sexta-feira, 31 de março de 2017

Nazismo de esquerda? (Mark Mazower) O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita - Parte 04

Dando continuidade à série "Nazismo de esquerda? O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita" (onde irei incluir textos históricos de peso de jornalistas também, vide o do William Shirer, em alguma sequência), quem perdeu a origem (de onde saiu a ideia) da série, ler aqui.

Seguem trechos do livro do Mark Mazower mostrando a mesma coisa dos outros posts, o nazismo na extrema-direita. Eu já adianto, como já disse antes, que considero vexatório ter que fazer um texto sobre isso porque considero essa discussão batida, beirando o ridículo, só em um país dominado por um "analfabetismo político" (e funcional) fora do comum é necessário se chegar a um extremo de ter que mostrar o óbvio (porque os que panfletam bobagens só "leem" sites toscos da extrema-direita liberal que é quem panfleta essa asneira no país, como filial, já que a matriz fica nos EUA), quem afirma que nazismo é de "esquerda", "extrema-esquerda" etc está só panfletando, fora o "nível" de argumentação e discussão que esse pessoal usa pra "justificar" essa baboseira (o povo que critica o "tom" nunca deve ter visto as baboseiras que temos que ler sobre isso, fora os "elogios" recebidos, vulgo "xingamentos"), com esse pessoal rotulando até gente de direita (que chama o nazismo pelo que é, de extrema-direita) como "esquerdistas que foram doutrinados pelo gramscismo" (risos).

Estou "rindo" (aspas) pra não chorar, mas... essa cretinice militante no país preocupa, é só ver os resultados da coisa com o caos que essa gente lançou o país, com a 'anuência' (concordância velada ou não) da outra parte que ficou inerte só "assistindo" o agravamento do caos começado em 2013, na "esperança" sabe-se lá de quê (golpe de estado, perda de direitos trabalhistas, terceirização irrestrita, destruição da previdência social etc), coisas que afetam até esse pessoal que agora está 'meio perdido' sem saber o que fazer ou no que se meteram. É o velho dito, não se mete em briga de "cachorro grande" sem saber o que está por trás da 'peleja', sem saber qual o embate ideológico que atravessa décadas no país que é o implante do [neo]liberalismo e sucateamento do Estado brasileiro pra manter o caráter 'subdesenvolvido' do Brasil como "país periférico", neocolonizado e área de exploração externa, e o povo do país consequentemente "que se dane", pois é só um "detalhe" pra esses grupos de pressão e seus apoiadores (igualmente lacaios).

Mark Mazower: É professor de história da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e do Birkbeck College de Londres. Lecionou também em Sussex (Inglaterra) e Princeton (EUA). Escreve sobre assuntos internacionais para o Financial Times. Ganhou o prêmio Bentinck por Continente sombrio: a Europa no século XX. (descrição tirada do site da Cia. das Letras, quem publicou o livro em português).

Livro: O império de Hitler (A Europa sob o domínio nazista)
Título original: Hider's Empire: Nazi Rule in Occupied Europe

Pág. 80

A preocupação com o sofrimento dos “alemães no estrangeiro” não estava confinada às agrupações paramilitares extremistas ou aos teóricos de perfil nazista. Os poloneses tiveram espetacular êxito na “desgermanização” dos domínios que antes haviam sido prussianos. Assentaram dezenas de milhares perto de Gdansk e construíram um porto rival nos arredores. E a saída de muitos alemães trouxe mudanças drásticas no equilíbrio da população. Em Poznan/Posen, os alemães constituíam apenas 2% da população em 1930, em comparação com os 42% em 1910; em Bydgoszcz/Bromberg, essa proporção caíra de 77% para 8,5%. Em Weimar havia uma preocupação generalizada com os refugiados alemães e um grande apoio às instituições culturais e às associações de assistência social que tinham por objetivo fortalecer a “germanidade”. A venerável Verein fiir das Deutschtum im Ausland (v d a ) — que distribuía recursos estatais e privados para as escolas das minorias alemãs e outras organizações — tinha mais de 2 milhões de associados. A v d a era uma organização oficial, mas também se referia aos governos estrangeiros de maneira hostil, como se travassem uma guerra contínua de extermínio cultural contra os alemães no estrangeiro. Visões mais radicais prosperavam nos novos institutos de pesquisa para o estudo do' Volksdeutsche.1

Pág. 103-104

Mesmo assim, sob o governo de Tiso os políticos católicos conservadores da Eslováquia exploraram com habilidade o pouco espaço de manobra que obtiveram. Tirando vantagem da relutância de Berlim em abandonar sua postura de libertador, eles criaram um sistema político mais autoritário do que propriamente nazista e marginalizaram sua extrema direita. Obrigaram os alemães a duras negociações antes de permitir que usassem a Eslováquia para deslocamentos contra os poloneses e, embora representassem de bom grado uma legislação antissemita alinhada com o exemplo alemão, nem por isso se interessaram em implementar um cunho racial em suas leis internas. Dessa forma, a Eslováquia tornou-se um modelo da Nova Ordem de várias maneiras. Os alemães nunca se sentiram tão seguros quanto gostariam a respeito dos eslovacos. Embora a maioria visse a Eslováquia como um Estado fantoche, alguns dirigentes de Berlim consideravam o país um exemplo do que poderia acontecer quando se permitia que "pequenas nações" tivessem liberdade demais.15

Págs. 107-108

Não havia nada de especificamente nazista em enaltecer uma guerra para reparar as mágoas de Versalhes, pois a maioria dos alemães apoiava essa atitude. O que era característico do regime — e aliás dos que apoiavam os militares — era o extremismo de seus planos para transformar o conflito numa dura luta racial contra os poloneses. Manuais de treinamento apresentavam aos soldados um retrato negativo dos poloneses, e agora seus superiores confirmavam aquilo. “Soldados da 21- Divisão! Isto é pela honra e pela existência da pátria”, proclamou um general às vésperas da invasão.
A Prússia Oriental está em perigo [...] Marcharemos pela antiga terra alemã que nos foi arrancada pela traição de 1919. Nessas antigas regiões do Reich nossos irmãos de sangue sofreram uma assustadora perseguição! Este é o espaço vital do povo alemão.20
Pág. 149

Embora os nazistas tivessem planejado tratar a Noruega da mesma maneira, a invasão do país foi uma tarefa muito mais difícil, tanto militar como politicamente. Depois de um ataque de surpresa que fez Oslo cair em mãos alemãs, os noruegueses reagiram com determinação. Para complicar as coisas, Vidkun Quisling — um radical de extrema direita que tinha pouco apoio no país — aproveitou a oportunidade para declarar a formação de um governo provisório chefiado por ele mesmo. Hider simpatizava com suas ideias, mas o afastou e nomeou em seu lugar, como comissário do Reich, um antigo companheiro do partido. O homem que ele escolheu, Josef Terboven, já era governador provincial da Renânia, onde gozava merecida reputação por sua crueldade. Havia recebido a Cruz de Ferro na Primeira Guerra Mundial, antes mesmo de abandonar a universidade, de participar do Putsch da Cervejaria em 1923 e de se casar com uma ex-secretária de Goebbels. Tendo se mudado para a residência do príncipe herdeiro (onde se suicidou cinco anos mais tarde explodindo uma bomba), o rude Terboven não tinha os dotes de persuasão necessários para convencer os abalados deputados noruegueses a formar um novo governo pró-alemão. O presidente do Parlamento chegou a pedir que o rei Haakon abdicasse, mas este, irritado, recusou o pedido e fugiu para Londres, onde formou um governo no exílio. Enquanto isso, o interregno político em Oslo se arrastava. No fim de setembro Terboven perdeu a paciência: aboliu unilateralmente a monarquia, dissolveu todos os partidos, exceto o Nasjonal Samling (n s , Partido da União Nacional) de Quisling, e anunciou a formação de uma comissão estatal majoritariamente composta de membros do n s para governar o país. Foi um ruidoso tapa na cara da classe dirigente do país e desde o início condenou o novo governo à ilegitimidade. Embora a população fizesse muitas críticas ao rei por ter fugido, Quisling era muito mais detestado, e virtualmente toda a Noruega estava contra ele.

Pág. 409

A realeza italiana foi esperta em ficar de fora: o reino de terror da Ustase (Ustasha) que se impôs explicou amplamente por que em geral os alemães evitavam ceder poder para extremistas de direita. Dos 6,3 milhões de habitantes do novo Estado, apenas 3,3 milhões eram croatas: havia 1,9 milhão de sérvios, 700 mil muçulmanos, 150 mil alemães e 40 mil judeus. Mesmo assim, a Ustase empenhou-se em erradicar com violência os não croatas, em especial a influência no país dos sérvios e judeus. O governo proibiu o uso do cirílico, legalizou o confisco de propriedades de judeus e impôs uma nova lei de nacionalização. Ao mesmo tempo, esquadrões paramilitares embarcaram numa campanha de massacres contra sérvios, judeus e ciganos, e por mais de um mês, até que protestos dos alemães obrigaram uma breve desaceleração, as unidades da Ustase faziam um massacre atrás do outro, às vezes visando sérvios notáveis, mas em outras ocasiões, principalmente na Herzegóvina do Norte, chacinando comunidades inteiras com cenas grotescas de violência e sadismo. Quando as prisões ficaram superlotadas, uma série de campos de concentração foi construída ao redor de Jasenovac, perto do rio Sava, que logo se tornou um notório centro de matanças. Em junho, proeminentes servo-croatas apelaram ao governo sérvio em Belgrado para que os alemães interviessem. Eles não sabiam que Hitler já tinha se encontrado com Paveüc em seu retiro de Berchtesgaden e o havia instado a continuar sua política de "intolerância nacional” por cinquenta anos.50

Pág. 415

O uso de punições coletivas para forçar populações a obedecer foi reforçado quando comandantes de campo sentiram, tão nitidamente quando da ocupação da União Soviética e dos Bálcãs, que estavam com pouco pessoal e forçados ao limite. A essa altura, considerações de prestígio, semelhantes às presentes nas campanhas coloniais lutadas pelos italianos e outros, levaram a caminhos de represálias horríveis. O Exército italiano estava obedecendo a ordens nos massacres da Etiópia de 1937 e na "pacificação” de Montenegro em 1941. Assim como os húngaros em Novi Sad e os búlgaros em Drama. Algumas vezes os aliados dos alemães podem ter se sentido chocados com a brutalidade da Wehrmacht na Ucrânia e na Bielorrússia, mas não reagiram de maneira muito diferente ante a ameaça de seus próprios opositores. A inconfortável verdade é que a guerra de contrainsurgência era mais resultante do produto de certo estilo de luta europeu que do próprio nazismo. A tecnologia havia mudado nas décadas anteriores, mas em outros aspectos eles estavam lutando no mesmo espírito e seguindo as mesmas regras estabelecidas em suas campanhas coloniais e durante a Primeira Guerra. Claro, havia uma diferença crucial: no passado, autoridades civis às vezes conseguiram exercer uma influência moderada sobre as militares — como fizeram, por exemplo, na Sérvia ocupada em 1917. Sob os nazistas, os extremistas eram os civis, sempre instando seus soldados a perder a inibição e aumentar o nível do terror. Diante da ameaça dos partisans, a Wehrmacht em particular perdeu de vista até mesmo as poucas restrições que em outra época inibiram seus predecessores.60

Págs. 482-483

A ideia de colaboração convida a pensar na relação da França com os alemães. Mas isso só levanta a questão de quem representava a França. Pois os conflitos entre as diferentes agências alemãs em Paris — por mais intensos que fossem — empalideciam em comparação com a desunião na própria França. Se o país não estivesse tão amargamente dividido na época da invasão, a ocupação teria seguido um rumo muito diferente, como mostra o exemplo da Noruega. Na verdade, muitos integrantes da direita francesa saudaram o colapso da democracia parlamentar e viram a ocupação como a oportunidade de acertar contas de décadas com a esquerda — do tempo do caso Dreyfus e talvez mesmo da Revolução. Mas só em relação à Frente Popular é que se tratava de um grupo organizado em algum sentido. Alguns oponentes da Terceira República admiravam e adoravam os ocupantes, enquanto outros os odiavam. Muitos apoiavam Pétain, pelo menos por algum tempo, mas havia os que o detestavam e esperavam que os alemães o eliminassem em favor de uma alternativa mais radical de extrema direita. A história do colaboracionismo parece mais uma complicada briga de família que a guerra de conquista da Alemanha expôs e tornou muito pior, e explica por que a ocupação representava tamanha ameaça à unidade nacional e continua a ser assunto tão sensível até hoje.2

Pág. 489

Os ultras estavam agitados — especialmente quando Heydrich e a SS começaram a voltar sua atenção para a França — e eram muito mais extremistas que Déat. Eugène Deloncle era oficial condecorado da artilharia, um personagem sombrio, instável e violento da periferia do fascismo francês de antes da guerra cuja organização paramilitar e antirrepublicana Cagoule fora apoiada na década de 1930 pelos executivos direitistas da gigante dos cosméticos UOréal. Cauteloso, o comandante militar alemão em Paris havia “tolerado”, mas não “autorizado”, o Mouvement Social Révolutionnaire (m sr), sucessor da Cagoule, cuja bandeira era “a construção de uma nova Europa juntamente com a Alemanha nacional-socialista e todos os outros países europeus libertados do capitalismo liberal, do judaísmo, do bolchevismo e da maçonaria”. O m sr — que prezava tanto proclamações quanto as outras agrupações políticas da ocupação — queria regenerar a França “racialmente”, para evitar que judeus “contaminassem” o sangue francês, e criar uma economia socialista. Saquear as propriedades dos judeus era um estímulo adicional, como também, apesar do suposto compromisso com o socialismo, o apoio contínuo da L'Oréal. Mas quando Deloncle tentou tomar de Déat o controle sobre o RNP, os dois acabaram enfraquecidos pelo conflito interno.

Págs. 489-490

Os conflitos internos entre as agências alemãs em Paris eram igualmente ferozes. Deloncle também foi apoiado pela SiPo/SD . Equipados com os explosivos que ela lhes fornecia, seus homens tentaram dinamitar sete sinagogas em Paris na noite de 2-3 de outubro de 1941. Seis dos edifícios foram danificados, juntamente com outros ao redor; dois soldados alemães e inúmeros residentes franceses estavam entre os feridos. Quando a polida militar investigou as explosões, o SD tentou encobrir sua participação, alegando que aquilo não passava de “uma história de judeu”, e houve um choque frontal com o comandante militar da Wehrmacht, que logo descobriu a ligação quando um dos assessores de Deloncle, embriagado, alardeou os fatos numa casa noturna de Paris. O general Von Stülpnagel exigiu a retirada dos dois altos oficiais da SS em Paris e impediu que Deloncle fosse se juntar a seus homens na frente oriental. O caso abriu um fosso entre a Wehrmacht e a ss que afinal deu a Heydrich a abertura para tomar o comando do policiamento na França e nomear seu próprio HSSPF na primavera seguinte. Quanto a Deloncle, ele perdeu o controle sobre o m sr , envolveu-se em contatos com agentes secretos aliados e acabou sendo morto numa troca de tiros com a Gestapo em janeiro de 1944. Não foi um fim atípico no torturado mundo do extremismo francês.8

Págs. 492-493

Céline não foi o único escritor renomado a cultuar o fascismo. O jornalista e crítico Lucien Rebatet publicou uma diatribe violenta e antissemita chamada Les Décombres [As ruínas] contra os responsáveis pela queda da França, elogiava a cultura alemã e via um "profundo significado político” no disciplinado estilo da Orquestra de Câmara de Berlim. Na direção da prestigiosa Nouvelle Revue Française, o escritor Drieu La Rochelle imprimiu-lhe uma linha antidemocrática e pró-alemã e sonhava com uma "terceira via” europeia fascista, entre os Estados Unidos e a ameaça do bolchevismo. O mesmo fazia Robert Brasillach, outro brilhante e jovem literato extremista, que considerava os franceses "um povo absurdo e medíocre” e insistia em louvar os jovens alemães e criticar os velhos senis que ostentavam cargos em Vichy. Seu fascínio por um belo e jovem professor do Instituto Alemão teve um trágico desfecho quando este foi morto em ação na frente oriental. Visitando a floresta de Katyn como jornalista, ele se recordou do amigo e saudou sua amizade como a expressão de uma Europa rejuvenescida que derrotaria tanto a complacência burguesa como "as forças do Leste”. Para Brasillach, Pétain e Vichy tinham chegado a um beco sem saída e, à medida que a colaboração entrava em colapso, passou a confiar exclusivamente nos alemães. A queda de Mussolini o comoveu profundamente e parecia anunciar o fim de seu
ideal de uma Europa fascista: "Uma França fascista numa Europa fascista, que belo sonho!”. Mas, à diferença de muitos outros ultras, ele se recusou a abandonar suas convicções. Mesmo nos dias sombrios do fim de 1944, quando viu que os ventos sopravam na direção "do templo da paz universal, da irmandade imposta a todas as raças e credos”, Brasillach ainda acreditava que o fascismo tinha sido "a verdade mais emocionante do século XX”.10

Aquela era a perspectiva ultra, mas certamente não a de Cocteau: ele não era um extremista e valorizava mais a sociedade e a sociabilidade que a ideologia. "Eventos me entediam”, confidenciou o poeta Valéry a Gerhard Heller por volta dessa época. "Os eventos são a espuma das coisas. É o mar que me interessa.” No que dizia respeito à política, os sentimentos de Cocteau eram muito semelhantes. A situação foi ficando sombria à medida que amigos fugiam do país ou passavam à clandestinidade. Alguns escreveram cartas angustiadas antes de ser presos e deportados, e um ou dois se suicidaram. Junto com Picasso, em 1943 Cocteau foi ao enterro do pintor exilado judeu Chaim Soutine, um ato de solidariedade para com um homem que tinha morrido fugindo da Gestapo. Sua vida social, no entanto, mantinha o ritmo frenético. Encantava-se, como tantas outras vezes, com a "beleza prodigiosa” de Paris — os alemães que apareciam para lhe prestar homenagens, os visitantes da zona livre, sempre "estupefatos pela cidade”, os restaurantes "que vendem de tudo o que supostamente está proibido”; os caçadores de autógrafos perseguindo estrelas e atores de cinema nas ruas. "Como os alemães devem se espantar com esta primavera”, divertia-se ele em maio de 1942. "Essas flores, esses chapéus femininos, esses pequenos carrinhos puxados por equipes de ciclistas, pela incrível graça da resistência do ar! Paris digeretudo e não assimila nada. Um espetáculo de profunda leveza.. .”11

Págs. 494-495

O próprio Cocteau tinha muito pelo que se sentir grato. Era o patrocínio alemão que o protegia dos extremistas franceses. Não particularmente interessado na política, ele demonstrou com que facilidade um espírito independente podia se dedicar às artes sob a ocupação alemã — na verdade, com sustento alemão. Com a aprovação dos censores, sua carreira no cinema durante a guerra decolou. Quando um artigo que o atacava apareceu numa revista de extrema direita, Cocteau observou que "todos os alemães riram do texto". À parte os ultras, a carreira de Cocteau tinha um lugar para quase todos, até mesmo o maréchal, cujo regime o atormentava. Em 1942, ele deu sua contribuição para uma luxuosa
obra de idolatria de Vichy, um livro de homenagem póstuma intitulado DeJeanne D ’Arc a Philippe Pétain [De Joana d'Arc a Philippe Pétain]. Com o subtítulo Quinhentos anos de história francesa, o livro suntuosamente ilustrado apareceu no momento certo para a visita do maréchal a Paris. A ocupação se aproximava do fim, mas Pétain ainda era popular e recebeu uma calorosa recepção. Como tema de guerra, Joana d'Arc era muito conveniente — dada a ambigüidade de suas associações — para a guerra particular de Cocteau: um símbolo de sentimento antibritânico, especialmente depois do desastre de Mers-el-Kebir. Quando o livro surgiu, em 1944, a própria Joana já tinha passado para o lado gaullista como um exemplo de resistência ao invasor. Cocteau não ficava muito atrás.13

Pág. 499-500

Essa continuidade foi de certa forma bastante inesperada. Afinal, Vichy não era um país dirigido por funcionários públicos, como a Bélgica e a Holanda: na França havia um governo legítimo, com um programa político claro de ruptura com o passado. Mas Pétain (como De Gaulle quatro anos mais tarde) tinha todas as razões para preservar a existência das instituições do Estado se quisesse governar com eficácia. Por isso os expurgos produziram menos mudanças do que se poderia esperar, e os extremistas de direita se queixaram amargamente: em 1944, Mareei Déat criticou a “comuna reacionária” da capital, alegando que seus membros eram profundamente attentistes, para não dizer gaullistas. Fossem ou não gaullistas, quase 80% dos prefeitos dos subúrbios de Paris durante a guerra eram republicanos antes do conflito. Quanto às zonas rurais, foram desestimuladas mudanças por motivos puramente políticos: os alemães também temiam o impacto sobre a eficiência e a continuidade. Na Aquitânia e em Charente, por exemplo, quase metade dos funcionários governamentais locais que tinham cargos em 1939 ainda estava presente quando a ocupação terminou.19

Assim, a promessa de Vichy de uma nova revolução autoritária mascarava a realidade de sua dependência do funcionalismo público civil. Naturalmente, os burocratas podiam — e o fizeram — servir como instrumentos de repressão, notadamente nas prisões em massa de judeus e de opositores políticos. Mas em geral não se mostravam propensos a aderir ao dinamismo revolucionário exigido pela extrema direita da França. O culto a Pétain escondia o vazio político no coração de seu governo, e sua recusa em permitir a formação de um único partido político ironicamente fez com que os funcionários franceses nunca se deparassem com algo semelhante à competição radical que os Gauleiters nazistas infligiram a seus pares alemães, ou que o nsb holandês usou — com muito menos sucesso — em seu esforço para assumir o controle do funcionalismo público civil na Holanda. Dessa forma, ter o conservador Pétain no poder protegeu a França do tipo de nazificação que ameaçava outros países, pelo menos até que fosse demasiado tarde na guerra para que fizesse muita diferença. Aumentando o controle sobre as províncias, criando um novo escalão de superprefeitos, impedindo que a maioria dos novos comissariados políticos especialmente formados tivesse grande influência, os altos funcionários franceses presidiram durante a guerra uma expansão da burocracia e uma consolidação do poder estatal que Wilhelm Stuckart, no Ministério do Interior do Reich, teria invejado. Os alemães podiam ter conquistado a França, mas o Estado francês sobreviveu mais ou menos intacto.

Pág. 510

A longevidade de tais figuras oferece uma pista para compreender a dinâmica da colaboração na França durante a guerra. Os franceses não foram um país de colaboradores, embora de início muitos tenham sido atraídos pela ideia. No começo o governo de Pétain foi popular porque parecia prometer o restabelecimento da ordem depois do caos da derrota. Os mais impacientes com ele eram da extrema direita, que desconfiavam que sua Revolução Nacional era na realidade uma restauração conservadora disfarçada, e não a ruptura fascista que almejavam com o passado. Mas no fim de 1941, no máximo — a crise dos reféns foi um ponto de inflexão, mas a crise do abastecimento alimentou o conflito —, o público francês tinha se afastado de Vichy. fA opinião geral parece ser muito desfavorável ao governo”, relatou o governador de Puy de Dome em outubro daquele ano. Cada vez mais afastada da opinião pública francesa, a administração permaneceu fiel aos ideais de colaboração e respondeu de forma positiva aos alemães mesmo quando estes aumentaram muito suas exigências. Enquanto isso, um grande número de seguidores de Pétain entrou para a resistência de uma forma ou outra, garantindo assim uma passagem sem sobressaltos para a Quarta República no pós-guerra. 33

Pág. 563

Se esse foi um exemplo para levar o Exército Nacional a aumentar suas ações, havia outros fora de Varsóvia, pois a atividade da resistência agora se alastrava pelos campos do centro da Polônia. Um ano depois de Hitler ter aprovado seu Plano Geral para o Leste, as prioridades de Himmler tinham mudado drasticamente. No verão de 1943, ele declarou todo o Governo-Geral como uma "zona de guerra partisan” (Bandenkampfgebiet). Instadas por ele a "queimar aldeias inteiras se necessário”, a ss e a polícia, reagiram com as costumeiras táticas de terror, deixando milhares de mortos. Porém, dentro da SS havia sérios desacordos, e Von dem Bach--Zelewski insistia em que "nenhum país pode ser governado apenas com o uso da polícia e das tropas”, e tentou forçar uma política mais astuta (semelhante a outras levadas a cabo nos Bálcãs), que explorasse o anticomunismo dos poloneses e os trouxesse para o lado alemão. A SS esperava poder apelar para o Exército Nacional, cujo comandante, "Grot”, tinha sido capturado por eles em junho; mas sua recusa em cooperar (o que levou à própria morte) significou que eles tinham de se conformar em trabalhar — nos bastidores, e de maneira intermitente — com as Forças Armadas da Polônia (NSZ), menos expressivas e de extrema direita.

Págs. 575-576

As repercussões foram imediatas e duradouras. A violência convenceu Stálin de que poloneses e ucranianos não podiam viver juntos, e Moscou começou a planejar uma série de mudanças forçadas de população entre 1944 e 1947. Na vizinha Galícia, os poloneses agora se voltavam contra os ucranianos por vingança, e o embrionário movimento partisan polonês foi inflado por refugiados de Volínia. Esse movimento depois se espalhou não apenas para o oeste na direção da Polônia Central, mas também para o norte em direção a Vilna e para outras regiões do leste da Polônia de antes da guerra onde os poloneses eram minoria e precisavam se defender. Ao mesmo tempo, o fracasso do Exército Nacional em Volínia encorajou muitos poloneses a preferir procurar os partisans soviéticos. Assim como os ucranianos, os poloneses estavam agora entre os russos e os alemães, e era difícil evitar certos acordos. Tanto os comandantes de extrema direita das n s z como do Exército Nacional negociaram acordos temporários com oficiais da ss alemã e da Wehrmacht para evitar a “ressovietização" da região. (Embora Himmler proibisse esses acordos, eles aconteciam de qualquer forma em pequena escala.) Porém, outros comandantes do Exército Nacional cooperaram com os partisans soviéticos, reconhecendo a futilidade de se opor a eles. Tanto os poloneses como os ucranianos tinham esperança de ver um mundo no qual eles conseguissem abrir um espaço próprio, independentemente dos dois poderes igualmente totalitários. Mas esse mundo precisaria de muito mais que alguns anos para se materializar.61

Págs. 643-644

Para deixar as coisas em perspectiva, pode ser útil lembrar como era a situação aos olhos dos pequenos grupos de nazistas que se recusaram a transigir. Depois da guerra, pequenos grupos marginais, geralmente efêmeros, atacaram tanto americanos como soviéticos e reciclaram ideias tiradas dos escritos de Hitler de trinta anos antes. Também reagiram violentamente contra os movimentos europeístas que se tornavam visíveis na Europa Ocidental do pós-guerra. Karl-Heinz Priester, um antigo oficial da SS que assumiu um papel ativo na extrema direita, apareceu na primeira reunião dos neofascistas europeus em Roma em 1950 e advertiu:
Quanto mais esses homens que dizem amém a tudo nos apressarem para converter não apenas nossa pátria materna, a Alemanha, mas também nossa pátria paterna, a Europa, numa colônia [...] mediante dispositivos como o Conselho da Europa e a “União Europeia” [...] mais depressa aumentará a determinação de todos os alemães honestos e independentes de nos acompanhar em nosso caminho do nacionalismo até a Nação Europa.30
Até mesmo nazistas como Priester poderiam ver que, na era das superpotências, a Alemanha não tinha poder para recuperar sua independência sem apoio regional. Assim, a Nação Europa era a alternativa dos extremistas para Bruxelas e Estrasburgo, uma espécie de versão em tempos de paz das Waffen-ss “europeias” de Himmler. Não obstante, tais homens consideravam a democracia parlamentarista uma falsa "democratura” (Demokratur), acreditavam que o sistema multipartidário tinha de ser abolido e queriam reunificar o país com a ajuda de fascistas estrangeiros que pensavam como eles. Ignorados pelos eleitores, brigavam constantemente entre si, acusando-se mutuamente de vender-se ou transigir na questão racial. Alguns fundaram no ano seguinte o movimento Nova Ordem Europeia para lutar contra o “bolchevismo mongoloide” e o “capitalismo negroide” em nome dos homens brancos. Outros pensaram em atrair nacionalistas
africanos e forjar uma nova Euráfrica, que permitiria à Europa recuperar sua posição no centro da cena mundial.31


Págs. 659-660

Essa postura implacável com certeza estava presente entre os ingleses. Na ocasião do levante da Jamaica de 1865, por exemplo, expressões de um novo autoritarismo racial surgiram na imprensa vitoriana. Segundo o editor da publicação médica The Lancet, pequenos grupos de homens brancos só poderiam se salvaguardar em colônias pelos métodos mais coercitivos; os nativos tinham de “ser mantidos sempre de cabeça baixa com um bastão de ferro ou ser lentamente exterminados". Essas ideias expressavam a possibilidade inerente na prática do próprio império e os britânicos estavam começando a perceber que o “poder dos números" estava contra eles. O tio de Virginia Woolf Fitzjames Stephen escreveu uma famosa carta ao The Times em 1883 afirmando que “um governo absoluto, fundado não no consentimento mas na conquista" — como o dos britânicos na índia —, representava uma “civilização beligerante” que não deveria “se evadir da afirmação aberta, descomprometida e direta de sua superioridade”. Mas essa não era a linha de raciocínio costumeira na Inglaterra, e sempre foi sujeita a críticas. Em última análise, essa foi a base do império de Hitler. Por mais brutais e mortíferos que tenham sido, nenhum poder colonial, britânico ou de outro país da Europa, jamais lidou com o problema do “poder dos números” de forma tão áspera e violenta quanto os nazistas. Sua abordagem em geral era gradualista e experimental, motivada por uma imaginação política restrita pelo extremismo da variedade de fatores do nazismo, que incluía uma cultura mais legalista e uma burocracia de Estado surpreendentemente desmotivada. Se faltavam a ideologia e os recursos para sistematizar a matança em massa na escala da Nova Ordem, faltava também um fundamental sentido de urgência. Depois de conseguirem sua revolução em casa, os nazistas tinham pressa de colher os benefícios no exterior. “Nós queríamos estabelecer um império mundial quatro anos depois de termos introduzido o alistamento militar geral”, foi o resumo de um oficial alemão capturado em 1943. À medida que a própria guerra criava racionamentos, gargalos e grandes problemas novos, o culto da força e da geopolítica racial que os nazistas levavam tão a sério transformou-se num programa de extermínio numa escala sem precedentes.28

|***| Nazismo de esquerda? (Ian Kershaw) O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita - Parte 03

domingo, 19 de março de 2017

Os planos de (Reinhard) Heydrich no início de outubro de 1941

Não podemos dizer com certeza se Hitler decidiu no início de outubro de 1941 exterminar os judeus da Europa em campos de extermínio. Mas podemos assegurar, entretanto, que Heydrich desejava exterminá-los em áreas controladas pela Alemanha. Veja como. Em 2 de outubro de 1941, Heydrich descartou o reassentamento para o Oriente de tchecos que eram hostis à Alemanha porque "eles formariam um grupo de liderança no Oriente, que seria dirigido contra nós [denn aussiedeln kann ich sie nicht, weil sie drüben Im Osten eine Führerschicht bilden würden, die sich gegen uns richtet]". Ele afirmou que essas pessoas deveriam ser "colocadas contra a parede [sie endgültig a die Wand zu stellen]". No entanto, dois dias depois, Heydrich encontra Meyer, Leibbrandt, Schlotterer e Ehlich e reclama que as demandas de trabalho judaico impediriam um "reassentamento total dos judeus fora dos territórios ocupados por nós" [NO-1020, VEJ 7, pág. 153.: "Dies würde aber den Plan einer totalen Aussiedlung der Juden aus den von un besetzten Gebieten zunichte machen]".

Essas afirmações só podem ser conciliadas se o "totalen Aussiedlung der Juden aus den von uns besetzten Gebieten zunichte machen" de Heydrich for um eufemismo para matar os judeus nos territórios ocupados pelos alemães, porque a declaração de dois dias antes havia descartado o reassentamento de populações hostis em colônias no Leste e os judeus eram intrinsecamente uma população hostil na cosmovisão nazista, como demonstrado pela declaração de Heydrich em Wannsee que, qualquer remanescente judeu tinha de ser "tratado em conformidade, porque é um produto da seleção natural e agiria, se solto, como uma semente de um novo avivamento judaico (ver o registro da história)". Isso também é confirmado pelo fato de que Heydrich bloqueou a emigração de judeus espanhóis residentes na França para o "Marrocos espanhol", porque, segundo Heydrich, "esses judeus também estariam fora do alcance direto das medidas para uma solução básica para a Questão Judaica a ser posta em prática depois da guerra [veja a nota 17 de Browning aqui]." O plano de Heydrich era claro; a única questão é saber se, ou não, Hitler compartilhou isso até essa data; E se não, quanto tempo levou para Hitler dar luz verde?

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2017/03/heydrichs-plans-in-early-october-1941.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: Heydrich's Plans in early October, 1941
Tradução: Roberto Lucena

sexta-feira, 10 de março de 2017

Nazismo de esquerda? (Ian Kershaw) O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita - Parte 03

Destaque inicial da edição espanhola do livro (Título em castelhano: "Descenso a los infiernos. Europa 1914-1949"), sobre Kershaw (tradução minha): "Ian Kershaw, um dos mais prestigiosos historiadores europeus de nosso tempo, autor de uma monumental biografia de Hitler, oferece-nos agora sua obra mais ambiciosa: uma história da Europa desde a primeira guerra mundial até nossos dias, que arranca com esse relato das terríveis décadas que vieram a se acumular no continente os efeitos de duas guerras mundiais, da crise econômica dos anos trinta e das comoções sociais que conduziram, por um lado, à revolução bolchevique e, por outro, a ascensão do fascismo e do nazismo. Kershaw não se limita ao relato dos sucessos políticos e militares, senão que procura registrar a sociedade que os protagonizou, aprofundando-se nas condições de vida dos europeus ou explorando sua cultura, para saber como viam e interpretavam os acontecimentos de seu tempo. Seu propósito, relata-nos, foi o de explorar no passado as forças que determinaram a configuração do presente em que vivemos."

Ainda sobre Ian Kershaw: "Sir Ian Kershaw é um historiador e professor britânico. É professor de História Moderna na Universidade de Sheffield, e uma das principais autoridades académicas sobre Adolf Hitler."

A quem não pegou a série desde o começo: Parte 1, Parte 2

Abaixo seguem trechos sobre a extrema-direita europeia (fascismo e nazismo) contidos no livro. Da série "Nazismo de esquerda? O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita", que mostra o quanto são ridículos e desonestos (além da falta de fontes sérias, e muitas vezes bastante ignorância e um pedantismo fora do comum) os grupos (em geral grupos neoliberais radicais) que panfletam este mantra panfletário no Brasil. O mais engraçado foi ter sido rotulado de "doutrinado" quando os textos publicados foram tirados de livros de dois historiadores britânicos (pelo visto esta direita que se contorce com os textos mal lê os posts direito), que reforçam como a discussão política no Brasil se empobreceu com essa cretinice generalizada impulsionada em grande parte pela mídia corporativa brasileira.

E um aviso ao pessoal mal educado que vem com esses sopros de "autoridade" (autoritarismo) descendo a lenha nos comentários: sugiro moderarem o tom. Discordar é bom e saudável, "fazer pregação" não. Em vez de se alterarem com apelos de "ordem", leiam os livros destacados e tirem suas próprias conclusões, ninguém está impedindo vocês de os lerem, mas ninguém tem obrigação de aturar "afetação" alheia. Evitem também repetir mantras/clichês/baboseiras de lunáticos de internet ou "gurus de seitas virtuais" que se proliferam no país dessa "Nova Direita" ou mesmo de algum "coletivo psolento pós-moderno", melhorem o nível da discussão (e mais honestidade também e menos fanatismo), isso é possível (espero...).

Autor: Ian Kershaw
Livro: De Volta do Inferno: Europa, 1914-1949
Título original: To hell and back (2015)

"Resenhas" do livro (em inglês):
https://www.theguardian.com/books/2015/oct/30/to-hell-and-back-ian-kershaw-review
https://www.nytimes.com/2015/11/29/books/review/ian-kershaws-to-hell-and-back-europe-1914-1949.html?_r=0
http://www.hsozkult.de/review/id/rezbuecher-25264
https://www.ft.com/content/ba50c1ec-7c10-11e5-98fb-5a6d4728f74e

Pág. 16-17

O nacionalismo estrepitoso surgido depois da Primeira Guerra Mundial ganhou ímpeto não com as rivalidades étnicas, mas também devido ao conflito de classes. A percepção de unidade nacional podia ser enormemente intensificada pelo foco em supostos “inimigos” de classe dentro ou fora do Estado-nação. A imensa turbulência econômica que se seguiu à guerra e as medonhas consequências da crise da década de 1930 potencializaram o antagonismo de classes em toda a Europa. O conflito de classes, com frequência violento, já havia pontuado, naturalmente, toda a era industrial. No entanto, com a Revolução Russa e a criação da União Soviética, ele se tornou muito mais forte em comparação com o período anterior à Primeira Guerra Mundial. Tratava-se da proposição de um modelo alternativo de sociedade, que tinha derrubado o capitalismo e criado uma “ditadura do proletariado”. As ideias da eliminação da classe capitalista, a expropriação dos
meios de produção pelo Estado e a redistribuição das terras em grande escala a partir de 1917 atraíram amplas parcelas das massas empobrecidas. Contudo, a existência do comunismo soviético também dividiu a esquerda, debilitando-a de forma fatal, ao mesmo tempo que fortalecia muitíssimo as forças da extrema direita nacionalista. Elementos revitalizados da direita podiam direcionar as energias violentas daqueles que se sentiam ameaçados pelo bolchevismo — de modo geral, as elites proprietárias tradicionais, as classes médias e os camponeses proprietários de terras — para movimentos políticos novos e extremamente agressivos.

****
A contrarrevolução, tal como o apelo revolucionário da esquerda, explorava o rancor e as angústias do conflito de classes. Os movimentos contrarrevolucionários ganharam maior popularidade onde foram capazes de combinar o nacionalismo extremado com um antibolchevismo virulento. Também nesse caso, os países da Europa Central e Oriental, onde a ameaça bolchevique era vista como iminente, foram os mais afetados. O maior perigo internacional, porém, ocorreu onde a combinação de nacionalismo extremo e ódio quase paranoico ao bolchevismo estimulou o surgimento de movimentos de massa de direita — que conseguiram ascender ao poder na Itália e, mais tarde, na Alemanha. Nesses casos, quando as energias nacionalistas e antibolchevistas carregadas de ódio que haviam impelido a extrema direita ao poder puderam ser canalizadas para a agressão externa, a paz na Europa se viu gravemente ameaçada.

Pág. 18

Os sonhos da Alemanha de dominar a Europa se extinguiram com sua completa derrota, devastação e divisão em dois Estados. Surgiu na Europa Ocidental uma nova disposição de desarmar o antagonismo nacionalista em favor de cooperação e integração. As fronteiras tornaram-se fixas, devido à presença das novas superpotências. A transição do antigo antibolchevismo, que fortalecera a extrema direita, para uma ideologia de Estado na Europa Ocidental promoveu uma política conservadora estável. E, principalmente, o capitalismo reformado (dessa vez com liderança ativa dos Estados Unidos) gerou uma inacreditável prosperidade na metade ocidental do continente, apoiando com isso a estabilidade política. Essas mudanças fundamentais ocorridas depois de 1945 combinaram-se, todas elas, para remover a matriz de elementos de crise que quase destruíram o continente em duas guerras mundiais.

Pág. 125

A SOBREVIVÊNCIA DA DEMOCRACIA NA ALEMANHA
A Marcha sobre Roma dos fascistas de Mussolini teve efeito imediato sobre a extrema direita radical no cenário político cada vez mais turbulento da Alemanha. Desde 1920, um incendiário nacionalista e racista de notável talento demagógico, Adolf Hitler, chamava a atenção nas cervejarias de Munique, embora praticamente só nelas. Em 1921, ele se tornara líder do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (nsdap), que em certos aspectos, como a formação de um violento braço paramilitar, assemelhava-se ao Partido Fascista de Mussolini em sua faseinicial. O Partido Nazista, como o nsdap passou a ser chamado, diferia pouco de outros movimentos nacionalistas e racistas da Alemanha. No entanto, Hitler era capaz de arrebatar multidões como nenhum outro orador. Embora ainda pequeno, seu partido tinha adquirido seguidores rapidamente, em especial na Baviera — estado que tinha considerável autonomia regional dentro do sistema federativo alemão e, desde 1920, bastião da oposição nacionalista ao que se entendia como a democracia “socialista” na Prússia, de longe o maior estado da Alemanha.

Pág. 127

Mais do que qualquer outra coisa, a questão das reparações de guerra manteve a tensão política em alta durante 1921-2, funcionando como oxigênio para a direita nacionalista. A violência política estava sempre próxima. Terroristas de direita cometeram 352 assassinatos políticos entre 1919 e1922. A democracia parlamentar era atacada tanto pela esquerda como pela direita. Um malogrado levante comunista no cinturão industrial da Saxônia, no segundo trimestre de 1921, provocou lutas ferozes durante alguns dias, antes que a polícia prussiana o sufocasse. Apesar da derrota, os comunistas continuaram a ganhar apoio nas áreas industriais. Já na Baviera, onde o governo estadual recusou-se a pôr em vigor a Lei de Proteção da República, aprovada pelo Reichstag em 1922 para combater o extremismo e a violência, a extrema direita nacionalista ganhava novos adeptos.

Pág. 127-128

O comando do Exército assumira uma postura ambivalente desde a fundação da república, defendendo o Estado em teoria, mas somente tolerando a nova democracia, sem entusiasmo. O comandante supremo do Reichswehr, general Hans von Seeckt, enviava sinais pouco claros. Recusou-se a intervir para restaurar a ordem na Baviera, mas, quando cresceram os boatos de um putsch, recomendou aos líderes políticos bávaros que não apoiassem os clamores nacionalistas cada vez mais veementes e inflamados por parte das milícias paramilitares de extrema direita. O comando bávaro do Reichswehr dera sinal verde para uma marcha sobre Berlim e a proclamação de uma ditadura nacional — ecos dos feitos de Mussolini na Itália —, mas, quando Von Seeckt jogou água fria na ideia e declarou que não atuaria contra o governo legal em Berlim, a ala bávara do Exército voltou atrás e deixou de apoiar o golpe.

Encurralado, Hitler decidiu que não tinha alternativa senão agir, para não ver seu apoio sumir pelo ralo. A tentativa de putsch, que ele lançou teatralmente numa grande cervejaria de Munique em 8 de novembro de 1923, frustrou-se vergonhosamente na manhã seguinte, debaixo de uma fuzilaria da polícia no centro da cidade. O malogro do putsch da cervejaria foi como a lancetada de um abscesso no organismo político. Seus participantes foram detidos e, alguns meses depois, os líderes, inclusive Hitler, foram julgados e condenados à prisão, ainda que essas penas fossem lenientes. A extrema direita fragmentou-se. A crise passou. A moeda esta bilizou-se logo depois, e foi aprovado um novo plano, mais condescendente, para o pagamento das reparações. A democracia sobrevivera — mas por um triz.

Pág. 128

Até que as reparações pudessem ser liquidadas, o afrouxamento dos grilhões de Versalhes e a reconstrução do Exército teriam de esperar (ainda que acordos secretos com a União Soviética, depois do Tratado de Rapallo, em 1922, tenham criado certo grau de cooperação para o treinamento de oficiais, contornando restrições impostas em Versalhes). Mas, sem apoio do Exército, a extrema direita nacionalista da Alemanha não tinha, em 1923, a menor possibilidade de emular a ascensão do fascismo ao poder que ocorrera na Itália no ano anterior. O perigo para a democracia passou. Tempos novos e melhores estavam por vir. A ameaça, porém, apenas diminuíra, mas não desaparecera.

Pág. 129

Até que as reparações pudessem ser liquidadas, o afrouxamento dos grilhões de Versalhes e a reconstrução do Exército teriam de esperar (ainda que acordos secretos com a União Soviética, depois do Tratado de Rapallo, em 1922, tenham criado certo grau de cooperação para o treinamento de oficiais, contornando restrições impostas em Versalhes). Mas, sem apoio do Exército, a extrema direita nacionalista da Alemanha não tinha, em 1923, a menor possibilidade de emular a ascensão do fascismo ao poder que ocorrera na Itália no ano anterior. O perigo para a democracia passou. Tempos novos e melhores estavam por vir. A ameaça, porém, apenas diminuíra, mas não desaparecera.

Pág. 163

Nem todas as ligas eram fascistas. Algumas delas, na verdade, rejeitavam essa associação. E nem toda a extrema direita francesa foi atraída pelas ligas. Como em toda parte, os limites entre a direita conservadora e a extremista eram tênues. O movimento perdeu força. A mão estabilizadora de Poincaré e a sensação de segurança restabelecida entre as classes proprietárias desarmou a crise. As ligas perderam apoio — pelo menos por algum tempo. Com o conservadorismo dominando, a sensação de necessidade de uma extrema direita diminuiu. Mas não desapareceu. Numa nova crise — mais prolongada, mais desestabilizante, mais perigosa —, a ameaça da extrema direita poderia voltar, de forma mais intensa, a pôr em perigo a república francesa.

Pág. 164

Na Alemanha dos “anos dourados” do fim da década de 1920, não parecia haver motivo de inquietação. O crescimento econômico era firme. Os padrões de vida estavam melhorando. O país passou a fazer parte da Liga das Nações. As fronteiras ocidentais tinham sido fixadas em Locarno. Quatro mudanças de governo entre 1925 e 1927 não afetaram a sensação de que, depois do período de inquietação no início da década, a democracia estava instalada. Os extremismos políticos tinham perdido apoio. A base de sustentação do comunismo caíra para 9% em 1924, com o correspondente aumento de votos para os sociais-democratas moderados. A extrema direita, embora fragmentada depois da frustrada tentativa de golpe empreendida por Hitler em novembro de 1923, permanecia viva nos setores mais marginais da política — ao sair da prisão, no ano seguinte, ele refundara seu Partido Nazista. Na opinião de um observador em 1927, este não passava de “uma dissidência incapaz de exercer influência digna de nota sobre a grande massa da população e sobre o curso dos acontecimentos políticos”.

Pág. 170/171

Com os preços dos produtos agrícolas no chão, as torneiras de crédito secas e as taxas de juros nas alturas, a insolvência reduziu muita gente à penúria. As propriedades agrícolas eram vendidas ou iam a leilão. Na Baviera, as vendas forçadas de propriedades entre 1931 e 1932, por exemplo, chegaram a mais de 50%. Os trabalhadores agrícolas lutavam para conseguir trabalho. Pequenos proprietários se mantinham com a agricultura de subsistência. Às vezes, tratava-se de sobrevivência em sentido estrito. As famílias de um vilarejo pobre no sul da França ficaram reduzidas a uma única refeição diária, composta apenas de castanhas, azeitonas, rabanetes e alguma verdura que não conseguiam vender. Compreensivelmente, esses camponeses da França e de muitas outras partes da Europa dirigiam seu ódio a qualquer alvo que acreditassem culpado de seu infortúnio — o Estado, os burocratas, a gente da cidade, agiotas, estrangeiros, judeus —, alimentando o radicalismo da extrema direita.

Pág. 175/176

O desastroso agravamento da situação econômica radicalizou não apenas o pensamento social, mas a ação política em toda a Europa. À medida que as tensões de classe se aguçavam, aprofundava-se a polarização política. A esquerda, que em muitos países estava dividida entre socialistas mais moderados e partidos comunistas alinhados com Moscou, mutuamente antagônicos, procurava, quase sempre em vão, evitar a deterioração drástica no padrão de vida da classe trabalhadora. A militância na esquerda era, em boa medida, também uma resposta aos perigos de uma maré montante de movimentos extremistas de direita e antissocialistas. Em quase todos os países fora da União Soviética, a Depressão trouxe um surto de apoio a movimentos fascistas que pretendiam destruir a esquerda e reorganizar as sociedades por meio de uma unidade nacional artificial e forçada. Quanto mais abrangente a crise, maior a probabilidade de mobilização de amplos setores da população pela extrema direita. A crise era mais generalizada na Alemanha; portanto, não surpreende que a reação no país fosse mais extrema do que em qualquer outro lugar da Europa.

Pág. 183/184

A Inglaterra aderiu firmemente à ortodoxia financeira que tinha como objetivo o equilíbrio orçamentário. As teorias que pregavam o combate à Depressão por métodos heterodoxos de financiamento deficitário ainda estavam engatinhando. Keynes, que pouco depois da quebra da bolsa fizera uma constrangedora previsão de que não haveria consequências graves para Londres e que “achamos o futuro decididamente animador”, ainda não concluíra sua teoria econômica anticíclica. Quando a Depressão se instalou, o mais ambicioso esquema de planejamento econômico mediante empréstimo para financiar o crescimento veio de Oswald Mosley, em quem a ambição política, a impaciência e o descompromisso eram tão notáveis quanto sua indiscutível capacidade. Mosley, de formação aristocrática, a princípio era um conservador. Desencantado com os conservadores, saiu do partido no começo da década de 1920 para tornar-se membro independente do Parlamento antes de entrar para o Partido Trabalhista. Suas posições sobre política econômica e social eram claramente de esquerda. Quando suas ideias sobre a estimulação da economia mediante financiamento deficitário foram rejeitadas sem contemplação, ele provocou uma secessão no Partido Trabalhista e criou o Partido Novo. E, quando o Partido Novo fracassou na eleição geral de 1931, em que não teve votação significativa, ele passou para a extrema direita, expressando abertamente sua admiração por Mussolini. Fundou a União Britânica dos Fascistas em 1932 e assim empreendeu o caminho para o ostracismo político.

Pág. 191/192

A atração do fascismo Alguns movimentos da extrema direita radical copiavam abertamente os métodos, os símbolos e o léxico usados pelos seguidores de Mussolini e Hitler, e se autointitulavam “fascistas” ou “nacionalsocialistas” com orgulho. Outros aceitavam algumas ou muitas das ideias dos movimentos, mas negavam-se a usar o rótulo. A questão é basicamente de definição — e tentar definir fascismo é como tentar pregar gelatina na parede. Cada um dos numerosos movimentos de extrema direita tinha suas características e suas ênfases. E, como cada um deles se dizia representante “verdadeiro”, “real” ou “essencial” de uma nação e baseava grande parte de seu apelo ultranacionalista na suposta singularidade dela, não podia haver uma organização internacional autêntica que representasse para a direita radical um equivalente do que a Comintern era para a esquerda. Em dezembro de 1934, uma reunião de representantes da extrema direita de treze países (Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Lituânia, Noruega, Países Baixos, Portugal, Romênia e Suíça), realizada às margens do lago Léman, tentou estabelecer um contexto para uma ação colaborativa, porém o país mais importante, a Alemanha nazista, boicotou o encontro — que nem sequer foi capaz de entrar em acordo sobre uma base doutrinária comum.

Pág. 192

Não obstante, existiam algumas características ideológicas comuns aos movimentos de extrema direita, fossem autointitulados “fascistas” ou não: a ênfase ultranacionalista na unidade da nação, que ganhava sua própria identidade por meio da “limpeza”, eliminando todos os que não pertencessem a ela — estrangeiros, minorias étnicas, “indesejáveis”; exclusão racial (embora não necessariamente racismo biológico como na variante nazista), expressa na reiteração da qualidade “especial”, “singular” e “superior” da nação; compromisso radical, extremo e violento com a destruição absoluta dos inimigos políticos (especialmente marxistas, mas também liberais, democratas e “reacionários”); comportamento calcado na disciplina, na “virilidade” e no militarismo (normalmente envolvendo organizações paramilitares); e crença numa liderança autoritária. Outros traços foram importantes, até mesmo centrais, para a ideologia de algum movimento específico, mas não onipresentes. Alguns países orientaram seu nacionalismo para objetivos irredentistas ou imperialistas, com consequências desastrosas, mas nem todos eram intrinsecamente expansionistas. Alguns ainda, embora não todos, tinham forte tendência anticapitalista. Com frequência, mas nem sempre, defendiam a reorganização da economia segundo uma orientação corporativista, a abolição dos sindicatos e a regulação da política econômica por “corporações” de interesses, dirigidas pelo Estado.

Pág. 192/193

A exatidão acadêmica da terminologia é uma questão absolutamente indiferente tanto para os que sofreram nas mãos da extrema direita como para os que, sendo de esquerda, fizeram decidida oposição aos movimentos que eles mesmos não hesitavam em chamar de “fascistas”. Naturalmente, os requintes da precisão semântica não devem obscurecer a questão maior da guinada para a direita — em qualquer de suas formas — durante a Depressão.

Pág. 196

A força do conservadorismo bloqueou qualquer possível abertura para a extrema direita. A União Britânica de Fascistas (buf), de Oswald Mosley, fundada em 1932, nunca teve chance de se disseminar. A essa altura, tinha cerca de 50 mil membros, uma clientela variada de profissionais liberais de classe média, insatisfeitos, ex-soldados, pequenos empresários, comerciantes, funcionários de escritório e trabalhadores sem qualificação de algumas áreas decadentes da Inglaterra e do East End de Londres (área pobre tradicionalmente, ocupada por imigrantes, onde vivia um terço da população judaica do país). O estilo da buf mais parecia uma tosca imitação importada. As camisas pretas dos fascistas, as marchas, a ação política e a iconografia, para não falar da revoltante violência pública contra judeus e opositores políticos, não combinavam com a cultura política britânica. Confrontos com a esquerda antifascista causavam perturbações cada vez maiores na ordem pública. Seu apoio — inclusive o de Lord Rothermere, dono do muito lido jornal The Daily Mail — desabou depois que uma grande passeata, realizada em Londres em junho de 1934, foi acompanhada de uma brutalidade repulsiva contra os opositores de Mosley, infiltrados às centenas na multidão de 15 mil manifestantes. Mosley tinha tanta certeza da humilhação eleitoral que seu partido sofreria que a buf nem sequer concorreu à eleição de 1935. Em outubro daquele ano, os membros da organização já não passavam de 5 mil, e ela só se recuperou lentamente às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando chegou a 22,5 mil membros. Quando da eclosão do conflito, Mosley e outros líderes da buf foram presos, e o partido foi dissolvido. A União Britânica de Fascistas representou uma ameaça para aqueles que seus membros consideravam inimigos raciais ou políticos e um considerável incômodo para a ordem pública, mas seu impacto sobre a política institucional britânica foi mínimo.

Pág. 197/198

Nos Países Baixos, apesar do desemprego de 35% em 1936, a direita radical conseguiu pouca inserção nas estruturas políticas, que permaneceram solidamente vinculadas às subculturas protestante, católica e social-democrata. Os governos mudavam, mas na verdade existia uma continuidade na burocracia, e muita adaptação prática e concessões entre os partidos governantes. O medo cada vez maior da Alemanha nazista contribuiu também para uma ideia de unidade nacional que ajudou a manter a coesão do sistema parlamentar em vigor. O fascismo era visto como “estrangeiro” e como uma ameaça nacional. O ponto alto do principal movimento fascista, o Nationaal Socialistische Beweging, foi alcançado em 1935, quando obteve 8% dos votos. Mas em dois anos esse percentual caiu para 4%, e o apoio à extrema direita continuou em baixa durante o que restava do período anterior à guerra.

A Bélgica testemunhou uma breve lufada de apoio a um movimento corporativista católico e autoritário que beirava o fascismo. Em 1936, o Partido Rex (que tomou o nome de uma editora católica chamada Christus Rex, por sua vez assim chamada por causa da recém-instituída festa de Cristo Rei) conquistou 11,5% dos votos — em boa medida como protesto das classes médias de língua francesa nas partes industrializadas do sudeste do país contra a corrupção dos partidos convencionais. Mas esse eleitorado em pouco tempo encolheu, restando dele apenas uns poucos adeptos. Da mesma forma que nos Países Baixos, as forças tradicionais do meio social e político — católicos, socialistas e liberais — preencheram o espaço que os novos movimentos de extrema direita poderiam ter ocupado. Na Bélgica, a inexistência de um nacionalismo genuinamente belga era também um obstáculo. O Rex tinha uns poucos adeptos em Flandres, onde havia movimentos
nacionalistas e protofascistas (embora sem apoio majoritário).

Durante algum tempo, considerou-se que a Terceira República na França podia estar seriamente ameaçada pela extrema direita. O sistema político não dava ensejo a mudanças frequentes de governo (que quase sempre se resumiam a uma dança das cadeiras, com as mesmas pessoas em torno da mesa do gabinete), mas sim a alianças pragmáticas variadas entre os partidos. Essas alianças quase sempre incluíam os radicais, que constituíam o partido central da república. Os radicais eram anticlericais, defendiam princípios econômicos liberais, apoiavam-se firmemente nas classes médias e se dispunham a acordos com facções moderadas da direita ou da esquerda com intuito de permanecer no poder (o que geralmente acontecia). Nas eleições de 1932, quando a Depressão ainda estava se instalando, o Partido Socialista e os radicais, numa incômoda aliança de esquerda moderada, tiveram ganhos importantes. A derrota do bloco direitista integrado pelos partidos conservadores desencadeou uma reação exagerada da direita, num clima de xenofobia, acentuado nacionalismo, antissemitismo, antifeminismo e medo da “ameaça vermelha” (embora os comunistas só tivessem obtido doze das 605 cadeiras na Câmara dos Deputados). O clima de agitação foi exacerbado pelos acontecimentos dramáticos do outro lado do Reno. As Ligas — organizações paramilitares e extraparlamentares da direita nacionalista, formadas por grandes associações de veteranos, algumas delas com pelo menos algumas características fascistas — ganharam novo fôlego depois do declínio sofrido durante a estabilização financeira no governo de Poincaré.

Pág. 202

Campo fértil para a direita: A Europa Central e a Oriental

A Espanha era um caso excepcional na Europa Ocidental. No centro e no leste do continente, a guinada para a extrema direita era o lugar-comum. Os maiores movimentos fascistas surgiram na Áustria, na Romênia e na Hungria. Para a Áustria, a chegada de Hitler ao poder na vizinha Alemanha foi um acontecimento determinante. Na Romênia e na Hungria, a turbulência persistente que decorreu dos ajustes territoriais do pós-guerra foi um pré-requisito de peso. Grande parte dos que não simpatizavam com o socialismo na Áustria já eram protofascistas à época da Depressão. O colapso do sistema financeiro em 1931 e o desemprego galopante minaram a economia do país e as condições de vida de grande parte da população. Sob o impacto da Depressão, a divisão da política austríaca em três setores se aprofundou e radicalizou. Dois grandes movimentos fascistas, o Heimwehr [Defesa da Pátria], de origem local, e o Partido Nazista da Áustria, inspirado nos acontecimentos da vizinha Alemanha e em franco crescimento, defrontavam-se com um grande Partido Socialista que mantinha o sólido apoio da classe de trabalhadores industriais. Em 1930, os seguidores do Heimwehr eram duas vezes mais numerosos que os do Partido Nazista da Áustria, que muitos viam como uma versão local de uma organização estrangeira. Mas os nazistas vinham ganhando terreno com rapidez. Nas eleições regionais e municipais de 1932, conseguiram 16% dos votos.

Pág. 204

Na Hungria, onde os graves ressentimentos irredentistas gerados pelas perdas territoriais determinadas pelos acordos do pós-guerra ainda eram uma ferida aberta, a Depressão, que trouxe uma queda vertiginosa na produção agrícola e desemprego para um terço da força de trabalho industrial, exacerbou as tensões sociais e políticas. No entanto, principalmente entre 1932 e 1936, durante o governo do primeiro-ministro Gyula Gömbös, cujas inclinações para a extrema direita dividiram e desarmaram por algum tempo as pequenas forças fascistas, as elites governantes, depois de reconquistar sua força com a restauração conservadora da década de 1920, conseguiram controlar e manipular o Parlamento e se adaptar à administração da crise, de modo que nenhum grande partido fascista surgiu até 1937. A fragilidade da esquerda socialista, que nunca se recuperou do massacre a que foi submetida depois do colapso do regime de Béla Kun em 1919, e a limitada participação das massas nos anos seguintes na democracia de fachada do regime autoritário de Miklós Horthy desempenharam seu papel em reduzir as chances de uma mobilização fascista. Só a partir de 1937, por influência do que acontecia na Alemanha e pelas rápidas mudanças no horizonte da política internacional, surgiu um movimento fascista de grandes proporções. O Partido Nacional Socialista da Hungria — amálgama de oito grupos nacionalistas extremistas — nasceu do Partido da Vontade Nacional, fundado pelo oficial da reserva Ferenz Szálasi em 1935, e em 1939 assumiu o nome de Partido da Cruz Flechada. Começou a recrutar apoio com sucesso entre profissionais do setor público, oficiais do Exército e trabalhadores das áreas industriais de Budapeste, chegando a 250 mil membros em 1939-40. O breve momento de glória da Cruz Flechada — embora tenha sido de horror para suas vítimas — viria mais tarde, durante a guerra, com a Hungria sob domínio alemão e a derrota cada vez mais próxima.

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O sentimento antibelicista na esquerda alemã contrastava com o militarismo escancarado e a exaltação da guerra na extrema direita. Na década de 1920, a popularidade de Tempestades de aço, livro de memórias de Ernst Jünger que glorificava a guerra, já dera uma indicação clara do quanto a população alemã se achava dividida em relação à Primeira Guerra Mundial. Não foi surpresa, portanto, que Nada de novo no front enfurecesse a direita, principalmente os membros de seu incipiente grupo de vanguarda, o Partido Nazista. Ao ser distribuído na Alemanha, em dezembro de 1930, o filme americano baseado no romance provocou tamanha chuva de protestos por parte da direita, encabeçada pelos nazistas, que o consideraram um insulto à honra alemã, que as projeções públicas foram proibidas por “colocar em perigo a reputação internacional da Alemanha” e por “menosprezo ao Exército”.

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Uma falsa alvorada na França
Em meio à derrocada da esquerda na Europa, uma eleição em particular trouxe um raio de esperança. O resultado da eleição geral na França, em 1936, pareceu um triunfo para o antifascismo, uma reviravolta, enfim, naquilo que durante anos tinha sido a tendência rumo à extrema direita militante em todo o continente. Terminada a apuração dos votos do segundo turno, em 3 de maio de 1936 (o primeiro fora uma semana antes, em 26 de abril), a Frente Popular de Socialistas, Comunistas e Radicais obteve uma vitória assombrosa, ficando com 376 cadeiras, muito mais que as 222 da Frente Nacional, de direita. Foi imensa a euforia por parte dos eleitores da esquerda — principalmente trabalhadores, mas também a maioria dos intelectuais, escritores e artistas. Manes Sperber era um escritor judeu, nascido em 1905 na Polônia, mas exilado em Paris desde sua breve experiência na prisão na Alemanha, em 1933, e membro do Partido Comunista, do qual foi se tornando cada vez mais crítico até abandoná-lo em 1937. Mais tarde, escreveu a respeito
de sua empolgação com o resultado do pleito. Para ele, e para muitos outros, foi mais do que uma vitória eleitoral. Foi como uma lufada de vento fresco a arejar um ambiente abafado. Uma meta durante longo tempo vista como impossível parecia alcançável. “Nunca a fraternidade se divisou tão próxima como naquele maio de 1936”, escreveu Sperber. “Vindos de todas as direções, homens, mulheres e crianças acorriam às praças da Bastilha e da nação”, com suas canções e brados de alegria chegando às ruas vizinhas, convocando todos para se unir na busca de justiça e liberdade, e tudo sem recorrer à violência revolucionária. Não tardou para que as esperanças humanitárias de Sperber se mostrassem um sonho de desvairado otimismo.

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A França continuou dividida de alto a baixo. O ódio da direita nacionalista à Frente Popular ia muito além da oposição política convencional. A fúria maior se voltava contra Léon Blum, intelectual judeu que fora um dos primeiros defensores de Dreyfus. Blum tinha sido agredido fisicamente por uma horda nacionalista em fevereiro de 1936. No ano anterior, Charles Maurras, líder da Action Française, de extrema direita, denunciara Blum, de forma chocante, como “um homem a ser baleado — pelas costas”. O triunfo eleitoral da esquerda não diminuiu a polarização ideológica na França. Na realidade, a vitória fora muito menos contundente do que parecera à primeira vista. A votação da esquerda, de 37,3%, tinha sido apenas um pouco superior aos 35,9% obtidos pela direita. A principal mudança se dera no seio da própria esquerda, o que só fez aumentar o antagonismo da direita. Os radicais, do principal bloco centrista da república, perderam terreno, caindo de 157 cadeiras em 1932 para apenas 106 em 1936. Os socialistas, grupo majoritário na Frente Popular, tinham passado de 131 para 147 cadeiras. Pequenos partidos de esquerda obtiveram em conjunto 51 cadeiras, catorze a mais que em 1932. O que mais preocupava a direita era o fato de os comunistas terem sido os mais beneficiados: haviam saltado de dez para 72 cadeiras.

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Entre suas promessas eleitorais estava a adoção de um programa de obras públicas (que assinalava o fim da política econômica deflacionária), a redução da semana de trabalho, a instituição de pensões de aposentadoria e a criação de um fundo de desemprego. Como reflexo do forte clima antifascista, as entidades paramilitares seriam postas na ilegalidade. Entretanto, evitaram-se medidas radicais capazes de amedrontar as classes médias. A revolução social teria de esperar. Os socialistas puseram de lado o desejo de estatizar a economia; os comunistas não fizeram referência a sovietes ou coletivos camponeses. A cúpula administrativa do Banque de France seria ampliada para acabar com o controle exercido por uma oligarquia fechada de acionistas, mas o banco não foi estatizado. O valor do franco deveria ser mantido — para tranquilizar a classe média, que perdera suas poupanças no governo anterior de coalizão esquerdista —, embora isso logo tenha se revelado um compromisso imprudente. Garantiu-se o direito das mulheres ao trabalho, mas, na ânsia de evitar a abertura do debate sobre uma possível reforma da constituição (defendida por grande parte da extrema direita), não se fez menção alguma a seu direito ao voto.

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A enorme onda de greves fez com que os empregadores abrissem bem os olhos. Numa única tarde, em 7 de junho, numa reunião na residência do primeiro-ministro, no Hôtel Matignon, eles atenderam às principais exigências dos sindicatos, e as relações trabalhistas transformaram-se de um dia para o outro. Aprovaram-se o direito à sindicalização, a negociação coletiva de contratos de trabalho, a representação dos trabalhadores e a proscrição de medidas punitivas contra grevistas, além de aumentos salariais da ordem de 15%. Em poucos dias tornaram-se lei a semana de trabalho de quarenta horas e as férias remuneradas anuais de duas semanas (o que, com o apoio de passagens de trens a baixo custo, deu início ao êxodo de verão, de Paris e outras cidades, o que se tornou um aspecto permanente da vida social francesa). Aos poucos, as greves diminuíram. O dilúvio de novas leis prosseguiu com a proibição de ligas paramilitares, em 18 de junho, o que reduziu a desordem política e a violência nas ruas (apesar de levar setores da extrema direita à clandestinidade). Outras leis instituíram a reforma do Banque de France, elevaram para catorze anos a idade mínima para sair da escola, nacionalizaram as indústrias de armamentos e apaziguaram os agricultores ao aumentar os preços dos cereais. Criou-se o Ministério dos Desportos e do Lazer, que tinha como meta democratizar o acesso a atividades recreativas ao ar livre (uma reação à militarização desse setor nas organizações fascistas), oferecer formas atraentes de distração à classe trabalhadora e melhorar a saúde pública. O resultado foi o estímulo ao ciclismo, às caminhadas, aos albergues para a juventude e ao turismo popular, a melhoria das instalações esportivas e o fomento do interesse pelos esportes e sua prática. De modo geral, foi notável o alcance da intervenção realizada pelo governo da Frente Popular em tão pouco tempo.

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Ao desprezo pelo fascismo e à obstinada rejeição pelo eleitorado dos grupos conservadores, que no passado haviam se consorciado com a extrema direita, somava-se o desejo de amplas reformas sociais e econômicas da espécie que, acreditava-se, só a esquerda poderia proporcionar. Nos países escandinavos, onde a guerra fora menos destrutiva (embora a Noruega tivesse perdido 20% de sua infraestrutura econômica), a esquerda social-democrata pôde consolidar a base de poder constituída antes do conflito e introduzir reformas importantes e duradouras na previdência social. Na Dinamarca, os sociais-democratas, de início um pouco prejudicados por sua participação no governo colaboracionista durante a guerra, logo recuperaram as perdas sofridas para os comunistas. A social-democracia fortaleceu-se na Noruega, favorecida por seu envolvimento na resistência, e se manteve forte na Suécia. Na pequena Islândia, um dos raros países europeus que prosperaram na guerra e que se tornara independente da Dinamarca em 1944, os social-democratas continuaram a perder para o Partido Comunista de Unidade Popular. Ambos, porém, uniram-se ao Partido da Independência, conservador, numa coalizão que, extraordinariamente, enfrentou poucas discórdias para modernizar o país e melhorar o padrão de vida, mediante o apoio à frota pesqueira. Na Escandinávia, a guerra interrompeu, mas não destruiu as estruturas políticas ou os programas de reforma econômica e social.

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Por mais precários e insuficientes que tenham sido os expurgos dos colaboracionistas e dos culpados dos piores crimes de guerra, foram medidas que proporcionaram certa dose de catarse às vítimas do nazismo e do colaboracionismo, além de mostrar que os métodos violentos da extrema direita não teriam mais como envenenar as sociedades como acontecera depois de 1918. Um elemento crucial da instabilidade política do entreguerras havia praticamente desaparecido. As mudanças de fronteiras e as transferências de populações na Europa Oriental, embora realizadas à custa de muito sangue, geraram uma homogeneidade étnica muito maior à que tinha se registrado no entreguerras, o que também contribuiu para a pacificação da metade oriental do continente, muito embora sob a mão pesada da repressão soviética.

Notas
(Depois verei se é possível colocar todas as notas, pois ficam no fim do livro e parecem não estar organizadas, e são muitas)

|***| Nazismo de esquerda? (Mark Mazower) O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita - Parte 04
|***| Nazismo de esquerda? (Richard J. Evans) O que os Historiadores nos dizem sobre o Nazismo SER de (extrema) Direita - Parte 02

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