sábado, 5 de abril de 2008

O Holocausto: verdade e preconceito - parte 3

Patologia reatualizada

Negar o Holocausto é impossível, embora os esforços da indústria negacionista que opera há 30 anos, metódica e regularmente, nos principais países do mundo. Mas não é apenas no negacionismo que se percebe o renascimento do anti-semitismo. O investimento simultâneo na humanização de Hitler (e de seu regime) e na satanização dos judeus são os extremos da heterofobia anti-semita. Entre tais extremos, há sentimentos mais ou menos intensos, que podem ir da antipatia à aversão, do embaraçado pré-conceito ao preconceito aberto, que não se restringem a fanáticos. Por isto a indústria da mentira gera frutos e não são poucas as pessoas que continuam acreditando que, de alguma forma, os judeus estão no centro causal dos problemas do mundo.

Também por isto, mais fortalecida fica a idéia anti-semita a ponto de ser integrada em programas políticos radicais, de direita, esquerda ou fundamentalistas religiosos, como de fato tem ocorrido na Europa, EUA, Argentina e Brasil, assim como na maior parte dos países do Leste Europeu e nas nações muçulmanas. Os negacionistas repetem que, na década de 40, a Alemanha foi levada à guerra pelos judeus; os campos de extermínio não existiram e o regime hitlerista jamais cometeu as atrocidades que lhe são atribuídas.

Para alguém razoavelmente esclarecido, tais argumentos não passam de chicana repulsiva, mas convém lembrar do alerta de Hannah Arendt: não é a estupidez da idéia ou a desfaçatez dos argumentos, mas sua existência política e o fato dela ser acreditada por muitos que deve nos preocupar. O anti-semitismo, em si mesmo, é um tipo de reducionismo persecutório e racista, mas isso não impediu que se estabilizasse como modalidade amplamente difundida de preconceito ou se materializasse na política, mesmo antes que qualquer coisa parecida com o Holocausto fosse sequer imaginada.

O anti-semita extrovertido e ideologicamente ativo crê na força persuasiva de uma aparição projetiva de sua ideologia. Aparição que usa para tentar convencer ou persuadir pela repetição. Nos anos 50, Hannah Arendt escreveu que o anti-semitismo era uma ofensa ao bom senso, devido à sua condição paradoxal de motivo mistificador insignificante em meio a tantas questões políticas vitais (Arendt: 1998:23). A constatação, sem dúvida válida também hoje, diz respeito a uma ideologia que depende exclusivamente da aparência que seus propagadores produzem, sejam eles demagogos simplesmente ou demagogos fanatizados, que crêem nas mentiras que divulgam. Os anti-semitas autênticos cristalizam a fraude como verdade e fazem dela um "pensamento estereotipado", que dá início à heterofobia ou antagonismo irracional, a que se referiram Marie Jahoda e Nathan W. Ackerman. (1969:26-7).

Por essas discrepâncias que existem na sociedade, muito se sabe e muito ainda se descobre sobre o Holocausto, ao nível da pesquisa sociológica, historiográfica e da reflexão filosófica. O assunto é muito investigado nas universidades e centros de pesquisa da Europa, EUA e Israel. Entretanto, as pessoas em geral são ignorantes sobre o tema, inclusive no meio universitário.

A indiferença intelectual e acadêmica quanto ao negacionismo e, pior, uma certa complacência desses meios com respeito a formas de anti-semitismo que freqüentam meios políticos mais à esquerda é sintomática. Há exceções, mas a regra é esta. Como conseqüência ainda que indireta desse desprezo e dessa complacência, atualmente não se estranha mais que, dependendo da situação e do lugar, não seja difícil dizer que os judeus desejam se apropriar da condição de vítimas do morticínio ou que o número de judeus assassinados é comparativamente exagerado quando confrontado com o número de vítimas das atrocidades cometidas pelos nazistas. Esse tipo de falsidade não é raro e, atualmente, tem sido requisitado por um cada vez mais aceitável anti-sionismo.
Assim, a singularidade do negacionismo reprisa a singularidade do anti-semitismo e se configura como um dogmatismo sociológico. Em vista da ignorância média das pessoas sobre o Holocausto, esse dogmatismo ocupa as margens da institucionalidade acadêmico-científica, como pretensa versão da História, reveladora de "questionamentos e fatos novos" e, desse modo, chega a ser vista como plausível por muitos, como demonstram o crescimento de uma direita radical na Europa e, obviamente, a sua recepção por setores ideologicamente extremistas de esquerda.

Melanie Philips, colunista do Daily Mail, em artigo publicado em 1988 no The Jewish Quarterly (citado por Zygmunt Bauman)[6], expressou o sentimento que recai sobre indivíduos que afirmam seu judaísmo nos meios políticos da esquerda atual, menos instruídos no que diz respeito à condição judaica e seus traços culturais ou nacionais: "Tenho grande prazer em dizer aos meus amigos e conhecidos socialistas" – afirmou ela – "que 'sou de uma minoria étnica' e vê-los se enrolando, histéricos. Como pode ser? Sou poderosa. E a impressão dos socialistas é de que os judeus estão em posição de poder. Eles estão no governo, não estão? Eles dirigem coisas, comandam a indústria, são proprietários de terras" (Phiilips, apud Bauman, 1998: 256, n. 12).

A impressão a que Melanie Philips se referia não é apenas de certos tipos de socialistas, ou de quem têm a tendência histórica de ver os judeus como estamento econômico. O sentimento possui características de um fenômeno multicausal, é socialmente espalhado e, em certa medida, chega a ser até "aceitável". Aqueles que sustentam a negação do Holocausto inegavelmente contam com a eficácia deste preconceito, ainda que subjacente e de difícil detecção, quando não estimulado por alguma ideologia específica.

Essa multicausalidade é própria da condição judaica na modernidade, que se revestiu de relevância política despropositada e assumiu contornos de estereótipo persistente, de uma nova tipologia de discriminação intelectual, ideológica e racial, ativa tanto à direita como à esquerda do espectro político, desde o século XIX.

Fonte: Revista Espaço Acadêmico, Nº43, Dezembro de 2004, Mensal, ISSN 1519.6186
Autor: Luis Milman(Doutor em Filosofia, professor da UFRGS)

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...