Por Fernando R. Genovés
A história da Europa constitue um dramático testemunho de como alguns povos muito antigos e orgulhosos são capazes de provocar problemas gravíssimos, de origem interna mas com alcance exterior e mundial, e sem depois resolvê-los convenientemente. No geral, deixam-nos latentes e inconclusos, jacentes e dormentes, com a confortável e contemplativa certeza de que, finalmente, serão outros, os de sempre, quem os solucionarão. Por exemplo, que fazer com os judeus.
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No ano de 1922 Hugo Bettauer escreveu a novela premonitora "A cidade sem judeus" (Die Stadt ohne Juden). Ali fantasiava o autor com uma especulação demasiada presente e profundamente arraigada no subconsciente, e outros subterrâneos, da sociedade vienense, representativa por sua vez das pulsões que agitam há séculos em muitas cidades da Europa. Eis aqui o quadro expresionista descrito: de pronto, na barroca e colorida capital do império austrohúngaro se decreta, através de uma sentença legal e "democrática", avalizada pelo Parlamento, a expulsão geral dos judeus da cidade.
Desta maneira, reduzindo ao absurdo uma añeja lógica cultural, a européia, a realidade circunscrita adquire sua autêntica face. Que restará das sociedades e cidades modernas e civilizadas da Europa, como Viena ou Berlim, se de repente os judeus fossem riscados do mapa? Muito simples, a vida urbana adquire uns tons sépia, entre o cinza e o negro, um fundo de claro-escuro, con tingimentos inconfundiblemente provincianos. Os Graben, relata Bettauer, perdem sua tradicional elegância, e tudo adota em suma um ar aldeano, entre tirolês e bávaro, de postal de feira bovina. As autoridades locais, alarmadas ante semelhante deterioração, decidem voltar atrás e repôr o israelita de volta em seu lugar. Mas não por acaso já seria demasiado tarde.
Que fazer com os judeus? Que fazer sem eles, seus aliados e amigos? Como se desmarcar dos americanos e constituir um continente frente a uns e outros? Que relações perigosas, que horizontes distantes, deve buscar apressuradamente a Europa para frear, e ainda neutralizar, estas pressentidas ameaças para seu ser alterado e sua identidade consumida, produto curiosamente de un excesso de ensimesmamiento, de deleite em seus própios fantasmas? Hoje a Europa simboliza uma alma em pena que se tem negado a si mesma, que tem renegado as suas mais férteis constituintes, proveitosas heranças e fiéis companhias, para abandonar-se nas mãos de seus próprios executores. Sacrificada e resignada, espera seu acabamento. Enquanto isso tanto vão adiante algumas vítimas propiciatórias com as que aliviam a voracidade do ogro devorador. A sorte está lançada.
O ovo da serpente volta a se incubar. Uma Europa sem judeus e sem americanos. Isto é possível? Vale a pena fazer experimentos e brincar com fogo, outra vez? Como conseqüência cabal ofender e irritar a nosso principal sócio até fazer com que ele perca a paciência? Hoje, falar de "União Européia" supõe uma flagrante contradição nos termos: "O que une a Europa hoje é o repúdio à guerra, do hegemonismo, do antissemitismo e, pouco a pouco, de todas as catástrofes que foram fomentadas, de todas as formas de intolerância ou de desigualdadeque que foram desenvolvidas" (Alain Finkielkraut, no "O nome do Outro". Reflexões sobre o antissemitismo que está por vir).
Europa, a rigor, não tem um problema com os judeus. Tampouco existe, falando em propriedade, uma "questão judia". A asfixiante demonização do judeu e de Israel comporta na prática uma atitude tão homicida como suicida. Acaso se trate simplesmente disso. O problema da Europa, entre outros que ela mesmo estimula, é o antissemitismo. A questão palpitante, portanto, é a "questão européia".
Ainda assim, aceitamos os usos mais comuns, a espera de ventos lingüísticos mais favoráveis, e, com face em André Glucksmann em seu ensaio "O discurso do ódio", atendamos a nosso assunto a partir da descrição das "três questões judias" que tem ocorrido na Europa como um espectro.
A primeira e mais antiga questão: o judeu molesta. Sua presença incomoda, porque não acaba nunca de desaparecer do todo, e sua ausência inquieta, porque se espreita, pois no fundo se espera e teme. Seja em termos religiosos ou populares, na consciência cristã o judaísmo pesa como um maçante, incômodo e impertinente, uma 'old religion' que não acabou de aceitar a novidade, a boa nova, traída pelas Sagradas Escrituras; um estrangeiro em sua própria casa, demasiado intelectual e tenaz, demasiado obstinado; um alter-ego desnecessário e caprichoso, a quem é preciso exigir-lhe que renuncie a seu empenho pertinaz e se contraia definitivamente, ou que se vá com sua conversa para outra parte. Mas, para onde?
A segunda questão judia remete precisamente ao tema da suposta "emancipação", a qual passa por que os judeus deixem de andar como errantes de cá para lá, atravessando fronteiras e culturas nacionais, pondo em evidência a própria inconsistência européia, e se fixem e se assimilem no interior dos Estados modernos europeus. Este processo ocorre na Europa a partir da Revolução francesa, no calor das transformações políticas e sociais produzidas durante o período das revoluções liberais.
Que o judeu, pois, assimile-se e seja "nacionalmente europeu", nação por nação, com particular acatamento do que foi dado, esquecendo, como apontou Hannah Arendt, algo primordial: "Os judeus eram o único elemento europeu numa Europa dividida em nações". Resultado: imenso fracasso. Um exemplo: as doutrinas racistas e antissemitas surgem precisamente na França, a emancipadora, a revolucionária França.
A terceira questão judia, segundo a descrição de Glucksmann, deviene das duas anteriores e se atasca no ponto morto já presagiado. No presente, a "questão judia" não é proveniente já da ordem teológica cristã do mundo, nem da pressão interna dos Estados-nações com vistas na assimilação ou "simbiose" do judeu com os corpos nacionais instituídos (ou seja, com os pressupostos do nacionalismo mais rançoso, inimigo de morte do universalismo e do cosmopolitismo). É proveniente, na mudança, do ancestral e incombustível ódio antissemita, que foi provado todo anteriormente (inclusive Auschwitz) e decide agora afrontar o tema de frente, novamente.
Aos judeus, não lhes são suportados, nem dentro dos Estados nacionais e em sua própria pátria, nem dentro nem fora. Se se afincam na França, são pouco franceses; se na Alemanha, falsos alemães. Se escasseiam na Espanha ou Japão, "antissemitismo sem judeus". Se fundam Israel e desejam viver em paz, liberdade e segurança dentro de suas fronteiras, ganhado ao deserto e ao bandoleiro com esforço e valor, o sionismo espanta e lhe é apelidado de genocida. As vítimas, para a consciência desgraçada mundial, têm de pagar o preço da dor e do sacrifício para maior glória do carrasco (doutrina da ONU); devem renunciar à memória e a seu passado, deixar de existir, única forma de que termine a eterna canção, a maldita reclamação.
Eis aqui a lógica imposta no coração da velha Europa: antes de Auschwitz eles são abandonados nas mãos de seus executores; depois de Auschwitz eles são condenados ao silêncio. Única saída: a extinção.
Na realidade, a manuseada história da assimilação judeus-Europa não é senão uma imensa farsa. Uma brincadeira na conta de um povo condenado de antemão. Ou uma "revanche póstuma" e um perverso "mal-entendido", como mostra com grande oportunidade e sutileza o livro de Enzo Traverso "Os judeus e a Alemanha".
Ensaios sobre a "simbiose judaico-alemã" (Pre-Textos, 2005), traduzidos para o espanhol em recente e cuidada edição por Isabel Sancho García.
Houve, com efeito, uma cultura judaico-alemã de grande relevância, nascida de um ânimo de assimilação, o que se supôs em grande medida à secularização de boa parte do espírito judeu e a apropiação do universo cultural alemão. Mas este processo não adotou em nenhum momento a forma de um diálogo entre dois povos, de uma "simbiose judaico-alemã", senão de um "monólogo judeu". Ou, como adverte com sagacidade Isabel Sancho no prólogo do texto mencionado: mais que simbiose, para reproduzir fielmente a situação, seria mais exato falar de “parasitismo”, quer dizer, exprimir todo o potencial intelectual e humano de um povo ao que se oferece, se acaso, a cidadania, mas jamais a nacionalidade, para logo se prescindir dele.
Como quer que fosse, o estatuto intelectual no seio da sociedade alemã, principalmente durante os anos 20 e 30 do século XX, ficou reduzido à duas figuras centrais da modernidade judia: o pária e o ambicioso. Duas modalidades de existência da judeidade no interior de um mundo cultural, de uma cultura nacional, da qual se está excluída a priori e na qual não é possível síntese alguma.
Eis aqui, acrescenta Traverso, "o paradoxo de um país que viveu primeiro a 'perfeição da assimilação' e logo o 'aniquilamento sistemático' dos judeus". Eis aqui, com efeito, a paradoxo de um país, mas assim mesmo a parábola tenebrosa de um velho continente que insiste em renunciar a um de seus mais importantes potenciais, garantia provada de universalidade e de racionalidade. O que diz o historiador britânico Paul Johnson, no geral, da mente humana em sua imprescindível "História dos judeus" poderia se aplicar, estritamente, à cultura européia: "Sem os judeus, esta poderia ter sido um lugar muito mais vazio".
Um lugar sem Heinrich Heine e Karl Marx, Franz Kafka e Sigmund Freud, Edmund Husserl e Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse, Eric Fromm e Franz Neuman. Sem Walter Benjamin, Ernst Bloch e George Lukács, Alfred Döblin e Kurt Tucholsky. Sem Arnold Schönberg e Gustav Mahler, Siegfried Kracauer e Karl Mannheim, Karl Kraus e Joseph Roth. Sem Mendelsshon e Ernst Kantorowicz. Sem Hanna Arendt e Rosa Luxemburgo, Han Jonas e Karl Lowitiz. Sem Oppenheimer e Einstein. Sem Henry Kissinger, Hermann Broch e Mary MacCarthy. Sem Elias Canetti e Saul Bellow. Sem Arthur Schanbel e Arthur Rubinstein. Sem Ernst Lubitsh e Billy Wilder, Max Ophüls e Alexander Korda, Peter Lorre e Elizabeth Bergner, Pola Negri e Conrad Veidt. Sem Charles Chaplin. Sem os irmãos Marx.
Muitos destes judeus europeus emigraram para os Estados Unidos para poder ali começar uma nova vida, uma vida em liberdade e plena criatividade, uma ida que o velho continente, suas nações de origem, negavam-lhes. Estados Unidos sem judeus? Uma Europa sem judeus? Sem este legado, aqui só resumido, imagine-se, enfim, um mundo sem judeus.
Fonte: Libertad Digital
http://revista.libertaddigital.com/una-europa-sin-judios-1276230410.html
LIBREPENSAMIENTOS; Una Europa sin judeus
Tradução: Roberto Lucena
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