2661-2007-08-12.html
Título original: Los incompatibles
Tradução: Roberto Lucena
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Notas:

1. O termo "húligan" no texto se refere a "hooligan" (em português se mantém a grafia inglesa, pro espanhol eles "espanholizaram" a palavra). Caso alguém ache estranho a palavra, significa isso mesmo, que num sentido amplo, ou no aplicado ao texto, "hooligan" é referente a vandalismo ou gangue de rua. Provavelmente é uma referência à Guarda de Ferro romena que também recebia a alcunha de Legião de São Miguel Arcanjo, por isso o termo "legionários" aparece com certa frequência no texto.

2. Eu não fiz uma observação no texto anterior sobre o Eliade que era a de comentar a origem da difusão desse tipo de autor fascista no país. Pensei em colocar num post à parte (é uma possibilidade), mas se for o caso vai ficar nesse post ou no anterior mesmo.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

O fascista romeno "cultuado" no Brasil - Mircea Eliade e o cavalo de Troia no mundo acadêmico

Mircea Eliade e o cavalo de Troia no mundo acadêmico, por Wolfgang Karrer

A orientação fascista de Mircea Eliade (1907-1986) está bem documentada pelo menos desde a publicação de Cioran, Eliade, Ionesco: l’oubli du fascisme [Cioran, Eliade, Ionesco: o esquecimento do fascismo], um livro de Alexandra Laignel-Lavastine do ano de 2002. Foi traduzido pro italiano, e na Argentina foi resenhado em 6 de outubro do mesmo ano no Página 12. Também na Wikipedia atual concede lentamente esta orientação ideológica a Mircea Eliade, ainda que trate de diminui-la como se tratasse de um "pecadinho juvenil".

Nesse ensaio quero demonstrar (usando o livro de Laignel-Lavastine) que esta orientação sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e que de certo modo Eliade se manteve fiel a suas convicções de ultradireita até sua morte. Vou apoiar esta tese com citações de Eliade, traduzidas pro espanhol por mim. Já é tempo de enfrentar suas ideias do eterno retorno, da ordem cósmica, do sacrifício e do xamanismo com mais crítica.

O terror na história de Mircea Eliade

Um breve resumo da vida de Mircea Eliade (1907-1986) até 1945 aclarará suas posições fascistas (Laignel-Lavastine 2002, 33-328). Como estudante en Bucareste, Eliade se destaca com um manifesto "O itinerário espiritual" (1927), no qual ele ataca "o mito do progresso sem fim" da ciência e da tecnologia e proclama valores novos para sua geração. Claramente se afilia com o movimento irracionalista de Chamberlein, Spengler, Papini etc. A circulação do manifesto o converte no líder estudantil de Bucareste, onde se encontram em 1927 jovens como Tristan Tzara, Victor Brauner, Constantin Brancusi e Emil Cioran. (A afiliação de Cioran ao nazismo forma outra parte do livro de Laignel-Lavastine). No mesmo ano se constitui uma organização militante de ultradireita na Romênia, a Guarda de Ferro. Imitava as quadras fascistas da Itália, introduzindo camisas verdes e a saudação romana (108-20). Militava contra os judeus como a origem da maçonaria, o freudismo, o marxismo e o ateísmo, e lutava por uma revolução espiritual nacionalista no país. Eliade se fez assistente acadêmico de Nae Ionescu, professor e ideólogo principal da direita em Bucareste (57-63).

O círculo intelectual de Eliade compartilhava muitas posições da Guarda de Ferro, ainda que inicialmente se absteve da atividade política. Começou com uma atividade jornalística febril: 250 artigos entre 1925 e 1928, e outros 250 mais entre 1932-33 (40), em todos propagando um nacionalismo autóctone. Com a conversão de seu professor Nae Ionesco em 1933 à Guarda de Ferro, o tono de Eliade também se faz mais militante, e mais fascista (85-120). Assim como Ionescu se converte num propagandista aberto do fascismo italiano e de sua variante cristã-antissemita na Romênia. Os artigos de Eliade o mostram claramente antissemita, pró-fascista e também militante no sentido da ação direta. Entre os líderes da Guarda de Ferro tem alguns amigos íntimos, com os quais mantém um contínuo contato. Quando a Guarda de Ferro começa a assassinar políticos e a formar oficialmente "esquadrões da morte" (echipele mortii), Eliade não se distancia, pelo contrário, segue publicando propaganda e participa da campanha eleitoral da Guarda de Ferro em 1937.

Ao mesmo tempo, Eliade ensina a história das religiões na Universidade de Bucareste. Nessas ensinanças, que vão formar a base de suas obras sobre ideias religiosas, publicadas a partir de 1949, o historiador de religiões põe suas aulas a serviço da "revolução espiritual" pela qual lutavam ele e seus amigos da Guarda de Ferro (165-234). Em 1936, por exemplo, recomenda o uso de um mito central e símbolos míticos de uma nova "ordem cósmica" para fortalecer a ideologia da Guarda (177). Propõe seguir o modelo de Mussolini e sacralizar a política (179), especialmente com ritos de sacrifício e de cultos aos fascistas mortos para "um renascimento espiritual" da Romênia (202-05). Busca analogias em textos históricos para propor um totalitarismo "cristão" (205-08). Numa pré-história romena encontra traços de um cristianismo arcaico para fundar uma nova Romênia, unida como "povo eleito" numa religião cósmica (209) e lamenta os ataques dos profetas israelitas contra a religião cósmica de Canaã (213). Também afirma em 1937:
"Romênia cometeu a loucura de mostrar ao Ocidente que uma vida civil perfeita só se pode conseguir com uma vida autenticamente cristã e que o destino mais sublime de um povo é fazer história a medias de valores supra-históricos." (211)
Ou seja, ele utiliza a mitologia religiosa e a pré-história para apoiar o movimento fascista e erigir um estado totalitário cristão na Romênia. "Religião cósmica", "espiritual" e "revolução" são as palavras-chaves para disfarçar tanto o fascismo antissemita e xenófobo. Tanto Eliade como seu professor Ionescu fazem o trabalho na Romênia de Julius Évola, com o qual se encontram amistosamente em 1938, que leva isto adiante na Itália.

A simpatia de Eliade por Hitler também deixa rastros em seus textos, em suas cartas e conversações, ainda que, sem dúvida, prefira um fascismo mais cristão:
"O povo romeno pode resignar-se à mais triste decomposição que sua história jamais conheceu, admitir que tenha sido abatido pela miséria e a sífilis, invadida pelos judeus, e destroçado pedaços por estrangeiros, desmoralizado, traído, vendido por alguns milhões de lei? "Porque eu não creio no Movimento Legionário", Dezembro 1937" (226)
Elogia outro movimento cristão-fascista com as palavras: "Inclusive é melhor que Hitler". (184) Defende, ainda que de maneira ambígua, a noite contra as sinagogas na Alemanha; compara-a favoravelmente com as barbaridades anticristãs na Rússia e na Espanha (224). Nos textos de 1937 a 1945 já não restam dúvidas: Eliade é pró-Mussolini e é pró-Hitler. Fascista no mais completo sentido, mas à moda "romena". E não é tão jovem, completa 30 anos em 1937 e 38 em 1945.

As repressões e o golpes de estado que seguem às eleições de 1937 levam os membros dirigentes da Guarda de Ferro e Eliade à prisão, onde os legionários cantam "Gott mit uns!", protestando com a canção da SS (196). Eliade escapa do fuzilamento de seus amigos, mas é proibido de ensinar. Pensa em emigrar, mas em 1940 um governo (que já não crê mais na vitória dos aliados) libera os legionários e oferece a Eliade um posto na embaixada romena em Londres, como agregado cultural através do novo ministro de propaganda de Bucareste (200-01).

Na Inglaterra, o Foreign Office (Ministério de Relações Exteriores) o mantém sob vigilância, caracterizando-lhe como a pessoa mais nazificada na embaixada. Eliade se sente com as mãos atadas, impedido de propagar sua causa romena. Quando o governo inglês rompe com o governo de Bucareste (agora abertamente pró-nazi) em 1941, o traslado de Eliado para Lisboa foi a única alternativa para sair da Inglaterra (275-282).

À diferença do sucedido em Londres, na embaixada de Lisboa, Eliade encontra oportunidades para desenvolver sua propaganda fascista para o governo de Antonescu (286-324). A homenagem que realiza ao ditador Salazar mostra claramente qual era a nova ordem cósmica ou a revolução espiritual que propagava entre 1937 e 1945. O livro sobre Salazar não foi realizado por encargo, ainda que se tratasse de uma contribuição voluntária de Eliade a "uma forma cristã de totalitarismo", algo que ele definia também com a "reintegração do homem nos ritos cósmicos" (297). Como a derrota do fascismo na Segunda Guerra se fazia cada vez mais e mais evidente, Mussolini e o governo pró-nazi de Anotnescu foram substituídos, e Eliade, depois de escrever sobre o grande "sacrifício" dos soldados de Stalingrado (320), do horror do pacto "anglo-bolchevique" (275) e da iminente invasão norte-americana com a "degradação da Europa" (322), perdeu seu posto na embaixada (como um dos três mais expostos na propaganda fascista). Antes de renunciar, não deixou de lamentar a queda de Mussolini (322); ou seja, até o último momento manteve sua propaganda antissemita.

Em meio à enorme crise de 1944, Eliade retoma seu trabalho sobre história das religiões, ou seja, volta aos manuscritos de suas conferências em Bucareste. Em Portugal começa a escrever Le Mythe de l’éternel retour, o livro com o qual deve seu regresso ao mundo acadêmico depois de 49. Também seu primeiro livro pós-guerra, Traité d’histoire des religions (1949), tem suas raízes na derrota fascista de 44 e em 45.

O cavalo de Troia entre acadêmicos

A vida de Mircea Eliade depois da guerra se divide em duas fases: a de Paris (1945 até 1957) e a de Chicago (1957-1986). As duas estão estreitamente vinculadas. Aterrorizado de que se revelasse seu passado, começa a apagar sistematicamente seu rancor. Como quase ninguém lia romeno em Paris ou Chicago, encontrava bastante terreno para suas pretensões. Inclusive lhe ocultava seu passado a seus amigos mais próximos (383-416). Até sua morte nos Estados Unidos, guardou silêncio sobre os velhos tempos, ainda que não deixasse de manter relações com Julius Évola e os legionários exilados em Chicago. (O assassinato de seu aluno brilhante, Ioan Culiano, tem implicações legionárias não esclarecidas, como demonstra Laignel-Lavastine (485-89). Nos anos oitenta Eliade trabalhava com a NOVA DIREITA na França (461-62).

Do outro lado, Eliade se rodeava de um círculo de amigos, alunos deles judeus, que o protegem, às vezes ignorando seu passado: Georges Dumezil, Paul Ricoeur, Gershom Scholem e Saul Bellow, entre outros. E há gente com influência e muito dinheiro que o ajudam na recuperação de seus postos acadêmicos. Consegue acesso ao grupo Eranos de Carl Gustav Jung, a quem havia mostrado certas simpatias com Hitler nos anos 30, e através dele obtém apoio da Fundação Bollingen. O dinheiro provinha da família multimilionária dos Mellon nos EUA, e Jung tinha certa influência na fundação. Em todo caso, a beca da Fundação Bollingen lhe abriu o caminho à cátedra em Chicago. Uma quarta estratégia para acobertar seu passado foi uma extensa publicação de memórias, diários e reminiscências, tão parciais como em certos casos desonestas. A única exceção foi o diário de Portugal, que não foi redigido por Eliade, e que mostra suas ideias antes da derrota do fascismo.

Também há um vínculo forte entre as duas fases de Paris e Chicago com o passado de Bucareste e Lisboa. Não somente os dois primeiros livros de 1949, senão muito do que escreveu Eliade depois desse ano retém as posições centrais do seu passado. Laignel-Lavastine mostra em detalhe como cinco temas preferidos de Eliade repetem posições do fascismo cristão de sua época anterior:

A religião como oculta hierofania (que esconde e revela)
O culto do herói no labirinto (como modelo arquetípico)
O sacrifício sagrado como purga (o Holocausto)
O terror para história (consolado pela repetição)
O eterno retorno do pré-histórico (420-33)

Esses temas, em parte, evidenciam a posição intelectual que sustenta Eliade, de seu desejo de escapar de sua própria história - algo parecido com o caso de Paul de Man -, mas também mantém os fundamentos do fascismo espiritual de 37 a 45. Por exemplo, Eliade retém a ideia de que os judeus (depois del 45 Eliade usa a palavra "hebreus") substituíram a velha ordem cíclica do cosmos por uma concepção linear do tempo. O que diz sub-repticiamente, é que isso significa o desenvolvimento do mito do progresso, do racionalismo, da iluminação, das ciências, da tecnologia, da maçonaria, do freudianismo, do marxismo e da época moderna (212, 234, 429-51). O núcleo fascista de sua filosofia de religiões ficou intacto. É "O mito da reintegração" (um livro de 1942), "A necessidade de crer" (299), e o rechaço das ciências.

Por que então Eliade busca as universidade, os centros de ciências, da maçonaria judia, do racionalismo? Porque não se contentou com o rol de um Xamã da New Age nos EUA? Desde 1944, planificava em seu diário penetrar na Europa como um "cavalo de Troia no campo científico" (324). Já não confiava numa legião paramilitar para estabelecer seu totalitarismo espiritual. Queria destruir a cidadela das universidades desde dentro. Ou seja, continuar sua propaganda totalitária sob a camuflagem de uma história das religiões, que propagava o retorno de uma "ontologia arcaica" para deter a dissolução da "ordem cósmica" da sociedade.

Considerando essas luzes do passado, lê-se de outro modo o projeto de 1945, O mito do eterno retorno (há tradução espanhola na rede), esse livro que fez famoso entre leitores que não conheciam suas convicções subjacentes. Não contamos com o espaço para uma análise extensa, mas uma menção a umas linhas do prólogo mostra que Eliade não aceitou a derrota de suas ideias fascistas:
"O mito do eterno retorno é uma original introdução à Filosofia da História, cujo objeto de estudo são os mitos e crenças das sociedades tradicionais, movidas pela nostalgia do regresso às origens e rebeldes contra o tempo concreto. As categorias em que se expressa essa negação da história são os arquétipos e a repetição, instrumentos necessários para rechaçar as sequências lineares e a ideia de progresso. Um rechaço no que subyace, contudo, uma valorização metafísica da existência humana, uma ontologia arcaica que a antropologia filosófica deve incluir em suas reflexões em pé de igualdade com as concepções da cultural ocidental".
Eliade pretende escrever um ensaio sobre a filosofia da história (7), contudo o que oferece é um ataque ao "historicismo" racional de Hegel e Marx. Busca trocar a história pelo mito. O mito do eterno retorno é o perfeito cavalo de Troia para reintroduzis as bases ideológicas da Guarda de Ferro: a sacralização da política.

Em vez de comentá-las, convido a ler as seguintes citações tendo em conta que o livro foi começado em 1945, quando era derrotado o fascismo que propagava Eliade antes de sua demissão:
"Viver de conformidade com os arquétipos equivalia a respeitar a "lei", a lei não era senão uma hierofania primordial, a revelação in illo tempore das normas da existência, feita por uma divindade ou um ser místico". (58).

"Devemos agregar que esta concepção tradicional de uma defesa contra a história, essa matéria de suportar os acontecimentos históricos, seguiu dominando o mundo até uma época muita próxima a nós (1945); e que ainda hoje segue consolando sociedades agrícolas (tradicionais) europeias que se mantém com obstinação numa posição anti-histórica e por esse fato que se encontram expostas aos ataques violentos de todas as ideologias revolucionárias". (89)

"E, num momento (1945) no qual a história podia aniquilar a espécie humana em sua totalidade - coisa que nem o Cosmos, nem o homem, nem a causalidade conseguiram fazer até agora - não seria estranho que nos fosse dado assistir a uma tentativa desesperada para proibir 'os acontecimentos da história' mediante a reintegração das sociedades humanas no horizonte (artificial, por ser imposto) dos arquétipos e de sua repetição. Em outros termos, não está vedado conceber uma época, não muito distante, na qual a humanidade, para assegurar a sobrevivência, veja-se obrigada a deixar de 'seguir' fazendo a 'história' no sentido em ... que se conforme com repetir os feitos arquétipos pré-escritos ... " (96)
É o fascismo do eterno retorno. É deplorável que Eliade tenha escapado de uma crítica mais rigorosa de seus textos depois de 45. Em vez de considerá-lo como fundador de uma "história de religiões objetiva", seria necessário valorizá-lo numa línea com outros fascistas, como Julius Évola na Itália (Revolta contra o mundo moderno/Rivolta contro il mondo moderno, 1934) ou Alfred Rosenberg (Der Mythos des 20. Jahrhunderts, 1930) na Alemanha. O neo-paganismo de Évola e de Rosenberg ilumina obliquamente muitos aspectos do "espiritualismo" de Eliade. Os três trataram de ressacralizar a política, mas concretamente sacralizaram uma ditadura fascista no sentido de Emilio Gentile.

Wolfgang Karrer
Berlim, Alemanha, EdM, dezembro de 2012

Notas:

1. Laignel, Alexandra. Cioran, Eliade, Ionesco. L’oubli du fascisme. PARIS. Presses Universitaires de France, 2002 (Perspectives critiques).

2. Emilio Gentile. El culto del litoral. La sacralización de la política en la Italia fascista. Trad. L. Padilla López. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2007.

Fonte: Site Escritores del Mundo (Argentina)
http://www.escritoresdelmundo.com/2013/01/mircea-eliade-y-el-caballo-de-troya-en.html
Título original: Mircea Eliade y el caballo de Troya en el mundo académico, por Wolfgang Karrer
Tradução: Roberto Lucena

quinta-feira, 18 de junho de 2015

As raízes ideológicas do antissemitismo fascista (III)

Os imperadores romanos decadentes e culpados fustigados pelo fascismo
"A POPULAÇÃO ATUAL DA ITÁLIA É EM SUA MAIORIA DE ORIGEM ARIANA E SUA CIVILIZAÇÃO ARIANA.

Esta população de civilização ariana habita desde vários milênios nossa península; bem pouco restou da civilização dos povos "pré-arianos". A origem dos italianos atuais parte essencialmente de elementos daquelas mesmas raças que compõem o tecido perpetuamente vivo da Europa".

(Texto do Manifesto da Raça, publicado na revista La Difesa della Razza, ano I, número 1, 5 de agosto de 1938)
Aos olhos do antissemitismo fascista, a Antiguidade romana proporciona também exemplos vergonhosos e depreciáveis.

No primeiro número de La Difesa della Razza de 1938, Giorgio Almirante redige um longo artigo intitulado de "O edito de Caracala. Um semibárbaro que aplanou o caminho aos Bárbaros". As ilustrações do artigo não oferecem ambiguidade alguma: um busto de Caracala é comparado a um busto de Augusto. O primeiro é comentado da seguinte maneira: "os traços grosseiros do semibárbaro Caracala ilustram o principal causa de seu edito desastroso." Do contrário, o de Augusto, "que não quis contribuir com a barbarização do Império, reflete em seu rosto a nobreza da raça itálica".

Em seu requisitório contra a política de Caracala, Almirante utiliza um parágrafo de Dion Cássio no qual Augusto desaconselha a Tibério outorgar a cidadania romana numa ampla escala. Almirante também recorre à Apocolocyntosis divi Claudii (A Apocoloquintose do divino Claudio) de Sêneca, onde se critica a política de "abertura" aos estrangeiros.

O governo do imperador Claudio foi bastante generoso em matéria de cidadania romana, como a confirma Tácito quando transcreve o discurso de Claudio ante o Senado no ano de 48 anunciando a admissão ao Senado dos notáveis galos (Anais, 11 (24)). Na lógica da política racial empreendida pelo fascismo mussoliniano em fins dos anos de 1930, a política de Claudio só podia ser considerada como um "mau exemplo" e desacreditada de todo pelo regime.

Gueto de Roma
Para a propagandística fascista, o princípio da decadência romana se situa com os denominados imperadores provinciais do século II. O imperador hispânico Adriano concedeu demasiada importância à contratação regional e aos corpos militares estrangeiros no sei das forças armadas do Império.

Sem dúvida, os fascistas daqueles anos do século XX se referiam aos Numerus, que constituíam tropas especializadas, como os ginetes mouros, aos arqueiros palmirianos e as tropas germânicas. Se é certo que a contratação regional foi a regra para as legiões, que os contingentes auxiliares frequentemente constaram de bárbaros, não obstante parece que não gozaram habitualmente da cidadania romana.

Podemos apreciar a mesma crítica fascista ante o imperador Marco Aurélio, um itálico de origem mas "imbuído de espírito grego" (um "mau" imperador para os fascistas), que concedeu a cidadania romana a numerosos provincianos.

O caso é que sim, a cidadania romana foi cada vez mais difundida no Império, particularmente mediante a naturalização concedida aos soldados dos corpos auxiliares no momento de sua desmobilização. Contudo, para evitar as fraudes, o certo é que Marco Aurélio criou um verdadeiro estado civil tornando obrigatória a declaração dos nascimentos num lapso de trinta dias.

No que diz respeito ao reinado de Sétimo Severo, só houve um comandante ordinário de Viena, na Gália Narbonense, que formava parte das três legiões de Pártia, tanto que os demais eram todos oriundos de Roma ou da Península Itálica.

Para a interpretação histórica dos fascista esta nefasta política dos "maus imperadores" desembocou no Edito de Caracala do ano 212 que concedia a cidadania romana a todos os habitantes (livres) do Império.

Almirante explica a decisão de promulgar este edito por três razões essenciais: primeiro, pelo desejo de submeter mais cidadãos aos impostos, em particular o imposto sobre as heranças. Nisto, Almirante segue a análise de Dion Cássio, muito desfavorável a Caracala. Segundo, que o edito foi o meio de obter o apoio dos provinciais contra os italianos e de fazer esquecer o homicídio de seu irmão Geta, cometido em fevereiro de 212.

Terceiro: Almirante critica a Caracala por conceder seus favores aos cultos orientais de Ísis e Serápis, considerados contrários à religião romana. E sim, com efeito, Caracala faz com que figure a Serápis sobre a face de suas moedas a partir do ano 212, empreende uma peregrinação ao Serapeu de Alexandria e manda edificar um tempo a Serápis sobre o Quirinal.

Almirante conclui seu artigo com um ataque antifrancês num momento em que as relações eram tensas entre Roma e Paris: "Esta foi a obra desastrosa do imperador Caracala, nascido em Lyon e assim chamado por sua maneira ridícula de se vestir como os galos. O mau francês, como se vê, é de fatura muito antiga".

Esta crítica galófoba, por certo, compreende-se tanto melhor se se sabe que se estava a algumas semanas de uma crise franco-italiana, que se iniciou pela sessão de 30 de novembro de 1938 no palácio de Montecitorio no curso do qual os deputados fascistas gritaram, durante uma manifestação sabiamente orquestrada, reivindicações sobre Túnis, Saboia, Nice e a Córsega.

Italia restituta versus a memória histórica fascista
"É UMA LENDA A CONTRIBUIÇÃO DE MASSAS INGENTES DE HOMENS EM TEMPOS HISTÓRICOS.

Depois da invasão dos lombardos, não há outros movimentos importantes de povos na Itália que pudesse influir no aspecto racial da nação. Dele se desprende que, enquanto que em outros países europeus a composição racial mudou consideravelmente até os tempos modernos, na Itália, em linhas gerais a composição racial de hoje é a mesma de mil anos atrás: os quarenta e quatro milhões de italianos de hoje, remontam em sua grande maioria às famílias que vivem na Itália durante pelo menos um milênio".

(Texto do "Manifesto da raça" publicado na revista la Difesa della Razza, 5 de agosto de 1938)
Os responsáveis da revista La Difesa della Razza quiseram assimilar ao fascismo a herança antiga para sustentar "com bases históricas" a política do regime, neste caso a política racial. Na análise fascista, que tendeu a italianizar a romanidade, existe sem dúvida uma utilização abusiva do conceito da romanidade estendido ao conjunto da Itália. Fez falta a cruenta guerra social de 91-88 a.C. para que progressivamente se difundisse a cidadania romana ao conjunto da península da Itália e sua concessão a todos os itálicos no ano de 49 a.C.

Se Cícero pode afirmar que Roma era a pátria comum dos italianos (De legibus, 2 (2,5)), a concessão da cidadania não criou contudo sentimentos unitários, senão somente a convergência em Roma dos interesses de grupos limitados: em ausência de uma identidade nacional italiana, as elites da península, privadas de suas antigas identidades culturais, adotaram uma identidade romana e imperial, em detrimento da Itália.

No século II, Apiano escrevia que a Itália estava sujeita à Roma. As moedas de Trajano com a legenda Itália restituta ('Itália restaurada') supõe uma forma de subordinação, de igual às de Sétimo Severo e Caracala, e evocam a indulgentia Augustorum in Italia, a 'benevolência dos imperadores para a Itália'.

Contudo, Roma foi um organismo assimilador que integrou os povos estrangeiros outorgando-lhes a cidadania romana, uma dimensão que sem dúvida distorce a revista La Difesa della Razza.

Podemos imaginar sem muito esforço que os redatores fascistas não tinham como leitura de cabeceira "Elogio a Roma" de Élio Aristides, no qual mostra que os romanos souberam assegurar a paz, a ordem e a liberdade de cada povo do Império.

Além desses debates históricos, o inequívoco é que a política de expansão da Itália fascista procurou encontrar sua justificação na Antiguidade.

Em 20 de abril de 1940, La Difesa della Razza reproduz o cartaz "Natale di Roma. Festa della razza italica", onde, frente a frente, pode-se ver a um legionário da época de César e um legionário do tempo de Mussolini.

Não obstante, as ambições imperiais do Duce se perderam nas areias do norte da África, nas montanhas balcânicas e nas planícies russas. Enquanto aos judeus italianos, o pesadelo se transformou em tragédia quando a partir de outubro de 1943, o antigo aliado alemão empreendeu batidas em toda a península itálica ocupada pelos nazis.

Em 16 de outubro de 1943, 1259 judeus romanos foram presos no antigo gueto, a alguns metros do teatro de Marcelo e do Pórtico de Otávia, monumentos que o imperador Augusto havia dedicado a seu sobrinho e a sua irmã, testemunhas de uma grandeza romana tão louvada pelo fascismo italiano.

Fonte: Blog Anatomia de la Historia
http://anatomiadelahistoria.com/2013/02/las-raices-ideologicas-del-antisemitismo-fascista-ii/
Título original: Las raíces ideológicas del antisemitismo fascista (II)
Tradução: Roberto Lucena

[Parte 1]

Observação 1: alguns links dos nomes da Antiguidade estão com verbetes em espanhol, pois ou a informação era pouca em português ou muito ruim de achar algo relevante dentro do contexto, porque o texto em espanhol contém imprecisões ou grafias erradas ou misturas. Foi chato achar os termos um a um por outra grafia e colocar em português. Termos como Pártia tem o verbete em português como Império Parta, mas não contém verbete só pra palavra Pártia. O problema se repetiu em todos os três textos, que na verdade saiu originalmente de dois posts em espanhol mas dividi em três por serem extensos e por saber que o povo dificilmente lê algo longo demais (e mesmo assim não ficaram pequenos).

Observação 2: a foto antiga que não continua informação no texto original em espanhol é do Gueto de Roma. Graças ao mecanismo de busca e de reconhecimento facial do Google foi pos´sivel localizar a imagem e informações dela.

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