QUEM FOI CHIUNE SUGIHARA?
Por Eric Saul
Durante a última metade de século, as pessoas perguntaram, "Quem foi Chiune Sugihara?". Elas também perguntaram, 'Por que ele arriscou sua carreira, sua fortuna familiar, e as vidas de sua família para emitir vistos a refugiados judeus na Lituânia?". Estas não são questões fáceis de responder, e pode não haver um único conjunto de respostas que satisfarão nossa curiosidade e indagação.
Chiune (Sempo) Sugihara sempre fez as coisas à sua própria maneira. Ele nasceu em 1º de janeiro de 1900. Graduou-se no colégio com notas altas e seu pai insistiu que ele se tornasse médico. Mas o sonho de Chiune era estudar literatura e viver no exterior. Sugihara freqüentou a prestigiosa Universidade Waseda de Tóquio para estudar inglês. Ele pagou por sua própria educação com trabalho em meio-período, como estivador e tutor.
Um dia ele viu um anúncio nos classificados. O Ministério do Exterior estava em busca de pessoas que desejassem estudar no exterior e pudessem estar interessadas em carreira diplomática. Ele passou no difícil exame admissional e foi enviado para o intituto de língua japonesa em Harbin, China. Ele estudou russo e graduou-se com honras. Ele também converteu-se ao cristianismo ortodoxo grego. Em Harbin, ele conheceu e se casou com uma mulher caucasiana. Mais tarde eles se divorciaram. A natureza cosmopolitana de Harbin, China, abriu seus olhos para o quão diverso e interessante era o mundo.
Ele então serviu ao governo controlado pelos japoneses na Manchúria, no nordeste da China. Mais tarde ele foi promovido a Vice-Ministro do Departamento de Negócios Estrangeiros. Logo ele estava prestes a ser o Ministro de Negócios Estrangeiros na Manchúria.
Na Manchúria, ele negociou a compra do sistema ferroviário manchuriano, de propriedade russa, pelos japoneses. Isto poupou ao governo japonês milhões de dólares, e enfureceu os russos.
Sugihara ficou perturbado pela política de seu governo e pelo tratamento cruel dos chineses pelo governo japonês. Ele entregou seu cargo em protesto em 1934.
Em 1938, Sugihara foi enviado para o escritório diplomático japonês em Helsinque, Finlância. Com a Segunda Guerra Mundial ameaçando no horizonte, o governo japonês enviou Sugihara para a Lituânia para abrir um consulado em 1939. De lá ele reportaria os planos soviéticos e alemães. Seis meses depois, a guerra estourou e a União Soviética anexou a Lituânia. Os soviéticos ordenaram que todos os consulados fossem fechados. Foi neste contexto que Sugihara foi confrontado com pedidos de milhares de judeus poloneses fugindo da polônia ocupada pelos alemães.
SUGIHARA, O HOMEM
A história pessoal e o temperamento de Sugihara podem conter a chave de por que ele ter desafiado as ordens de seu governo e emitido os vistos. Sugihara puxou à personalidade da mãe. Ele se fez gentil, protetor e artista. Ele estava interessado em idéias do exterior, religião, filosofia e língua. Ele queria viajar o mundo e ver tudo o que havia, e experimentar o mundo. Tinha um forte senso de valor por toda a vida humana. Seus dotes linguísticos mostram que ele esteve sempre interessado em aprender mais sobre outros povos.
Sugihara foi um homem humilde e compreensivo. Ele era abnegado, retraídoe tinha um senso de humor muito bom. Yukiko, sua mulher, disse que ele achou muito difícil disciplinar as crianças quando elas não se comportavam. Ele nunca perdeu seu temperamento.
Sugihara também cresceu no rígido código de ética japonês de uma família samurai da virada do século. As virtudes mais importante de sua sociedades eram 'oya koko' (amor à família), 'kodomo na tamane' (pelo bem das crianças), ter 'gidi' e 'on' (dever e responsabilidade, ou obrigação de honrar uma dívida), 'gaman'(retenção das emoções), gambate (força interior e desenvoltura), e 'haji no kakate' (não trazer vergonha à família). Estas virtudes foram fortemente inculcadas pela família samurai de classes média rural de Chiune.
Foi preciso enorme coragem para Sugihara desafiar a ordem de seu pai para se tornar um médico, e em vez disso, seguir seu próprio caminho acadêmico. Foi preciso coragem para deixar o Japão e estudar no exterior. Foi preciso um homem japonês muito liberal para se casar com uma mulher caucasiana e se converter ao cristianismo. Foi preciso ainda mais coragem para se opor abertamente às políticas de expansão militar japonesas nos anos 30.
Assim, Sempo Sugihara não era um homem japonês comum e pode não ter sido um homem comum. No tempo em que ele e sua mulher Yukiko pensavam na má situação dos refugiados judeus, ele era assombrado pelas palavras de uma velha máxima samurai: "Nem mesmo um caçador pode matar um pássaro que voa para buscar refúgio nele".
Quarenta e cinco anos depois de ele assinar os vistos, Chiune foi questionado de por que ele o fez. Ele gostava de dar dois motivos:
"Eles eram seres humanos e eles precisavam de ajuda" ele dizia.
"Estou contente de ter encontrado força para tomar a decisão de os dar a eles."
Sugihara era um homem religioso e acreditava num deus universal de todas as pessoas. Ele gostava de dizer, "Eu posso ter que desobedecer meu governo, mas se eu não fizer, eu estaria desobedecendo a Deus."
A ESCOLHA DE SUGIHARA
O tempo começou a se esgotar para os refugiados à medida que Hitler estreitava a rede ao redor da Europa Oriental. Os refugiados descobriram uma idéia que eles apresentaram para Sugihara. Eles descobriram que as duas ilhas coloniais holandesas, Curaçao e Suriname, situadas no Caribe, não exigiam vistos formais de entrada, e o consul holandês informou-os que ele estaria disposto a carimbar seus passaportes com um visto holandês para aquele destino. Além disso, o cônsul holandês havia recebido permissão de seu superior em Riga para emitir tais vistos e eles estava disposto a emitir esses vistos a qualquer um que estivesse disposto a pagar uma taxa.
Para se chegar a essas duas ilhas, precisava-se passar através da União Soviética. O cônsul soviético, que era simpático à má situação dos refugiados, concordou em deixá-los passar sob uma condição: que além do visto holandês, eles também obtivessem um visto de trânsito dos japoneses, pois eles teriam que passar pelo Japão em seu caminho para Curaçao ou Suriname.
Sugihara tinha uma decisão difícil a tomar. Ele era um homem crescido na disciplina rígida e tradicional dos japoneses. Ele era um diplomata de carreira, que subitamente tinha que fazer uma escolha muito difícil. Por um lado, ele estava ligado à obediência tradicional que lhe foi ensinada por toda a sua vida. Por outro, ele era um samurai que recebera ordens para ajudar àqueles em necessidade. Ele sabia que se desafiasse as ordens de seus superiores, ele seria demitido e desonrado, e provavelmente não trabalharia novamente para o governo japonês. Isto resultaria numa enorme dificuldade financeira para sua família no futuro.
Chiune e sua esposa Yukiko Sugihara até mesmo temeram por suas vidas ao tomarem esta decisão. Eles concordaram que eles não tinham chance neste caso. O Sr. Sugihara disse, "Eu posso ter que desobedecer meu governo, mas se eu não fizer, eu estaria desobedecendo a Deus." A Sra. Sugihara lembrou que "os olhos dos refugi dos estavam tão intensos e desesperados - especialmente das mulheres e crianças. Elas eram centenas de pessoas em pé do lado de fora." Cinquenta anos depois da decisão deles, a Srª Sugihara disse: "a vida humana é muito importante, e ser virtuoso na vida também é importante." Esta foi a decisão que no final das contas salvaria o segundo maior número de judeus na Segunda Guerra Mundial. Eles escolheram ajudar os milhares que se aglomeravam em seu consulado em Kaunas.
A escolha encarada pelos Sugiharas foi um dilema moral que milhares de cônsules de todo o mundo enfrentavam todos os dias. Poucos perdiam o sono por fechar as portas na cara dos judeus. Esses cônsules seguiam as regras à risca e, em muitos casos, eram mais rígidos em emitir vistos do que seus governos exigiam. Incontáveis milhares poderiam ter sido salvos se outros cônsules tivessem agido mais como Sugihara. Se eles tivessem sido 2.000 cõnsules como Chiune Sugihara, um milhão de crianças judias poderiam ter sido salvas dos fornos de Auschwitz.
VISTOS PARA A VIDA
Por 29 dias, de 31 de julho a 28 de agosto de 1940, o Sr. e a Srª Sugihara incansavelmente sentaram-se por horas sem fim, assinando vistos com suas próprias mãos. Hora após hora, dia após dia, durante três semanas, eles escreveram vistos. Eles escreveram mais de 300 vistos por dia, o que normalmente seria mais de um mês de trabalho para o cônsul. Yukiko também o ajudou a registrar esses vistos. No fim do dia, ela massagearia as mãos fatigadas dele.
Ele nem mesmo parava para comer. Sua esposa lhe dava sanduíches. Sugihara escolheu não perder um minuto porque as pessoas estavam em fila em frente ao seu consulado, dia e noite, por estes vistos. Quando alguns começaram a subir a cerca para entrar no recinto, eles saíram e os acalmaram. Ele lhes prometeu que enquanto houvesse uma só pessoa de fora, ele não os abandonaria.
Depois de receber seus visas, os refugiados não perderam tempo em pegar o trem que os levou até Moscou, e pela ferrovia Trans-Siberiana para Vladivostok. De lá, a maioria deles seguiu para Kobe, Japão. Eles receberam permissão para ficar em Kobe por vários meses. Eles foram então enviados para Xangai, China. Todos os judeus poloneses que receberam vistos sobreviveram em segurança, sob a proteção do governo japonês em Xangai. Eles sobreviveram, graças à humanidade e coragem de Chiune e Yukiko Sugihara. Os vistos que eles emitiram tornaram-se passaportes para o mundo dos vivos. Quando Sugihara teve que deixar Kaunas para seu próximo posto em Berlim, ele entregou o carimbo de visto para um refugiado e a vida foi concedida a muitos outros judeus.
Em 1945, o governo japonês demitiu Chiune Sugihara sem cerimônia do serviço diplomático. Sua carreira como diplomata estava em pedaços. Ele tinha que começar sua vida de novo. Sugihara ficou sem emprego fixo por mais de um ano. Outrora uma estrela ascendente no serviço de exterior japonês, Chiune Sugihara trabalhou por meio período como tradutor e intérprete. Pelas últimas duas décadas de sua vida, ele trabalhou como gerente de uma companhia de exportações com negócios em Moscou. Este foi seu destino porque ele se atreveu a salvar milhares de seres humanos da morte certa.
Hoje, 50 anos após o evento, pode haver 40.000 pessoas ou mais que devem suas vidas a Chiune e Yukiko Sugihara. Duas gerações vieram depois dos sobreviventes de Sugihara, e eles devem suas vidas aos Sugiharas. Todos os sobreviventes o chamam de seu salvador, alguns o consideram um homem sagrado, e alguns acham que ele foi um santo. Yukiko Sugihara recordou que todas as vezes que ela e seu marido se encontraram ou ouviam falar das pessoas que eles salvaram, eles sentiam grande satisfação e felicidade. Eles não se arrependeram.
Depois da guerra, o Sr. Sugihara nunca mencionou ou falou a ninguém sobre seus feitos extraordinários. Foi só em 1969 que Sugihara foi encontrado por um homem que ele havia ajudado a salvar. Logo, muitos outros a quem ele tinha salvo apareceram e testemunharam ao Yad Vashem (Memorial do Holocausto) em Israel, sobre seus feitos salva-vidas. Os sobreviventes de Sugihara entregaram centenas de testemunhos em favor de seu salvador. Depois de coletar os depoimentos de todo o mundo, o comitê do Yad Vashem percebeu a enormidade da abnegação deste homem para salvar judeus. Antes de sua morte, ele recebeu a maior honraria de Israel. Em 1985, ele foi reconhecido como "Justo Entre as Nações" pela Yad Vashem Martyrs Remembrance Authority em Jerusalem. Ele também estava muito doente para viajar; sua esposa e filho receberam o título em seu nome. Depois, uma árvore foi plantada em seu nome, e um parque em Jerusalém foi batizado em sua homenagem.
Ele disse que estava muito feliz com as honras. "Eu acho que minha decisão foi humanamente correta."
Tradução: Marcelo Oliveira
Fonte: The Sugihara Project
http://www.eagleman.com/sugihara/story.html
http://www.eagleman.com/sugihara/
Publicado em: http://br.groups.yahoo.com/group/Holocausto-Doc/message/6085
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terça-feira, 18 de dezembro de 2007
terça-feira, 27 de novembro de 2007
Recordações de infância de uma exilada em Xangai
Recordações de infância de uma exilada em Xangai
Seleção e tradução do alemão de
Ana María Cartolano.
Entre as crianças que depois do longo exílio em Xangai regressaram a Alemanha em 1947, a bordo do Marine Lynx, estava Sonja Mühlberger. Havia vindo ao mundo em 26 de outubro de 1939 em Xangai, onde seus pais haviam fugido em fins de março desse mesmo ano. Seu pai havia sido liberado do campo de concentração de Dachau com a condição de abandonar a Alemanha imediatamente. Em abril de 1997, Sonja escreveu pela primeira vez sobre algumas de suas experiências de infância em Xangai:
"Em princípio vivíamos da comida do asilo, nem muito boa nem muito substanciosa. Mas ao menos uma vez ao dia havia algo para comer, graças ao auxílio de organizações de ajuda judaico-norte-americanas e de algumas famílias influentes. Por exemplo para mim, que era muito pequena, me colocaram num jardim de infância, construído pela família Sassoon(1) para filhos de emigrados, porque minha mãe havia conseguido trabalho como ajudante de modista. Seu salário era a comida diária. Para mim, que era uma criança, tudo isto não pesava tanto como para meus pais. Como eu me alimentava mal não sentia a fome que com frequência eles deviam sofrer. Mais tarde meu pai, como alguns outros emigrados, começaram a trabalhar como vendedor de ovos no negócio de um chinês, e ao mesmo tempo aprendeu a falar chinês(o dialeto de Xangai). Num escuro quarto traseiro sem janelas, meu pai se sentava numa banqueta, com uns canastros (cestos) grandes de ambos lados; tomava um dos canastros quatro ovos ao mesmo tempo entre seus dedos, apontava-os para refletir frente a uma lâmpada e os punha noutro canastro grande, ou os descartava num menor; eu me sentava a seu lado e o observava. Algumas vezes me sentava sobre o porta-bagagem(bagageiro)da bicicleta, as suas costas, quando ia ao campo comprar ovos ou uns poucos frangos.
Também usava essa bicicleta para repartir os ovos, e frequentemente, para abastecer seus clientes, tinha de subir muitas escadarias com canastros pesados. E com essa mesma bicicleta me levava ao jardim de infância, mais tarde até a escola, e ía me buscar na saída.
(...) Durante dois anos freqüentei a escola Kadoorie, era um curso exclusivamente de garotas no qual também havia três garotas chinesas. A língua que se falava em classe era o inglês. Tínhamos que falar em inglês também nos recreios, mas quando estávamos suficientemente longe das professoras, falávamos em alemão entre nós.
Muitas vezes minha mãe lía para mim contos de fadas alemães de um livro que não sei de onde tirou. Quando uma vez perguntei o que era um bosque ela me disse que eu devia imaginar uma árvore, e depois outra, e assim sucessivamente, e que isso era um bosque. Só depois da abertura do gueto pudemos visitar o Parque Jessfield onde havia mais árvores, e eram maiores, que no pequeno Waysidepark(parque) situado nas proximidades do edifício onde vivíamos.
A princípio tive poucos brinquedos, e a falta deles desenhava roupas para bonecas de papel. Uma vez havíamos ido ver um médico, e na sala de espera pude folhear algumas revistas de moda que me interessaram, assim que eu mesmo comecei a fazer esboços de vestidos para minhas bonecas de papel. A única boneca verdadeira que tive me presentearam aos seis anos; coloquei-a sentada no parapeito de uma das janelas da planta baixa para que pudesse vermos vernos jogar, mas apenas dei uma volta, desapareceu para sempre. Roubaram-na as crianças chinesas que eram todavia mais pobres que nós.
(...) Vivíamos num lugar onde havia uma encruzilhada. à esquerda da casa havia um terreno cheio de escombros, à direita uma casa onde também viviam emigrados; em frente a nossa casa, na esquina, diante do muro da fábrica de cigarros, pela manhã costumavam aparecer várias embalagens colocadas em fila, uma junto a outro.
Quando me levantava e me debruçava à sacada, com frequência ouvia um choramingo. Um dia minha mãe me disse que nos vultos haviam bebês, em sua maioria garotas, que eram abandonados ali durante a noite.
Muitas vezes roguei a mais pais que recolhessem uma daquelas crianças, porque não havia coisa que desejara mais que uma irmã; mas eles não quiseram satisfazer meu desejo: me explicaram que não se sabia se aquelas crianças estavam enfermas e que, ademais, nós não podíamos alimentar a uma criança. Por azar eu sempre podia observar como chegava um garoto num carro que carregavam os corpos sem nenhuma forma de consideração e íam embora com eles. Também podia observar outras coisas desde a sacada. Por exemplo, do outro lado da encruzilhada havia um lugar onde se reuniam os Culis dos "rickshaws" e compravam água quente que, segundo se sabia, passava melhor a sede. Meu pai nunca quis viajar num "rickshaw", achava humilhante ser levado por um homem, se bem que algumas vezes tomava um “pedicab” (um chinês que conduzia uma bicicleta) ou viajava em ônibus.
(...) Teve uma experiência muito ruim antes de nossa partida partida à Alemanha. Meus pais sempre trataram de conservar vivo em mim o amor à Alemanha, sua pátria. E se o fascismo fosse derrotado queriam voltar à Alemanha. Naturalmente eu contei isto a todos os que quiseram me escutar, mas a maioria dos emigrados tinham muitos argumentos contra o regresso a um país onde sua dignidade humana havia sido pisoteada e onde haviam sido assassinados seus parentes e amigos. Estavam muito amargos e pensavam que, apesar de tudo, ali seguiram e estavam as mesmas pessoas, e nisso tinham razão. Mas não pude me esquecer de que sendo uma garota os emigrados alemães me insultaram por essa razão, e até chegaram a cuspir-me; ainda que realmente o que eu menos sabia era que meus pais haviam decidido voltar à Alemanha e não aceitar o oferecimento de emigrar à América.
Integramos o grupo dos que voltaram com o primeiro transporte que levou de regresso a sua pátria a alemães e austríacos. Nosso barco, o transporte de tropas norte-americano Marine Lynx, zarpou de Xangai em 25 de julho de 1947 e chegou a Nápoles em 16 de agosto. Desde ali, os 295 alemães entre os quais meu irmão Peter, com seus dois anos, era o mais jovem, necessitaram ainda de uma semana num trem de carga, até que em 21 de agosto de 1947 entraram na Görlitzer Bahnhof de Berlim. Os homens haviam estendido cordas ante as portas dos vagões, para que nós, as crianças, não pudéssemos cair. Quando o trem parava, nosso amigo Alfred Zacharias, corria a zelar por nossas necessidades, e assim foi que pudemos conseguir até um pouco de palha para dormir no nosso vagão. De vez em quando minha mãe abria alguma lata das que nos tinham proporcionado na UNRRA, e amornava seu conteúdo num esquentadorzinho. Nessa época, a maioria das pessoas se alimentavam com bolachas secas.
Um par de dias depois de nossa chegada, seguindo o desejo de meus pais, viví a experiência de um primeiro dia de classe na escola alemã; apesar de ter frequentado durante dois anos a escola de Xangai, fui inscrita no primeiro grau da escola primária. Durante um tempo, para festejo de meus companheiros, respondi em inglês aos mestres que me interrogavam. Mais tarde também pude fazê-lo em alemão."
Extraído de Leben im Wartesaal. "Exil in Shanghai"(Exílio em Xangai). 1938-1947.
Jüdische Museum im Stadtmuseum Berlin. Berlin: 1997.
Notas
1. A família dos Sassoon era uma família judia de tradição sefardita, estabelecida em Xangai desde o século XIX, que se encontrava entre as dos mais ricos comerciantes da Ásia. Junto aos Sassoon, Kadoorie, Hardoon, que todavia hoje têm importância na Ásia, as famílias Ezra, Shamoon, Baroukh, Toeg, Abraham, Haim e Hillali representavam as personalidades mais cultas da sociedade internacional de Xangai.
Na foto recente(logo acima), Sonja é a primeira da direita para esquerda.
Ver mais fotos no site: http://www.rickshaw.org/childhood.htm
Fonte: Fundación Memoria del Holocausto (Argentina)
http://fmh.org.ar/revista/17/recuer.htm
Texto em espanhol: Ana María Cartolano
Tradução: Roberto Lucena
Seleção e tradução do alemão de
Ana María Cartolano.
Entre as crianças que depois do longo exílio em Xangai regressaram a Alemanha em 1947, a bordo do Marine Lynx, estava Sonja Mühlberger. Havia vindo ao mundo em 26 de outubro de 1939 em Xangai, onde seus pais haviam fugido em fins de março desse mesmo ano. Seu pai havia sido liberado do campo de concentração de Dachau com a condição de abandonar a Alemanha imediatamente. Em abril de 1997, Sonja escreveu pela primeira vez sobre algumas de suas experiências de infância em Xangai:
"Em princípio vivíamos da comida do asilo, nem muito boa nem muito substanciosa. Mas ao menos uma vez ao dia havia algo para comer, graças ao auxílio de organizações de ajuda judaico-norte-americanas e de algumas famílias influentes. Por exemplo para mim, que era muito pequena, me colocaram num jardim de infância, construído pela família Sassoon(1) para filhos de emigrados, porque minha mãe havia conseguido trabalho como ajudante de modista. Seu salário era a comida diária. Para mim, que era uma criança, tudo isto não pesava tanto como para meus pais. Como eu me alimentava mal não sentia a fome que com frequência eles deviam sofrer. Mais tarde meu pai, como alguns outros emigrados, começaram a trabalhar como vendedor de ovos no negócio de um chinês, e ao mesmo tempo aprendeu a falar chinês(o dialeto de Xangai). Num escuro quarto traseiro sem janelas, meu pai se sentava numa banqueta, com uns canastros (cestos) grandes de ambos lados; tomava um dos canastros quatro ovos ao mesmo tempo entre seus dedos, apontava-os para refletir frente a uma lâmpada e os punha noutro canastro grande, ou os descartava num menor; eu me sentava a seu lado e o observava. Algumas vezes me sentava sobre o porta-bagagem(bagageiro)da bicicleta, as suas costas, quando ia ao campo comprar ovos ou uns poucos frangos.
Também usava essa bicicleta para repartir os ovos, e frequentemente, para abastecer seus clientes, tinha de subir muitas escadarias com canastros pesados. E com essa mesma bicicleta me levava ao jardim de infância, mais tarde até a escola, e ía me buscar na saída.
(...) Durante dois anos freqüentei a escola Kadoorie, era um curso exclusivamente de garotas no qual também havia três garotas chinesas. A língua que se falava em classe era o inglês. Tínhamos que falar em inglês também nos recreios, mas quando estávamos suficientemente longe das professoras, falávamos em alemão entre nós.
Muitas vezes minha mãe lía para mim contos de fadas alemães de um livro que não sei de onde tirou. Quando uma vez perguntei o que era um bosque ela me disse que eu devia imaginar uma árvore, e depois outra, e assim sucessivamente, e que isso era um bosque. Só depois da abertura do gueto pudemos visitar o Parque Jessfield onde havia mais árvores, e eram maiores, que no pequeno Waysidepark(parque) situado nas proximidades do edifício onde vivíamos.
A princípio tive poucos brinquedos, e a falta deles desenhava roupas para bonecas de papel. Uma vez havíamos ido ver um médico, e na sala de espera pude folhear algumas revistas de moda que me interessaram, assim que eu mesmo comecei a fazer esboços de vestidos para minhas bonecas de papel. A única boneca verdadeira que tive me presentearam aos seis anos; coloquei-a sentada no parapeito de uma das janelas da planta baixa para que pudesse vermos vernos jogar, mas apenas dei uma volta, desapareceu para sempre. Roubaram-na as crianças chinesas que eram todavia mais pobres que nós.
(...) Vivíamos num lugar onde havia uma encruzilhada. à esquerda da casa havia um terreno cheio de escombros, à direita uma casa onde também viviam emigrados; em frente a nossa casa, na esquina, diante do muro da fábrica de cigarros, pela manhã costumavam aparecer várias embalagens colocadas em fila, uma junto a outro.
Quando me levantava e me debruçava à sacada, com frequência ouvia um choramingo. Um dia minha mãe me disse que nos vultos haviam bebês, em sua maioria garotas, que eram abandonados ali durante a noite.
Muitas vezes roguei a mais pais que recolhessem uma daquelas crianças, porque não havia coisa que desejara mais que uma irmã; mas eles não quiseram satisfazer meu desejo: me explicaram que não se sabia se aquelas crianças estavam enfermas e que, ademais, nós não podíamos alimentar a uma criança. Por azar eu sempre podia observar como chegava um garoto num carro que carregavam os corpos sem nenhuma forma de consideração e íam embora com eles. Também podia observar outras coisas desde a sacada. Por exemplo, do outro lado da encruzilhada havia um lugar onde se reuniam os Culis dos "rickshaws" e compravam água quente que, segundo se sabia, passava melhor a sede. Meu pai nunca quis viajar num "rickshaw", achava humilhante ser levado por um homem, se bem que algumas vezes tomava um “pedicab” (um chinês que conduzia uma bicicleta) ou viajava em ônibus.
(...) Teve uma experiência muito ruim antes de nossa partida partida à Alemanha. Meus pais sempre trataram de conservar vivo em mim o amor à Alemanha, sua pátria. E se o fascismo fosse derrotado queriam voltar à Alemanha. Naturalmente eu contei isto a todos os que quiseram me escutar, mas a maioria dos emigrados tinham muitos argumentos contra o regresso a um país onde sua dignidade humana havia sido pisoteada e onde haviam sido assassinados seus parentes e amigos. Estavam muito amargos e pensavam que, apesar de tudo, ali seguiram e estavam as mesmas pessoas, e nisso tinham razão. Mas não pude me esquecer de que sendo uma garota os emigrados alemães me insultaram por essa razão, e até chegaram a cuspir-me; ainda que realmente o que eu menos sabia era que meus pais haviam decidido voltar à Alemanha e não aceitar o oferecimento de emigrar à América.
Integramos o grupo dos que voltaram com o primeiro transporte que levou de regresso a sua pátria a alemães e austríacos. Nosso barco, o transporte de tropas norte-americano Marine Lynx, zarpou de Xangai em 25 de julho de 1947 e chegou a Nápoles em 16 de agosto. Desde ali, os 295 alemães entre os quais meu irmão Peter, com seus dois anos, era o mais jovem, necessitaram ainda de uma semana num trem de carga, até que em 21 de agosto de 1947 entraram na Görlitzer Bahnhof de Berlim. Os homens haviam estendido cordas ante as portas dos vagões, para que nós, as crianças, não pudéssemos cair. Quando o trem parava, nosso amigo Alfred Zacharias, corria a zelar por nossas necessidades, e assim foi que pudemos conseguir até um pouco de palha para dormir no nosso vagão. De vez em quando minha mãe abria alguma lata das que nos tinham proporcionado na UNRRA, e amornava seu conteúdo num esquentadorzinho. Nessa época, a maioria das pessoas se alimentavam com bolachas secas.
Um par de dias depois de nossa chegada, seguindo o desejo de meus pais, viví a experiência de um primeiro dia de classe na escola alemã; apesar de ter frequentado durante dois anos a escola de Xangai, fui inscrita no primeiro grau da escola primária. Durante um tempo, para festejo de meus companheiros, respondi em inglês aos mestres que me interrogavam. Mais tarde também pude fazê-lo em alemão."
Extraído de Leben im Wartesaal. "Exil in Shanghai"(Exílio em Xangai). 1938-1947.
Jüdische Museum im Stadtmuseum Berlin. Berlin: 1997.
Notas
1. A família dos Sassoon era uma família judia de tradição sefardita, estabelecida em Xangai desde o século XIX, que se encontrava entre as dos mais ricos comerciantes da Ásia. Junto aos Sassoon, Kadoorie, Hardoon, que todavia hoje têm importância na Ásia, as famílias Ezra, Shamoon, Baroukh, Toeg, Abraham, Haim e Hillali representavam as personalidades mais cultas da sociedade internacional de Xangai.
Na foto recente(logo acima), Sonja é a primeira da direita para esquerda.
Ver mais fotos no site: http://www.rickshaw.org/childhood.htm
Fonte: Fundación Memoria del Holocausto (Argentina)
http://fmh.org.ar/revista/17/recuer.htm
Texto em espanhol: Ana María Cartolano
Tradução: Roberto Lucena
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