Ao fundo do debate sobre o revisionismo neofranquista é preciso distinguir previamente ao quê estamos nos referindo:
A princípio, o revisionismo histórico é uma técnica acadêmica legítima que reinterpreta uma teoria historiográfica estabelecida já que apareceram novas fontes documentais que permitem uma melhor análise. A História é uma ciência social que constrói suas teorias de forma acumulativa (segundo a quantidade de dados) mas também qualitativa (objetividade de suas teorias). Ou seja, não já nada ruim (de fato é um exercício muito são) em renovar nossa visão dos fatos passados (que mudam segundo nossa civilização) sempre, claro está que o façamos de acordo com o método científico.
Existe, por outro lado, um outro tipo de revisionismo propagandístico e pseudo-histórico que refugia o uso científico da História com um claro interesse político: dar uma interpretação do presente com base no passado. Assim, por exemplo, a esquerda política na Espanha atual é antissistema, anti-Estado, antidemocrática, anti-etc. como já se havia demonstrado, segundo os revisionistas, durante os anos da Segunda República. Trata-se de uma forma de propaganda que trata de justificar suas afirmações entroncando-as num passado manipulado. É uma forma de busca de "respeitabilidade". O exemplo extremo do revisionismo é o negacionismo neonazi.
Em outro post, já se deu alguns quantos dados sobre a figura do principal valedor (ao menos o mais midiático) do revisionismo neofranquista, Pío Moa, e sobre a origem dessa corrente pseudo-histórica.
Melhor que vejamos o anterior como um exemplo: numa discussão que mantiveram na internet, de um lado Enrique Moradiellos e do outro, o próprio Pío Moa apoiado por Antonio Sánchez Martínez, José Manuel Rodríguez Pardo e Íñigo Ongay de Felipe, todos colaboradores assíduos de El Catoblepas, a revista eletrônica da associação Nódulo Materialista a qual está ligada o filósofo Gustavo Bueno e vários outros professores da Universidade de Oviedo. Gustavo Bueno é uma figura muito controvertida por suas recentes obras, "España no es un mito" ("Espanha não é um mito") e "Zapatero y el pensamiento Alicia" ("Zapatero e o pensamento de Alice") (de novo, passado e presente) e suas declarações radicais sobre o atual governo socialista ou o nacionalismo na Espanha, reproduzidas e apoiadas inclusive pela extrema-direita.
Sobre a adscrição política da revista "El Catoblepas", a verdade é que é um tema controvertido porque seus editores se definem como "materialistas", ainda que como sempre, diz-me com quem andas...
Moa declarou repetidamente que o mundo universitário o exclui de seus debates por contradizer a corrente historiográfica predominante controlada por professores ideologizados de esquerda, e portanto, subjetivos.
Enrique Moradiellos, catedrático de História Contemporânea da Universidade de Extremadura lhe responde caindo na provocação. Entre maio de 2003 e fevereiro de 2004 cruza uma série de artigos acerca de uma questão historiográfica particular: a intervenção de potências estrangeiras em apoio de um e de outro bando contendores na GCE (Guerra Civil Espanhola) e seu efeito sobre o curso e desenlace final.
Moa havia enfocado este tema em seu livro "Los mitos de la Guerra Civil" ("Os mitos da Guerra Civil") nos seguintes termos: 1) que a ajuda foi de quantidade e qualidade similar para ambos os bandos; 2) que foi a URSS quem rompeu a política de não-intervencionismo das potências europeias; 3) que o objetivo final da ajuda stalinista era a instauração de um satélite na Espanha que acelerasse a queda dos regimes democráticos da Europa Ocidental e 4) que a dita intervenção não afetou de maneira substancial o resultado final da guerra.
Moradiellos rebate num primeiro artigo todas essas teorias com base na documentação já estudada (citando suas obras) por Jackson, Coverdale, Proctor, Avilés, Pike, Viñas, Saz, Howson, Preston, Abendroth, Graham, Radosh, Whealey, Haslam, Oliveira, Stone, Madariaga, García Cruz, Fusi, Bizcarrondo, Elorza etc. Esta documentação está disponível para a consulta nos arquivos do Foreign Office britânico, do Departamento de Estado estadunidense, do Arquivo Político do Ministério de Relações Externas (Berlim), dos Arquivos Militares de Friburgo, do Arquivo Secreto do Estado (Berlim); do Archivio Centrale dello Stato (inclui a Segretaria Particolare del Duce) e do Archivio Storico del Ministero degli Affari Esteri (inclusive o «Ufficio Spagna» que dirigia a intervenção italiana na Espanha) ambos em Roma; do Arquivo do Ministério de Assuntos Exteriores da França (Paris), dos arquivos militares franceses (Toulouse e Paris), dos arquivos de departamentos fronteiriços com a Espanha e dos arquivos de companhias aeronáuticas franceses.
Toda esta documentação estudada e já publicada, vem a demonstrar justo o contrário do afirmado por Moa: que o Eixo levou a iniciativa na intervenção, que os objetivos da intervenção soviética eram contemporizadores (deter o avanço do fascismo) e que a maior ajuda militar alemã e italiana conferiu uma esmagadora superioridade aérea ao grupo franquista, o que determinaria finalmente o curso das operações militares.
Chegando a este ponto, podemos pensar que íamos ter um debate a altura, com Moa replicando com novos dados e cifras provenientes de documentos inéditos. Pois não foi o que aconteceu.
Mas sua resposta e outras coisas mais já a veremos no post seguinte.
Fonte: blog Fuentes para la Historia de la 2ª República, la Guerra Civil y el Franquismo (Espanha)
Título original: El revisionismo neofranquista (2): cómo funciona
http://fuentesguerracivil.blogspot.com.br/2008/03/el-revisionismo-neofranquista-como.html
Tradução: Roberto Lucena
Parte 1: O revisionismo neofranquista (1): guia de uso - Pío Moa
Parte 3: O revisionismo neofranquista (3): Moa exposto
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