Enquanto representação do real, a literatura tem a capacidade de captar os sentimentos e desejos mais ocultos da alma humana de uma época, que não são codificados racionalmente. Já como mecanismo ideológico, a literatura cumpre o papel de transmitir os valores ideológicos da dominação, seja de classe, de gênero ou de raça.
Tendo em vista um recorte racial, é possível sustentar que alguns escritores da "imprensa negra", no início do século XX, submetiam os textos ficcionais à orientação mais geral da ideologia do branqueamento. Na amostragem qualitativa coletada, explicaremos de que maneira este fenômeno perpassava todo o universo mágico dos contos destes autores.
Em um conto intitulado Episódio da Revolta da Ilha de São Domingos o autor descreve como os negros se insurgem contra a opressão escravista, conquistam a liberdade e resolvem vingar-se de todas as atrocidades cometidas pelos brancos. "Então matam, incendeiam, arrazam (sic) tudo que no seu caminho encontram". Todavia, é na parte central, quando é iminente a morte de uma camponesa "linda, loura, mais loura que uma filha de Albion", que podemos desvelar o imaginário branqueador do texto.
A multidão de negros revoltosos prende a família de camponeses brancos. O líder dos revoltosos lança-se com um punhal sobre a cabeça da camponesa, mas, subitamente, um outro negro intervém:
Mas, oh milagre! Outro preto obsta que seu chefe consumma aquelle acto! Porque! Porque elle ama. Ama com toda a sua alma aquela moça.
Então ella o reconheceu e suas faces que estavam lividas tornaram-se vermelhas como o carmin, teve vergonha, tinha-o insultado e agora ella via claramente aquella scena em que ella lhe dissera, no auge da raiva, que negro não era gente, elle jurou vingar-se.
Ela agora estava arrependida de o ter dito. Então negro não era gente? Por que? Seriam talvez os brancos melhores que os pretos? E ella, que sem dizer palavra, soffreu naquelle momento como soffreram os virtuosos apostolos de Christo. (O Menelick, São Paulo, 1/1/1916)
Surpreendido com a atitude do companheiro de luta, o líder dos revoltosos lembrou ao destemido apaixonado da lei de justiçamento para todo aquele que desrespeita sua autoridade. Então, este negro, em um ato de coragem, entrega-se no lugar de sua "loura" e, imediatamente, é aprisionado ao pé de uma árvore. Sem cerimônias, o infeliz foi executado, cumprindo:
[...] a terrível lei que era imposta a todos que desejavam a vida de quem quer que fosse a morte e elle docemente morreu, morreu como um bravo, morreu por amor de uma branca, cumprindo assim dum modo sublime o seu juramento.
E agora junto ao cadaver puderam dizer: que os negros são tão gente como os brancos. (idem)
Do ponto de vista do imaginário, o personagem negro é inferiorizado em relação ao branco. Quando discriminado, aquele promete vingar-se, na primeira oportunidade, das ofensas da "loura". Ao libertar-se dos grilhões, entretanto, o negro releva todas as humilhações que sofreu da musa de seus sonhos. Mais: expressa sua paixão avassaladora por ela. Em um gesto de amor, renuncia à sua própria vida para salvá-la.
A estrutura do conto é idílica. Estamos diante do que podemos denominar do amor impossível: um homem negro jamais seria correspondido afetivamente por uma mulher branca. O personagem negro representa a figura do anti-herói. Seu final é infeliz e trágico. Em um sentido amplo, a morte do rejeitado simboliza a extinção da raça negra, ao passo que a preservação da vida da mulher celebra o triunfo da "raça branca". Em outra perspectiva, podemos aventar que apenas na morte o negro se iguala ao branco, ou seja, quando ele deixa de existir, não significando mais nenhum tipo de ameaça no mundo real. Somente assim haveria o reconhecimento de sua humanidade. No final, cumpria-se a profecia do branqueamento.
O conto "Quando o Coração Falla" narra a história de um negro, mais uma vez sem nome, que na adolescência, em 1899, foi convidado por alguns amigos para assistir a uma opereta na casa de espetáculo da comunidade italiana e se apaixona pela atriz principal da companhia, "a bela, garbosa e minuscula Cesira".
Em uma das apresentações, o negro foi convidado para procurá-la no camarim do teatro. Sem delongas, assim o fez:
Não, Cesira, não creio! Vejo que tudo isto é um sonho. É demasiada felicidade para mim!... Faça-me ouvir com tua voz maviosa, o que há pouco me dissestes... Não creio que tambem tu esperavas por este instante supremo. Repita-me que muito me queres... E frenetico, acariciava seus perfumados cabellos fios de ouro, beijava-lhe a face encantadora, os olhos negros, o pescoço torneado e branco, e... tornava a extasiar-me fitando-a demoradamente (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 3/2/1924:1)
Ao terminar o espetáculo, o negro acompanhou-a até o hotel, causando admiração entre seus amigos:
Assim, por muitos e interminaveis dias, durou o nosso hydillio, até que por uma fatalidade fomos obrigados a nos separar.
Dessa data são decorridos 24 annos e, guardo ainda indelevel, na memoria e no coração, a lembrança desses dias. (idem)
A estrutura do conto é semelhante à receita do anterior. Um homem negro se apaixona por uma mulher branca e insanamente alimenta o sonho de conquistá-la. Porém, devido a uma fatalidade não descrita ele tem que se afastar dela, mas jamais consegue esquecê-la, ou seja, a musa encantadora, de "pescoço torneado e branco", continua a hipnotizá-lo, sobretudo pelo seu padrão de beleza, que, daquele dia em diante, nortearia sua preferência na escolha de novos relacionamentos. Cesira passou a ser o seu ideal de mulher. Estamos diante de um caso de amor inter-racial impossível. Um dos aspectos mais importantes da "ideologia da brancura", detectado implicitamente, consiste no fato de o negro apenas sentir-se plenamente realizado com uma branca. Impossibilitado de realizar seus planos, ele amargura na dor da saudade.
Em outro conto, batizado de "A Quem me Entender", um negro, convidado pelos amigos, vai a uma "simples, mas encantadora reunião familiar". No local da tertúlia, estava conversando despretensiosamente com os convidados, mas, de repente, olhou para uma mulher (branca, provavelmente loira) que, inexplicavelmente, o fascinou. Foi amor à primeira vista. Ascendeu no seu coração um sentimento platônico.
No entanto,
"[...] passada aquella ephemera chimera, em que fiquei totalmente subjugado por seus attrahentes olhos azues, bem poucas vezes a tenho visto. Em compensação, noticias suas jamais deixei de tel-as, portanto quanto mais tempo não a vejo mais impaciente e com saudades permaneço". (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 3/3/1924:1)
Verifica-se que, novamente, o personagem negro é um sujeito sem nome; desprovido de identidade. A ausência de identidade, transportada para toda a coletividade, é o requisito básico da invisibilidade do negro. Essas características demonstram de forma cabal o ideal de branqueamento dos autores dos contos escritos para os jornais da "imprensa negra".
O último conto analisado dessa breve seleção é "O Lenço de Maria". Ambientado na época da escravidão, narra a história de um escravo que ama sua sinhá. Depois de sofrer algum tempo em função da paixão reprimida, Halibrach resolve abrir o seu coração, em um passeio pela fazenda, e declara-se para Maria:
[...] atirando-se de joelhos aos seus pés implorou a felicidade que tanto almejava.
A moça commovida pelas apaixonadas phrases que se escapavam dos labios de seu escravo, levou o lenço aos olhos para enxugar duas lágrimas! (Getulino, Campinas, 30/9/1923)
Embora sensibilizada com seu escravo, a Sinhá não oculta o caráter utópico daquele voluntarioso caso de amor. O sentimento que aflora é de piedade pela humilhante atitude daquela infeliz criatura. Frustrado com a reação de seu amor, Halibrach resolve atentar contra sua própria vida.
Maria, exclamou Halibrach louco, minha não serás nunca, porém, eu tambem não mais serei do mundo!
Halibrach que vaes fazer?
Senhora, vou matar-me...
Oh! não, não!
Sim Maria adeus! E que esse lenço humedecido com tuas lagrimas me acompanhe ao silencio da tumba!
E, arrebatando das mãos da moça o perfumoso lenço que ella trazia desapareceu por entre os arvoredos do jardim!
Pela manhã, quando o sol brilhante repraiava os seus raios, doirando a selva das campinas, um corpo gelido repousava sobre um canteiro de saudades! Era Halibrach morto!Porem, elle não foi assim tão infeliz nos seus amores, porque levou para a gelidez do tumulo o lenço ainda humido das lagrimas de Maria! (idem)
Reproduz ficticiamente a fórmula consagrada do amor inter-racial impossível. Para Halibrach, um negro com nome de branco, sem Maria nada mais faz sentido. A "linha de cor" a separá-los é indelével. O seu fim é trágico: morre em prol de sua branca. É curioso observar que o personagem negro recebe um nome justamente no episódio em que seu papel social de sujeição ao branco é nitidamente identificado (ibidem).26
Constatamos que a versão idílica do amor impossível do homem negro pela mulher branca pauta a mensagem simbólica dos textos. Isso revela que os contos eram um artifício de projeção do imaginário do negro no início do século XX, ou seja, o "inconsciente coletivo" negro transferia no outro mulher branca desejos, qualidades, virtudes, enfim, valores positivos desprezados ou recusados para si.
5. O Desaparecimento do Negro
Alguns artigos da "imprensa negra" eram explicitamente favoráveis ao desaparecimento do negro. Apesar de reconhecerem a contribuição indígena e africana na formação da nacionalidade, o multirracialismo era concebido como obra do passado. No Brasil, em geral, e em São Paulo, especialmente, estaria forjando-se um sistema unirracial. A construção da unidade racial, sob o eufemismo de "fusão das raças", passaria pela diluição do sangue negro, ou seja, pela sua extinção.27 A vontade destes negros era expressa da seguinte maneira:
O que devemos fazer é [...] o seguinte:
Não pretendemos perpetuar a nossa raça, mas, sim, infiltramo-nos no seio da raça privilegiada a branca, pois, repetimos, não somos africanos, mas puramente brasileiros. (O Bandeirante, São Paulo, 9/1918:3)28
A nacionalidade nesse novo sistema racial não seria incolor, mas branca. A campanha ideológica da elite negra em prol do branqueamento era requisito necessário para solucionar "A Questão da Raça". Este foi o título de um artigo do jornal Auriverde:
Como esta surge como força negativa e anarchica, como a collaboração negra é considerada deprimente, o negro se isola, se individualiza e cria uma civilização sua, dentro da civilização alheia.
E por isso, o problema negro é considerado o problema mais serio da América do Norte.
O Brasil, abrindo-se para todas as raças e acceitando o negro como acceitou resolveu com muito mais simplicidade o problema racial.
O negro está desaparecendo, está fundido no caminho dessa fusão, tem elle intensamente collaborado para a grandeza material e moral do Brasil.
Portanto, neste ponto, não invejamos a civilização yankee, por que, nesse ponto, obtivemos vantagens... (Auriverde, São Paulo, 29/4/1928:3)
O sistema racial estadunidense era evocado incessantemente para realçar as vantagens do modelo racial brasileiro, supostamente democrático. Lá, o negro enclausurou-se em guetos, tornando-se impermeável e conflituoso o contato com o branco; aqui, o negro foi aceito de braços abertos, fundindo-se no branco. A eventual "pieguice" do brasileiro facilitava o processo de branqueamento em curso, como assinala o artigo "O Sentimentalismo Brasileiro":
Nós brasileiros costumamos orgulhar-nos da nossa bondade de coração, da nossa piedade e sentimentalismo generosos. Convictamente affirmamos em dose mais elevada que os outros povos.
Pretendendo ser mais humanos que os americanos, nós não lynchamos os negros, mas fizemos a extinguirmos completamente a raça negra, abandonando-a á ignorância, á degradação ao analphabetismo, á promiscuidade, á cachaça, á syphillis, a ociosidade.
Qual é o preferível é sentimentalismo brasileiro ou a brutalidade americana?
O nosso sentimentalismo não é homicida?
Daqui a trinta ou cincoenta annos a raça negra está extinta no Brasil graças ao nosso sentimentalismo.
Os americanos lyncham cincoenta negros por anno. Nós matamos a raça negra inteira no Brasil. (O Clarim D'Alvorada, São Paulo, 28/9/1929:4)
Desta vez, o sistema racial brasileiro era colocado face ao estadunidense para sinalizar qual seria o destino do negro. Embora fosse sentimentalista, o brasileiro era insensível à morte do povo negro. Mais: ele compartilhava do projeto de extermínio não declarado daquele segmento da população. Daí a pergunta: "o nosso sentimentalismo não é homicida?". Segundo o articulista, a execução do negro brasileiro, cuja extinção estava prevista para trinta ou cinqüenta anos, operaria "por atacado" enquanto a do negro americano aconteceria "a varejo".
A absorção biológica do negro pelo branco, gerada pela mestiçagem, seria acelerada pela imigração branca. Esta é a tônica do artigo "Desaparecerão os Pretos do Brasil?":
Muitos carecemos de renovar o nosso sangue por meio de correntes immigratorias européias. Porque o preto brasileiro, que do contrario de seu collegas norte-americanos, faz questão em se casar com mulher branca. Daqui a três quartos de seculo pertencera ao passado. (Progresso, São Paulo, 13/2.29)
Para o articulista, o branqueamento era causado, também, pela atitude do negro brasileiro que, ao contrário de seus "irmãos" americanos, fazia questão de casar com mulher branca. A estimativa de tempo para extinção do negro, novamente, era apresentada: setenta e cinco anos. A imigração européia era avaliada como fonte de higienização racial do negro. Este fenômeno adquiria maior velocidade em São Paulo, conforme apuramos em "Saneamento Étnico da População Paulista":
Não passaram despercebidos aos paulistas de quarenta anos atrás que, em vez de tentar agravar com o adicionamento de elementos de raças diversas, julgaram ser seu dever sanear e melhorar eugenicamente sua população pela introdução de grandes contigentes de sangue ariano. (Progresso, São Paulo, 24/11/1929)29
O artigo assegura que o projeto racial da elite paulista não foi obra do acaso. Com a entrada de milhares de imigrantes europeus, implementou-se em São Paulo a operação "saneamento étnico", baseada na eliminação de raças diversas, inclusive a negra, pela infusão do sangue ariano.
NOTAS
26. O curioso é que não se observavam enredos centrados em relacionamentos amorosos envolvendo homem brancos e mulheres negras.
27. Sobre essa questão, consultar Seyferth (1996).
28. O artigo "Fusão das Raças" era emblemático: "Como apressar a fusão das raças no nosso país? Sera these utópica e idealista, ou corresponde realmente esse anseio a uma necessidade nacional?! Não há tergiversar que salta a vista, ser problema nacional a fusão das raças, no Brasil. Um povo só se faz nação unida quando dispõe de principios homogeneos civis, políticos ou religiosos, mas a nação só se faz forte só se funde em irmandade de sangue, sentido-se uma em todo e em cada indivíduo. [...] com a diversidade das raças que para elle [Brasil] emigram, um dique e um limite, tendem a accentuar diversamente, os habitos e o futuro dos varios elementos da federação. E a crescer essa diversidade, na razão directa della, virá o enfraquecimento nacional" (Getulino, Campinas, 7/10/1923:1).
29. A denúncia do ideal de branqueamento impetrada pela elite política ou intelectual continuava: "Miguel Pereira e Belisario Penna affirmaram que e o Brasil um vasto hospital. E nos tememos affirmar que esse vasto hospital deriva da doença mais grave, que é o preconceito de raça e de côr, enfim a dor da mentalidade dos nossos dirigentes, deixando que pereça toda uma gente que e precisa ser substituída, porque é mestiça, porque é negra e devera ser branca, custe o que custar, mesmo a custa do esfacelamento do Brasil, pela vasa do aryanismo internacional immigrado" (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 9/6/1929:1).
Fonte: Scielo (Estud. afro-asiát. vol.24 no.3 Rio de Janeiro 2002)
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-546X2002000300006&script=sci_arttext
Autor: Petrônio José Domingues
Ver também:
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 04
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 02
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 01
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