quinta-feira, 18 de junho de 2015

As raízes ideológicas do antissemitismo fascista (III)

Os imperadores romanos decadentes e culpados fustigados pelo fascismo
"A POPULAÇÃO ATUAL DA ITÁLIA É EM SUA MAIORIA DE ORIGEM ARIANA E SUA CIVILIZAÇÃO ARIANA.

Esta população de civilização ariana habita desde vários milênios nossa península; bem pouco restou da civilização dos povos "pré-arianos". A origem dos italianos atuais parte essencialmente de elementos daquelas mesmas raças que compõem o tecido perpetuamente vivo da Europa".

(Texto do Manifesto da Raça, publicado na revista La Difesa della Razza, ano I, número 1, 5 de agosto de 1938)
Aos olhos do antissemitismo fascista, a Antiguidade romana proporciona também exemplos vergonhosos e depreciáveis.

No primeiro número de La Difesa della Razza de 1938, Giorgio Almirante redige um longo artigo intitulado de "O edito de Caracala. Um semibárbaro que aplanou o caminho aos Bárbaros". As ilustrações do artigo não oferecem ambiguidade alguma: um busto de Caracala é comparado a um busto de Augusto. O primeiro é comentado da seguinte maneira: "os traços grosseiros do semibárbaro Caracala ilustram o principal causa de seu edito desastroso." Do contrário, o de Augusto, "que não quis contribuir com a barbarização do Império, reflete em seu rosto a nobreza da raça itálica".

Em seu requisitório contra a política de Caracala, Almirante utiliza um parágrafo de Dion Cássio no qual Augusto desaconselha a Tibério outorgar a cidadania romana numa ampla escala. Almirante também recorre à Apocolocyntosis divi Claudii (A Apocoloquintose do divino Claudio) de Sêneca, onde se critica a política de "abertura" aos estrangeiros.

O governo do imperador Claudio foi bastante generoso em matéria de cidadania romana, como a confirma Tácito quando transcreve o discurso de Claudio ante o Senado no ano de 48 anunciando a admissão ao Senado dos notáveis galos (Anais, 11 (24)). Na lógica da política racial empreendida pelo fascismo mussoliniano em fins dos anos de 1930, a política de Claudio só podia ser considerada como um "mau exemplo" e desacreditada de todo pelo regime.

Gueto de Roma
Para a propagandística fascista, o princípio da decadência romana se situa com os denominados imperadores provinciais do século II. O imperador hispânico Adriano concedeu demasiada importância à contratação regional e aos corpos militares estrangeiros no sei das forças armadas do Império.

Sem dúvida, os fascistas daqueles anos do século XX se referiam aos Numerus, que constituíam tropas especializadas, como os ginetes mouros, aos arqueiros palmirianos e as tropas germânicas. Se é certo que a contratação regional foi a regra para as legiões, que os contingentes auxiliares frequentemente constaram de bárbaros, não obstante parece que não gozaram habitualmente da cidadania romana.

Podemos apreciar a mesma crítica fascista ante o imperador Marco Aurélio, um itálico de origem mas "imbuído de espírito grego" (um "mau" imperador para os fascistas), que concedeu a cidadania romana a numerosos provincianos.

O caso é que sim, a cidadania romana foi cada vez mais difundida no Império, particularmente mediante a naturalização concedida aos soldados dos corpos auxiliares no momento de sua desmobilização. Contudo, para evitar as fraudes, o certo é que Marco Aurélio criou um verdadeiro estado civil tornando obrigatória a declaração dos nascimentos num lapso de trinta dias.

No que diz respeito ao reinado de Sétimo Severo, só houve um comandante ordinário de Viena, na Gália Narbonense, que formava parte das três legiões de Pártia, tanto que os demais eram todos oriundos de Roma ou da Península Itálica.

Para a interpretação histórica dos fascista esta nefasta política dos "maus imperadores" desembocou no Edito de Caracala do ano 212 que concedia a cidadania romana a todos os habitantes (livres) do Império.

Almirante explica a decisão de promulgar este edito por três razões essenciais: primeiro, pelo desejo de submeter mais cidadãos aos impostos, em particular o imposto sobre as heranças. Nisto, Almirante segue a análise de Dion Cássio, muito desfavorável a Caracala. Segundo, que o edito foi o meio de obter o apoio dos provinciais contra os italianos e de fazer esquecer o homicídio de seu irmão Geta, cometido em fevereiro de 212.

Terceiro: Almirante critica a Caracala por conceder seus favores aos cultos orientais de Ísis e Serápis, considerados contrários à religião romana. E sim, com efeito, Caracala faz com que figure a Serápis sobre a face de suas moedas a partir do ano 212, empreende uma peregrinação ao Serapeu de Alexandria e manda edificar um tempo a Serápis sobre o Quirinal.

Almirante conclui seu artigo com um ataque antifrancês num momento em que as relações eram tensas entre Roma e Paris: "Esta foi a obra desastrosa do imperador Caracala, nascido em Lyon e assim chamado por sua maneira ridícula de se vestir como os galos. O mau francês, como se vê, é de fatura muito antiga".

Esta crítica galófoba, por certo, compreende-se tanto melhor se se sabe que se estava a algumas semanas de uma crise franco-italiana, que se iniciou pela sessão de 30 de novembro de 1938 no palácio de Montecitorio no curso do qual os deputados fascistas gritaram, durante uma manifestação sabiamente orquestrada, reivindicações sobre Túnis, Saboia, Nice e a Córsega.

Italia restituta versus a memória histórica fascista
"É UMA LENDA A CONTRIBUIÇÃO DE MASSAS INGENTES DE HOMENS EM TEMPOS HISTÓRICOS.

Depois da invasão dos lombardos, não há outros movimentos importantes de povos na Itália que pudesse influir no aspecto racial da nação. Dele se desprende que, enquanto que em outros países europeus a composição racial mudou consideravelmente até os tempos modernos, na Itália, em linhas gerais a composição racial de hoje é a mesma de mil anos atrás: os quarenta e quatro milhões de italianos de hoje, remontam em sua grande maioria às famílias que vivem na Itália durante pelo menos um milênio".

(Texto do "Manifesto da raça" publicado na revista la Difesa della Razza, 5 de agosto de 1938)
Os responsáveis da revista La Difesa della Razza quiseram assimilar ao fascismo a herança antiga para sustentar "com bases históricas" a política do regime, neste caso a política racial. Na análise fascista, que tendeu a italianizar a romanidade, existe sem dúvida uma utilização abusiva do conceito da romanidade estendido ao conjunto da Itália. Fez falta a cruenta guerra social de 91-88 a.C. para que progressivamente se difundisse a cidadania romana ao conjunto da península da Itália e sua concessão a todos os itálicos no ano de 49 a.C.

Se Cícero pode afirmar que Roma era a pátria comum dos italianos (De legibus, 2 (2,5)), a concessão da cidadania não criou contudo sentimentos unitários, senão somente a convergência em Roma dos interesses de grupos limitados: em ausência de uma identidade nacional italiana, as elites da península, privadas de suas antigas identidades culturais, adotaram uma identidade romana e imperial, em detrimento da Itália.

No século II, Apiano escrevia que a Itália estava sujeita à Roma. As moedas de Trajano com a legenda Itália restituta ('Itália restaurada') supõe uma forma de subordinação, de igual às de Sétimo Severo e Caracala, e evocam a indulgentia Augustorum in Italia, a 'benevolência dos imperadores para a Itália'.

Contudo, Roma foi um organismo assimilador que integrou os povos estrangeiros outorgando-lhes a cidadania romana, uma dimensão que sem dúvida distorce a revista La Difesa della Razza.

Podemos imaginar sem muito esforço que os redatores fascistas não tinham como leitura de cabeceira "Elogio a Roma" de Élio Aristides, no qual mostra que os romanos souberam assegurar a paz, a ordem e a liberdade de cada povo do Império.

Além desses debates históricos, o inequívoco é que a política de expansão da Itália fascista procurou encontrar sua justificação na Antiguidade.

Em 20 de abril de 1940, La Difesa della Razza reproduz o cartaz "Natale di Roma. Festa della razza italica", onde, frente a frente, pode-se ver a um legionário da época de César e um legionário do tempo de Mussolini.

Não obstante, as ambições imperiais do Duce se perderam nas areias do norte da África, nas montanhas balcânicas e nas planícies russas. Enquanto aos judeus italianos, o pesadelo se transformou em tragédia quando a partir de outubro de 1943, o antigo aliado alemão empreendeu batidas em toda a península itálica ocupada pelos nazis.

Em 16 de outubro de 1943, 1259 judeus romanos foram presos no antigo gueto, a alguns metros do teatro de Marcelo e do Pórtico de Otávia, monumentos que o imperador Augusto havia dedicado a seu sobrinho e a sua irmã, testemunhas de uma grandeza romana tão louvada pelo fascismo italiano.

Fonte: Blog Anatomia de la Historia
http://anatomiadelahistoria.com/2013/02/las-raices-ideologicas-del-antisemitismo-fascista-ii/
Título original: Las raíces ideológicas del antisemitismo fascista (II)
Tradução: Roberto Lucena

[Parte 1]

Observação 1: alguns links dos nomes da Antiguidade estão com verbetes em espanhol, pois ou a informação era pouca em português ou muito ruim de achar algo relevante dentro do contexto, porque o texto em espanhol contém imprecisões ou grafias erradas ou misturas. Foi chato achar os termos um a um por outra grafia e colocar em português. Termos como Pártia tem o verbete em português como Império Parta, mas não contém verbete só pra palavra Pártia. O problema se repetiu em todos os três textos, que na verdade saiu originalmente de dois posts em espanhol mas dividi em três por serem extensos e por saber que o povo dificilmente lê algo longo demais (e mesmo assim não ficaram pequenos).

Observação 2: a foto antiga que não continua informação no texto original em espanhol é do Gueto de Roma. Graças ao mecanismo de busca e de reconhecimento facial do Google foi pos´sivel localizar a imagem e informações dela.

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