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domingo, 13 de dezembro de 2015

A lista (falsa) de sobrenomes de cristãos-novos de novo, agora na BBC, e a nova lei de Portugal sobre o assunto

A BBC recentemente publicou matéria sobre uma nova lei portuguesa que dá cidadania a brasileiros descendentes de judeus, segue a matéria abaixo:
Saiba como lei portuguesa pode dar cidadania a brasileiros descendentes de judeus

Esta lei copia (ou segue) uma lei semelhante na Espanha, com o mesmo propósito:
A oferta de nacionalidade aos sefarditas satura os consulados espanhóis em Israel

Eu já comentei sobre isso aqui (post "O primo do antissemitismo (filossemitismo) e a mixórdia sobre cristãos-novos e a "concessão" de nacionalidade espanhola" e o jornal El País (Espanha) já comentou sobre a lista falsa com sobrenomes que teriam "direito", listas disseminadas a esmo por grupos evangélicos (alguns se passando por judeus, ou que 'creem' que são):
Seu sobrenome também está na lista (falsa) para obter o passaporte espanhol?

A matéria da BBC Brasil do início do post reproduz a baboseira da lista falsa (ou uma delas). Mas não só ela, basta clicar aqui pra ver outra.

A quem se questionar porque estou fazendo este post, é porque muita gente aparecia em comunidades sobre "revisionismo" vindo encher o saco com esse assunto, com uma obsessão doentia (pleonasmo) com essa questão, na crença de que se se "tornarem" judeus seriam mais "abençoados", "ficarão ricos" etc. Ou seja, o pessoal 'bem-intencionado' repete os estereótipos dos ditos "revis" sobre judeus (sobre riqueza, poder etc).

Geralmente é gente de religião evangélica, ou de algumas denominações no Brasil que criam uma verdadeira mixórdia religiosa misturando idolatria a judeus, judaísmo etc com cristianismo. A quem quiser ler mais, só no verbete em inglês, o verbete em português é entupido de proselitismo religioso.

Essa postura vem importada dos EUA, e essas pessoas ficam circulando em torno desses assuntos apenas por crendice, fanatismo religioso ou mesmo por posturas não muito louváveis (como já citado acima: acham que irão ficar "ricos" ou melhorar status social "virando" judeu). Daí começam a fantasiar sobre "origem judaica" num passado remoto (faz um "pouquinho" de tempo 'meio milênio').

A Record também embarcou na pilha e fez um programa horrível sobre isso.

Sobre o post de um dos links acima (o do filossemitismo), ele foi feito na época que a Espanha fez o mesmo tipo de lei: a de dar cidadania espanhola a quem for descendente de "judeus expulsos" da Espanha na época da Inquisição. Cidadania que torna a pessoa cidadão da União Europeia também.

Seria assunto pra outra post, mas tem a ver com o que se passa. É visível que no Brasil parte da população passa por um problema de crise identitária e fica procurando 'identidades' outras pra se auto-afirmarem ou fazer parte de algum "grupo". Alguma "ascendência nobre" etc. Em vez de se enxergarem como brasileiros ou se proclamarem brasileiros, ficam procurando identidades que julgam ter "mais status" por algum menosprezo ou ódio ao país. Esse tipo de surto não é bom pois descamba pra algum ufanismo qualquer (o extremo oposto do complexo de vira-latas) como aqueles que aconteceram esse ano, com gente urrando com a camisa da CBF (da seleção da CBF) querendo mostrar que são "mais brasileiros" que outros só por ostentarem uma camisa amarela (como se isso tornasse alguém brasileiro ou mais brasileiro que outros), quando parte desse povo sente um menosprezo profundo pelo país.

Mas indo ao ponto.

Primeiramente, um sobrenome genérico numa lista não é prova que alguém seja descendente de algum judeu/judia convertido ao cristianismo (catolicismo) na época das inquisições.

A maioria dos sobrenomes (senão todos) dessas listas eram sobrenomes também de cristãos-velhos (se há o "novo" é porque havia o "velho", dã! rs), que eram os cristãos não convertidos ou cristãos não-judeus.

Pena que perdi os links (do Orkut) que tinham alguns ensaios sobre esse tema, mas também houve muçulmanos convertidos à força ao cristianismo na Península Ibérica e havia os moçárabes. Nunca ouviu falar deles? Clique aqui e aqui. Resumidamente (pois sei que tem gente que não vai clicar nos links), moçárabes eram cidadãos ibéricos, cristãos, que adotavam a cultura da potência invasora/dominante (então árabe e muçulmana), língua etc.

Ou seja: e se você for descendente, não de judeus, mas de algum moçárabe ou muçulmano árabe convertido ao cristianismo na época da Inquisição que veio ao Brasil e Américas? Vai pular do penhasco por isso? rs.

Por que fiz esta pergunta irônica (a do "pular do penhasco" com raiva? Se você tem visto os comentários de ódio irracional, movido por ignorância extrema, desses grupos contra muçulmanos entenderá o porquê da ironia com a pergunta. Veja que no Brasil nem tocam no assunto.

Só pra dar uma ideia da extensão genética da coisa, já que não achei a matéria que saiu sobre isso há algum tempo. Segue esta matéria em espanhol sobre o DNA na Espanha, Portugal segue um padrão semelhante:
Uno de cada tres españoles tiene marcadores genéticos de Oriente Medio o el Magreb (El Mundo, Espanha)

É a parte anedótica dessa "busca" (entre aspas) por antepassados judeus no Brasil. A pessoa pode descobrir que é descendente de algum moçárabe ou muçulmano convertido ao cristianismo à força. Curioso que as matérias não tocam no assunto.

Em resumo: essas listas com sobrenomes não servem pra coisa alguma.

Causa constrangimento e vergonha alheia ver a publicação dessas listas.

Pra você provar que tem algum antepassado judeu/judia convertido de forma remota (pois faz tempo...), vai ter que fazer uma "escavação arqueológica", provar genealogicamente a coisa, até porque não irão dar cidadania por "brinde", a menos que seja um grupo minoritário que conseguiu preservar desde essa época o culto judaico etc. Além de outros problemas com o tema: houve gente que se converteu porque quis também. Não era "status" ser judeu na colonização das Américas, essa coisa de "ser judeu pra ter status" é algo recente, novo, pós-segunda guerra. Até a segunda guerra muita gente mascarava isso com medo de perseguição e preconceito/racismo.

Só lembrando: a maioria absoluta dos convertidos se assimilaram à Espanha, Portugal ou outros países em que se fixaram. Sentiam-se parte dessas sociedades, mas não como "judeus".

Não avaliem o passado com anacronismo (repassando pruma época remota valores de hoje). Não havia internet na época, rastros se apagam com certa facilidade, principalmente num "mundo" onde tudo era precário.

Muita gente na época não queria ser "judeu", a não ser por questão de fé, porque a perseguição cedo ou tarde seria inevitável. A menos que alguém seja masoquista (tirando o que permanecia judeu por convicção religiosa), não era uma boa religião (do ponto de vista de se manter vivo) pra alguém se converter ou permanecer nela.

Muitas famílias adotaram sobrenomes de cristãos-velhos e se assimilaram totalmente a esses países (Portugal e Espanha), não sendo tão fácil rastrear a mudança. Não estamos falando de algo com 50 anos e sim de meio milênio. A maioria se sentia ou português ou espanhol, ou descendentes dos mesmos, professando o cristianismo (tornavam-se católicos).

Querer escavar essas coisas (tirando o pessoal de História, arqueologia etc, o pessoal das ciências, que tem que escavar mesmo) por fanatismo religioso e oportunismo, em minha opinião, não passa de escrotice da grossa, além de uma cretinice sem tamanho.

No vídeo da Record mostra uma pessoa seguindo (imitando) ritual judaico provavelmente por ser evangélico e com base nessa ideia de que sobrenome tal torna essas pessoas judias. É um crime (mentira) o que estão fazendo com essas pessoas, fora a ignorância histórica profunda.

Em suma, eu fico com vergonha do conteúdo dos programas com conteúdo "histórico" que passam no país. Ainda mais a BBC reproduzindo essa papagaiada sem avaliar a informação que repassa. A BBC tem um histórico problemático de conteúdo, tem bons documentários mas a cobertura jornalística é enviesada, tanto como a Globo (essa nem enviesada é mais, é partidarizada mesmo). Saem copiando listas de sites evangélicos ou de "judeus messiânicos" (evangélicos que 'pensam' que são judeus, pra proselitismo religioso) na web que dizem ser de "marranos" e colocam essas coisas sem critério algum, além de atiçarem a neurose de grupos antissemitas que veem judeus na sombra, na esquina, em qualquer canto.

Por isso que disse num dos posts (não só eu) que o 'filossemitismo' anda junto do antissemitismo, são unha e carne.

Chega a ser ridículo que Espanha e Portugal apresentem uma lei dessas (de "reparação", entre aspas) 500 anos depois que mataram gente por fanatismo religioso e racismo. Era melhor só ter admitido que cometeram os crimes e pedir desculpas pelo ocorrido (e põe pedido tardio nisso) e assunto encerrado. Esses países não estão reparando coisa alguma, só sendo hipócritas.

E um adendo, porque a internet infelizmente está infestada de gente fanática: eu não tenho interesse em discutir religião/religiões com A, B ou C, tampouco sou religioso. A quem quiser pregar a "verdade" (religiosa) pra mim, está dando viagem perdida. Digo isso porque no Orkut aparecia muita gente confusa (eu diria que até "perturbada") enchendo o saco com esse tipo de assunto/neurose quando esse pessoal deveria procurar ajuda especializada pra tratar disso, já que nem interpretar um texto direito conseguem ou querem. Estou sendo duro no comentário porque chega uma hora que a coisa extrapola e irrita de verdade, a gente vai "relevando" por educação, mas uma hora estoura.

O texto acima não trata de "crença" e sim de História, trata sobretudo da proliferação do preconceito no país, que se dá também através desse fanatismo religioso sectário e disseminação de mentiras como as citadas acima (listas falsas etc).

No Brasil a mídia (generalizando) serve mais pra dinamitar o país do que ajudar no progresso do mesmo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Franco e o extermínio - Parte 2 (Holocausto)

Outra das imagens do encontro de Hitler e Franco
em Hendaya três meses depois do começo
da Segunda Guerra Mundial
Talvez outra das perguntas que sugerem estes acontecimentos é a de quanto tempo Franco se mostrou tão insensível e tão antissemita? Os documentos avindos só dão uma resposta parcial a esta questão. Há dezenas de papeis que tratam deste assunto e até o analisam, e alguns deles desliza alguma explicação para esta interrogação. Por exemplo, o telegrama cifrado de 22 de fevereiro de 1943 escrito pelo embaixador Hans von Moltke, que acabava de insistir mais uma vez ante o governo espanhol e informava a Berlim: "... o governo espanhol decidiu não permitir em nenhum caso a volta à Espanha dos espanhóis de raça judia que vivem em territórios sob jurisdição alemã" e acrescenta mais adiante que "o governo espanhol abandonará os judeus de nacionalidade espanhola a seu próprio destino". E além de outras considerações escrevia o seguinte: "O diretor geral [refere-se ao diplomata espanhol José María Doussinague] comentou que esses judeus seriam provavelmente mais perigosos na Espanha que em outros países porque os agentes americanos e ingleses os captariam em seguida para utilizá-los como propagandistas contra a aliança do eixo, em especial contra a Alemanha. Além disso, o senhor Doussinague não mostrou muito interesse espanhol no assunto. Rogo por novas ordens. Assinado: Moltke”.

Ninguém pode escapar que neste breve texto se evidencia que a olhos franquistas os judeus eram muito "perigosos", em sintonia com a ideia de Eberhard von Thadden, reproduzida em umas linhas antes, nas quais considerava que um judeu, pelo fato de ser judeu, já era um antialemão. E um detalhe a mais pra sublinhar: nos comentários de Doussinague que foram recolhidos por Moltke se percebe claramente que nas altas esferas da ditadura franquista não se acreditava na declarada neutralidade espanhola durante a Segunda Guerra Mundial, pois o diplomata espanhol não duvidou em situar como inimigo a "americanos e ingleses".

O regime era sintonizado totalmente com Berlim, e apesar dos reiterados ultimatos alemães - obviamente secretos - que advertiram explicitamente ao governo espanhol das medidas extremas de que seria alvo o coletivo judaico, Franco se opôs a salvá-los, mas não esqueceu de reclamar pelas propriedades e o dinheiro dos aniquilados, considerados, portanto, cidadãos espanhóis todavia. Diria-se o o seguinte: "(...) A embaixada espanhola solicita ao Ministério de Relações Exteriores (alemão) que intervenha ante as autoridades correspondentes para lhes explicar que os bens dos judeus espanhóis deixados pra trás ao saírem da França, Bélgica e Países Baixos serão administrados pelos cônsules espanhóis ou representantes da Espanha e que têm que ficar em sua posse por se tratar de bens de súditos espanhóis e portanto sendo um bem nacional da Espanha. Berlim, 25 de fevereiro de 1943”.

Capa do livro, publicado pela Librosdevanguardia
Essa história tem outro lado trágico, mas muito honroso. Enquanto se produziam as deportações e a Espanha negava o pão e sal a milhares de seres humanos, uns horrorizados diplomatas espanhóis atuaram por sua própria conta e contra as ordens vindas de Madri. Falsificaram documentos e conseguiram salvar centenas de pessoas. Todos alertaram a Madri do genocídio em telegramas secretos, e dois deles, Ángel Sanz Briz, de Budapeste (Hungria), e Julio Palencia, da representação da Espanha em Sófia (Bulgária), foram duramente explícitos em suas mensagens. O primeiro, conhecedor do chamado "protocolo de Auschwitz", avisou sobre as matanças em câmaras de gás, e o segundo, testemunha presencial em sua embaixada, escreveu a Madri avisando sobre o desastre humano. Julio Palencia redatou, com o respeito de um funcionário em uma ditadura, várias cartas que enviou a seu ministro e cuja leitura emociona ao mais endurecido"... se por acaso VE (Vossa Excelência) considera digna de ser tomada em consideração minha sugestão... tenha por bem me conceder certa elasticidade para... conceder vistos a israelitas de qualquer nacionalidade ou condição… pois os judeus estão sendo vítimas de uma perseguição cruel e encarniçada que a pessoa mais ponderada e fria ficaria espantada em seu ânimo ao contemplar as injustiças e horrores que essas autoridade vêm cometendo…”, dizia uma carta de Palencia de 14 de setembro de 1942. O ministro não autorizou os vistos que solicitou Palencia, que, desesperado, chegou a adotar dois jovens judeus para salvá-los da morte. Três anos depois, quando a guerra mundial mudou de curso e os aliados pressionaram a Franco, este se apropriou dos atos heroicos desses diplomatas para ganhar a benevolência dos vencedores.

Passaram-se os anos, Franco morreu na cama, e um jovem Juan Carlos manobrou em segredo a favor da democracia ante o atento olhar dos serviços de inteligência europeus e estadounidense. Com suas manobras, muitas em conivência com Adolfo Suárez, consta na documentação avinda que Juan Carlos jogou até o limite do possível para deixar pra trás o passado tão obscuro do que aqui tem sido dada uma pincelada. Era a transição, a mudança.

Os serviços secretos ocidentais tomaram nota de tudo, até de como Adolfo Suárez apontou em quatro papéis que entregou ao Rei no tempo da transição, que cumpriu com todo rigor contra o vento e a maré. O livro o explica. E um pouco depois, já com uma Espanha nova, Dom Juan Carlos seria o primeiro chefe de Estado espanhol que rendia homenagem em Yad Vashem às vítimas do Holocausto se apartando do terrível legado histórico de Franco e de Isabel, a Católica, a rainha espanhola mais admirada pelos nazis, a qual lhe dedicaram vários relatórios que fariam sorrir se se por detrás deles não houvesse uma matança de proporções colossais.

Mas nem tudo foi ocultado no que se refere à Espanha. Os aliados também têm algo a explicar. Uma mensagem secreta de Sir Harold MacMichael, alto comissionado britânico para o protetorado da Palestina, enviada em 15 de junho de 1944 a Sir Anthony Eden, então Ministro de Relações Exteriores do Reino Unido e logo premier, disse outras coisas: "Os nazis têm a esperança de obter alguma graça ante os olhos aliados pelo fato de não matar agora a dois milhões de judeus, pois creem que ajudará a esquecer que já mataram seis milhões de judeus". Lido de outra forma: em plena guerra, como Franco, os aliados sabiam perfeitamente o que estava acontecendo nos campos de extermínio. A pergunta é óbvia: o que fizeram pra evitar?

Fonte: Magazine Digital, do jornal Lavanguardia.com (Espanha)
http://www.magazinedigital.com/reportajes/los_reportajes_de_la_semana/reportaje/cnt_id/8416/pageID/2
Tradução: Roberto Lucena

Franco e o extermínio - Parte 1
O inimigo judeu-maçônico na propaganda franquista (1936-1945)

domingo, 23 de setembro de 2012

Franco e o extermínio - Parte 1 (Holocausto)

Franco e o extermínio. Texto de Eduardo Martín de Pozuelo

As investigações do jornalista Eduardo Martín de Pozuelo nos arquivos dos Estados Unidos, Reino Unido e Holanda desvelaram que Franco deixou morrer a milhares de judeus que teve em sua mão condições de salvá-los. O autor avança nestas páginas a informação que detalha em seu novo livro. O franquismo, cúmplice do Holocausto, publicado pela Librosdevanguardia depois do sucesso de "Los secretos del franquismo" (Os segredos do franquismo).

O encontro de Franco com Hitler
em Hendaya em 23 de outubro de 1940
Durante toda sua vida, Francisco Franco se referiu a um abstrato perigo judeu (maçônico e comunista, também) como o maior inimigo da Espanha construída depois de sua vitória na guerra civil de 1936-1939. Obcecado com esta ideia até o fim de seus dias, o Caudilho se referiu mais de uma vez a judeus em seu último discurso de 1 de outubro de 1975, pouco antes de morrer. Tão insistente foi Franco com seu ofuscamento sobre uma “mancomunação judaico-maçônica” que a tudo destruía, que a frase ficou impressa na mente dos espanhóis como um chavão sem graça da retórica obsessiva do Generalíssimo a qual inclusive muitos franquistas nem prestavam atenção. De fato, parecia que carecia de um significado tangível. Contudo, Franco falava a sério, convencido do que dizia.

Os anos e a tergiversação da história fizeram com que seu antissemitismo se diluísse como um torrão de açúcar na patética frase referida. Contudo, é óbvio que em seus inflamados discursos Franco não deixou de se mostrar antissemita, mas nunca revelou que seu ódio-temor havia tido durante a Segunda Guerra Mundial uma repercussão criminosa somente descoberta graças ao conteúdo de dezenas de documentos secretos desclassificados, encontrados nos arquivos dos Estados Unidos, Reino Unido e Holanda.

Até agora ninguém pensava em Franco quando se falava do Holocausto, como se a Espanha pró-nazi do início dos anos quarenta, claramente desenhada pelos documentos que um dia foram secretos, houvesse assistido de longe como a Alemanha nazi deportava e assassinava milhões de judeus e outras minorias. Mas na realidade, espantosa, como aflora nos documentos citados mostra que Franco pode salvar a dezenas de milhares de sefarditas, mas preferiu deixá-los morrer apesar dos reiterados ultimatos alemães que lhe advertiam das medidas extremas (lê-se extermínio) de que eles seriam objeto se sua Espanha não aceitasse acolhe-los.

O corolário de investigação documental que se recolhe no livro que é adiantado por Magazine tem vários pontos essenciais; o primeiro dos quais é que apenas restam dúvidas de que os nazis alentaram o golpe de Estado de julho de 1936, ao que não deixariam de apoiar até a vitória em 1939. Como consequência do apoio germânico, Franco - que em essência era, a si mesmo, franquista - inclinou dramaticamente os destinos da Espanha pelo lado alemão e não do italiano, pelo que cabe afirmar que a natureza do franquismo se percebe como sendo muito mais nazi que fascista. De fato, até a vitória dos nacionais na Guerra Civil, o III Reich desembarcou com armas e bagagens na Espanha com uma proporção de meios e humanos infinitamente superior a de qualquer outro país dos que se veriam implicados na iminente contenda mundial. Como consequência disso, os alemães influenciaram toda a política e economia espanhola, imprensa incluída, e uma vez iniciada a Segunda Guerra Mundial as relações entre a cúpula do nazismo e Franco e seus ministros foi muito estreita, e a nova Alemanha, cujo império deveria durar mil anos, teve um esquisito trato de favor ante o Generalíssimo. Esta deferência se traduziu na oferta nazi de dar fim dos judeus espanhóis espalhados pela Europa dos que eram previstos serem assassinados industrialmente. Mas Franco não os salvou, sabendo do que ia lhes acontecer, muito bem informado por embaixadores espanhóis, testemunhas de exceção das deportações. Desta forma, a ditadura espanhola se converteu em cúmplice ativa do Holocausto.

As espantosas imagens que foram encontradas
por soldados britânicos no campo de concentração
de Bergen-Belsen em abril de 1945
O oferecimento nazi de enviar a Espanha os spanischer Juden (judeus espanhóis), como designam os nazis aos judeus em todos os seus documentos, não foi produzido em uma ocasião anedótica que passou rapidamente ao esquecimento. Pelo contrário. Tratou-se de um tema de grande importância que gerou centenas de documentos, telegramas, ordens e contraordens procedentes do departamento de assuntos judaicos do Ministério de Relações Exteriores alemão, da embaixada da Alemanha em Madri e do Ministério de Relações Exteriores espanhol. E, tratado como um amigo muito especial, o III Reich brindou a Franco a entrega de milhares de judeus repetidas vezes, por escrito, como comunicação diplomática verbal com reiterada insistência dos embaixadores alemães. Tanto se esmeraram com seu amigo espanhol, que os nazis mantiveram presos mas sem deportar muitos judeus na espera de uma resposta positiva de Franco que nunca chegou. Enquanto isso, os alemães aplicaram por sua própria iniciativa o prazo limite de entrega (março e abril de 1943) para dar tempo a uma resposta de Franco.

Um resumo, parcial sem dúvida, do que aconteceu se deve a Eberhard von Thadden, conexão entre Von Ribbentrop (ministro de relações exteriores) e Adolf Eichmann (responsável pelas deportações), num telegrama cifrado para sua embaixada em Madri que enviou em 27 de dezembro de 1943: "O governo espanhol insistiu durante as negociações que houve entre 1942 e fevereiro de 1943 de que não estava interessado nos judeus espanhóis. Mais tarde foi autorizada [por parte da Alemanha] a repatriação de todos os judeus espanhóis. Repetidas vezes, a Espanha não cumpriu o prazo acordado para seu regresso. (...) Apesar disso e por precaução, a expulsão dos judeus espanhóis não começou até 16 de novembro. Por favor, explique inequivocadamente a situação ao governo espanhol e enfatize que o governo do Reich fez todo o possível para resolver o problema amigavelmente e evitar dificuldades. Fizemos isso tendo em consideração a nacionalidade espanhola [dos judeus] apesar de que se pode entender que todos os judeus têm uma atitude antialemã."

A oferta nazi continha certa piedade ante os judeus sefarditas? Não. Não se tratava disso. Era a deferência ao amigo e ao mesmo tempo uma medida para baratear os custos do extermínio. Quer dizer, antes de proceder a aplicação em toda sua dimensão da solução final, o governo do Reich deu oportunidade ao amigo Franco de decidir sobre a sorte dos spanischer Juden, de tal sorte que se lhes fossem acolhidos para que se tomasse suas próprias medidas contra eles - como supunham que aconteceria - o operativo nazi de extermínio humano se veria substancialmente reduzido.

Fonte: Magazine Digital, do Lavanguardia.com (Espanha)
http://www.magazinedigital.com/reportajes/los_reportajes_de_la_semana/reportaje/cnt_id/8416
Tradução: Roberto Lucena

Franco e o extermínio - Parte 2
O inimigo judeu-maçônico na propaganda franquista (1936-1945)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A mezuzá nos pés da Madona - a fantástica história dos gêmeos Samuel e Joel

Os irmãos Sequerra

A fantástica história dos gêmeos Samuel e Joel

Nelson Menda, presidente do Conselho Sefaradi

No dia 24 de agosto de 1913, nasciam na cidade litorânea do Faro, no Algarve, sul de Portugal, os irmãos gêmeos Samuel e Joel Sequerra, filhos de um próspero empresário do ramo pesqueiro. Seu pai comandava com pulso firme uma frota de barcos especializados na captura de sardinhas, que eram enlatadas na unidade fabril da própria família. Os Sequerra tinha chegado ao Algarve no século XIX, provenientes da Inglaterra, e se orgulhavam do seu passado judaico-português. Duzentos anos antes do retorno, um Sequeira havia sido queimado pela inquisição em Portugal e seus três filhos tiveram de se refugiar na Inglaterra, passando a utilizar o sobrenome Sequerra. Em 1928, uma tragédia se abateu sobre a família. O pai de Samuel e Joel sofreu um grave acidente ferroviário em Portugal, vindo a falecer pouco tempo depois. Com a morte do patriarca, e tendo de enfrentar a crise mundial de 1929, a empresa dos Sequerra foi à falência.

Em 1933, a viúva mudou-se para Lisboa com seus cinco filhos: Semtob, o mais velho, os gêmeos Samuel e Joel, então com 20 anos, Mazal, a única mulher e Jacob, o caçula. Quem me relatou esses fatos foi o Salomão Sequerra, um experiente consultor de Informática, sentado em uma confortável poltrona na sala de seu apartamento no Leme, Rio de Janeiro, em março deste ano. Salomão é um homem tranqüilo de fala pausada que ainda conserva um forte sotaque português. Nasceu em Lisboa em 1943 e mudou-se com os pais e os irmãos para o Brasil em 1958, aos 15 anos de idade. Ele é filho de Joel e sobrinho de Samuel, dois heróis anônimos do século XX que ajudaram a salvar um número significativo de refugiados do nazismo, judeus e não judeus. É uma história comovente que somente agora, em pleno século XXI, exatos 60 anos depois, começa a ser revelada.

"A Espanha representou, durante os anos sombrios da II Grande Guerra, uma tábua de salvação para os fugitivos do ódio nazista"

Tudo começou em Barcelona, capital da Catalunha, Espanha, em 1942. Era uma época conturbada em todo o território europeu, com a expansão militar da Alemanha nazista, que àquela altura já tinha invadido e ocupado a Áustria, Polônia, Tcheco-Eslováquia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, Grécia e, especialmente, a França, país limítrofe à Espanha. Legiões de refugiados vagavam de um país ocupado para o outro, em busca desesperada da única rota possível de fuga: a fronteira franco-espanhola.

A travessia dos Pirineus, a pé, levava alguns dias e era realizada sob as piores condições climáticas possíveis, debaixo de frio, vento e neve. Os refugiados, além disso, precisavam driblar a vigilância da polícia francesa de fronteiras, que colaborava abertamente com a gestapo na caça aos fugitivos judeus, sem falar nos ladrões e contrabandistas que perambulavam pela região em busca de dinheiro fácil. A Espanha não havia sido invadida pelas tropas de Hitler porque era considerada uma aliada fiel do regime nazista.

O país saíra, há poucos anos, de uma sangrenta insurreição armada que representara, na verdade, uma avant-première da II Guerra Mundial. O generalíssimo Franco tinha sido o vitorioso, com o apoio financeiro, militar e ideológico da Alemanha. Barcelona, importante reduto republicano e anti-fascista, foi uma das cidades mais castigadas pelas falanges franquistas. O dialeto catalão estava proibido e até mesmo a sardana, dança folclórica tradicional, era considerada subversiva e punida com prisão. Apesar de toda a simpatia e gratidão que Franco nutria por Adolf Hitler, a Espanha representou, durante os anos sombrios da II Grande Guerra, uma tábua de salvação para os fugitivos do ódio nazista. O governo espanhol fazia vista grossa para os refugiados judeus que entravam no país, recusando-se a devolvê-los à polícia francesa ou à gestapo.

Os irmãos Sequerra desempenharam um importante papel na criação desse ambiente favorável junto às autoridades espanholas, o que permitiu a salvação de um expressivo número de homens, mulheres e crianças. Samuel e Joel portavam credenciais de voluntários da Cruz Vermelha Portuguesa e eram também funcionários da JOINT, a American Jewish Joint Distribution Committee, uma entidade de assistência aos refugiados mantida por particulares e que havia sido fundada em 1914 pelo filantropo norte-americano Jacob Schiff.

Assim que desembarcaram em Barcelona, vindos de Lisboa, os dois irmãos se hospedaram no Hotel Bristol, em plena Plaza de la Cataluña, que se transformou, em muito pouco tempo, no ponto de encontro dos refugiados que conseguiam chegar à cidade. Samuel tinha se graduado em Economia e era um diplomata nato, com enorme capacidade de relacionamento. Sua missão era contatar e fazer amizade com ministros, embaixadores, cônsules, chefes de polícia, superintendentes penitenciários e até mesmo diretores de hospitais. Joel, um assistente social na completa acepção da palavra, executava o trabalho de bastidores, percorrendo com seu carro os postos de fronteira, as prisões, as delegacias de polícia e os diversos campos de prisioneiros onde pudesse encontrar e socorrer fugitivos da barbárie nazista.

"De 1942 a 1945 Samuel e Joel conseguiram salvar aproximadamente 1.000 pessoas, entre as quais o Barão de Rothschild"

Os dois trabalhavam em total sintonia e contavam com o apoio de um eficiente grupo de voluntários que tinham ajudado a organizar. Uma vez localizado um refugiado, era preciso retirá-lo da prisão e encontrar uma residência digna, roupas, alimentos, um emprego e, mais importante do que tudo, documentos e vistos para que pudesse sair do país em segurança.

De 1942 a 1945 Samuel e Joel conseguiram salvar aproximadamente 1.000 pessoas, entre as quais o Barão de Rothschild, que, no impressionante relato da escritora Trudy Alexi no livro "A Mezuzá nos Pés da Madona" editado no Brasil pela Imago, "chegou com as roupas esfarrapadas, depois de cruzar os Pirineus andando junto com a família".

Trudy, na época uma adolescente, conseguiu fugir do inferno hitlerista pela escarpada fronteira franco-espanhola na companhia de seus pais e um irmão, tendo se radicado, posteriormente, nos EUA. A escritora dedicou parte de sua vida a entrevistar sobreviventes do Holocausto que, como sua própria família, haviam utilizado a rota Pirineus-Barcelona para alcançar a liberdade. É ela quem menciona, pela primeira vez, o nome Seguerra, assim mesmo, com g, citado 14 vezes em sua obra. Um outro livro, de autoria do escritor Haim Avni, publicado em hebraico e inglês, Spain, the Jews, and Franco, também se refere ao trabalho heróico dos dois irmãos.

Cada refugiado necessitava de uma atenção específica, pois não havia dois casos iguais. Para os homens solteiros, a salvação estava, muitas vezes, nas "noivas" portuguesas e espanholas que os irmãos Sequerra, com ajuda da coletividade, tratavam de arranjar. Como "maridos", tinham o direito de conseguir os documentos necessários para a sonhada viagem do casal à América, destino preferido da maioria dos perseguidos. Muitos desses casamentos fictícios, por estranho que possa parecer, redundaram em uniões reais e duradouras. Para outros, a solução era menos complicada.

Bastava ir à respectiva legação diplomática e conseguir passaportes e vistos para um país que os aceitasse. Com a progressão da guerra, contudo, e a política dúbia de muitas nações, estava ficando cada dia mais difícil obter esses documentos, especialmente para os judeus poloneses, que não eram reconhecidos como cidadãos pelo consulado do seu país.

Em alguns casos, quando havia risco iminente de deportação, o refugiado era internado às pressas em um hospital, onde um cirurgião amigo constatava a necessidade urgente de uma cirurgia para retirada do apêndice. Extirpava-se, na maioria das vezes, um órgão saudável, mas em contrapartida salvava-se uma vida.

Quando se esgotavam as possibilidades de conseguir passaportes e salvo-condutos em território espanhol, os Sequerra encaminhavam os refugiados para Portugal, país que também ajudou muitos judeus a escapar do inferno nazista. Em Lisboa, a comunidade judaica havia montado uma estrutura para prestar-lhes auxílio médico e financeiro, além de assistência para a obtenção de passaporte português e um providencial visto para uma terra que os acolhesse. Além dos Estados Unidos, Marrocos, no norte da África, Cuba, México e Bolívia foram alguns dos poucos países que aceitaram receber refugiados, em um período em que as portas se fechavam para os judeus.

Essa intensa atividade dos irmãos Sequerra em Barcelona não passou despercebida da Gestapo, que mantinha numerosos agentes na cidade. O escritório da Joint já havia sido transferido do Hotel Bristol para uma sede maior, no Paseo de Grácia. Uma noite, Samuel e Joel foram salvos pela própria dedicação ao trabalho.

Com excesso de tarefas, tiveram de fazer serão, tendo sido surpreendidos pelo ruído de uma violenta explosão, que destruiu completamente seu carro, estacionado nas proximidades. Tivessem saído na hora habitual, provavelmente teriam sido mortos pela bomba-relógio que os nazis colocaram sob o veículo.

A esse atentado seguiram-se outros dois, mas Samuel e Joel não esmoreceram e levaram a cabo sua meritória atividade até que tivessem retirado do território espanhol todos os refugiados que assim o desejassem. Alguns decidiram, com o fim da guerra, permanecer na Espanha, dando origem a uma florescente comunidade judaica.

Samuel e Joel continuaram suas atividades comunitárias em Portugal, mudando-se para o Brasil nos final dos anos 50. Samuel, solteiro, foi para a iniciativa privada, sendo eleito e reeleito Presidente do Cemitério Comunal Israelita, no Rio, cargo que exerceu com enorme competência e dedicação até sua morte, em 1992.

Bem à entrada dessa necrópole, no bairro do Caju, uma placa em bronze presta uma merecida homenagem ao herói anônimo que nunca aceitou, em vida, qualquer tipo de honraria e que se encontra sepultado na própria entidade que dirigiu com extremo zelo.

Seu irmão Joel, que veio com a esposa e os quatro filhos para o Rio de Janeiro em 1958, continuou desenvolvendo seu trabalho em entidades de auxílio aos refugiados, participando de projetos em prol dos judeus da Hungria, Egito, Romênia e Bulgária. Depois dessas campanhas, Joel atuou de forma decidida na colocação de bônus de Israel junto à coletividade judaica no Brasil, papéis destinados a financiar o desenvolvimento econômico daquele país.

Em 1979, aos 66 anos, Joel Sequerra se aposentou, transferindo-se para Haifa com a esposa Simy. Naquela aprazível cidade israelense já vivia, há vários anos, seu filho Arão, um brilhante arquiteto com Mestrado e Doutorado no Technion. Arão precisava de alguém com coragem suficiente para enfrentar o caótico trânsito israelense e transportar em segurança até a escola seus filhos pequenos e ninguém melhor do que o vovô Joel para tão arriscada tarefa.

Depois de ter ajudado a salvar a vida de milhares de refugiados judeus nas perigosas estradas da fronteira espanhola, Joel Sequerra curtiu seus últimos anos como motorista particular dos seus dois netos, vindo a falecer em Haifa, onde está enterrado, aos 74 anos, em 1988.

Além do internauta Salomão, que me relatou, emocionado, a maior parte dessa comovente história e do arquiteto Arão, Joel e Simy Sequerra tiveram mais dois filhos: Moisés, um virtuose do violino radicado em Lyon, França e Thea, uma jornalista que residia em Lisboa e faleceu em um acidente automobilístico em 1976.

Simy Sequerra, a viúva de Joel, mora com o filho Arão e os netos em Haifa, Israel. Os gêmeos Samuel e Joel Sequerra nunca gostaram de conversar com a família e os amigos sobre o que presenciaram durante os anos de chumbo da II Guerra e sempre recusaram receber qualquer tipo de homenagem, alegando, modestamente, que não haviam feito mais do que sua obrigação.

Uma frase de Joel, todavia, merece ficar registrada para a posteridade, pois resume em poucas palavras o misto de esperança e amargura que o acompanhou por toda a vida: "eu gostaria de acreditar que esse tenha sido o último Holocausto".

Texto publicado por Jorge Magalhães, em 09/05/2007:
http://hebreu.blogspot.com/2007/09/os-irmos-sequera.html

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Recordações de infância de uma exilada em Xangai

Recordações de infância de uma exilada em Xangai
Seleção e tradução do alemão de
Ana María Cartolano.

Entre as crianças que depois do longo exílio em Xangai regressaram a Alemanha em 1947, a bordo do Marine Lynx, estava Sonja Mühlberger. Havia vindo ao mundo em 26 de outubro de 1939 em Xangai, onde seus pais haviam fugido em fins de março desse mesmo ano. Seu pai havia sido liberado do campo de concentração de Dachau com a condição de abandonar a Alemanha imediatamente. Em abril de 1997, Sonja escreveu pela primeira vez sobre algumas de suas experiências de infância em Xangai:

"Em princípio vivíamos da comida do asilo, nem muito boa nem muito substanciosa. Mas ao menos uma vez ao dia havia algo para comer, graças ao auxílio de organizações de ajuda judaico-norte-americanas e de algumas famílias influentes. Por exemplo para mim, que era muito pequena, me colocaram num jardim de infância, construído pela família Sassoon(1) para filhos de emigrados, porque minha mãe havia conseguido trabalho como ajudante de modista. Seu salário era a comida diária. Para mim, que era uma criança, tudo isto não pesava tanto como para meus pais. Como eu me alimentava mal não sentia a fome que com frequência eles deviam sofrer. Mais tarde meu pai, como alguns outros emigrados, começaram a trabalhar como vendedor de ovos no negócio de um chinês, e ao mesmo tempo aprendeu a falar chinês(o dialeto de Xangai). Num escuro quarto traseiro sem janelas, meu pai se sentava numa banqueta, com uns canastros (cestos) grandes de ambos lados; tomava um dos canastros quatro ovos ao mesmo tempo entre seus dedos, apontava-os para refletir frente a uma lâmpada e os punha noutro canastro grande, ou os descartava num menor; eu me sentava a seu lado e o observava. Algumas vezes me sentava sobre o porta-bagagem(bagageiro)da bicicleta, as suas costas, quando ia ao campo comprar ovos ou uns poucos frangos.

Também usava essa bicicleta para repartir os ovos, e frequentemente, para abastecer seus clientes, tinha de subir muitas escadarias com canastros pesados. E com essa mesma bicicleta me levava ao jardim de infância, mais tarde até a escola, e ía me buscar na saída.

(...) Durante dois anos freqüentei a escola Kadoorie, era um curso exclusivamente de garotas no qual também havia três garotas chinesas. A língua que se falava em classe era o inglês. Tínhamos que falar em inglês também nos recreios, mas quando estávamos suficientemente longe das professoras, falávamos em alemão entre nós.

Muitas vezes minha mãe lía para mim contos de fadas alemães de um livro que não sei de onde tirou. Quando uma vez perguntei o que era um bosque ela me disse que eu devia imaginar uma árvore, e depois outra, e assim sucessivamente, e que isso era um bosque. Só depois da abertura do gueto pudemos visitar o Parque Jessfield onde havia mais árvores, e eram maiores, que no pequeno Waysidepark(parque) situado nas proximidades do edifício onde vivíamos.

A princípio tive poucos brinquedos, e a falta deles desenhava roupas para bonecas de papel. Uma vez havíamos ido ver um médico, e na sala de espera pude folhear algumas revistas de moda que me interessaram, assim que eu mesmo comecei a fazer esboços de vestidos para minhas bonecas de papel. A única boneca verdadeira que tive me presentearam aos seis anos; coloquei-a sentada no parapeito de uma das janelas da planta baixa para que pudesse vermos vernos jogar, mas apenas dei uma volta, desapareceu para sempre. Roubaram-na as crianças chinesas que eram todavia mais pobres que nós.

(...) Vivíamos num lugar onde havia uma encruzilhada. à esquerda da casa havia um terreno cheio de escombros, à direita uma casa onde também viviam emigrados; em frente a nossa casa, na esquina, diante do muro da fábrica de cigarros, pela manhã costumavam aparecer várias embalagens colocadas em fila, uma junto a outro.

Quando me levantava e me debruçava à sacada, com frequência ouvia um choramingo. Um dia minha mãe me disse que nos vultos haviam bebês, em sua maioria garotas, que eram abandonados ali durante a noite.

Muitas vezes roguei a mais pais que recolhessem uma daquelas crianças, porque não havia coisa que desejara mais que uma irmã; mas eles não quiseram satisfazer meu desejo: me explicaram que não se sabia se aquelas crianças estavam enfermas e que, ademais, nós não podíamos alimentar a uma criança. Por azar eu sempre podia observar como chegava um garoto num carro que carregavam os corpos sem nenhuma forma de consideração e íam embora com eles. Também podia observar outras coisas desde a sacada. Por exemplo, do outro lado da encruzilhada havia um lugar onde se reuniam os Culis dos "rickshaws" e compravam água quente que, segundo se sabia, passava melhor a sede. Meu pai nunca quis viajar num "rickshaw", achava humilhante ser levado por um homem, se bem que algumas vezes tomava um “pedicab” (um chinês que conduzia uma bicicleta) ou viajava em ônibus.

(...) Teve uma experiência muito ruim antes de nossa partida partida à Alemanha. Meus pais sempre trataram de conservar vivo em mim o amor à Alemanha, sua pátria. E se o fascismo fosse derrotado queriam voltar à Alemanha. Naturalmente eu contei isto a todos os que quiseram me escutar, mas a maioria dos emigrados tinham muitos argumentos contra o regresso a um país onde sua dignidade humana havia sido pisoteada e onde haviam sido assassinados seus parentes e amigos. Estavam muito amargos e pensavam que, apesar de tudo, ali seguiram e estavam as mesmas pessoas, e nisso tinham razão. Mas não pude me esquecer de que sendo uma garota os emigrados alemães me insultaram por essa razão, e até chegaram a cuspir-me; ainda que realmente o que eu menos sabia era que meus pais haviam decidido voltar à Alemanha e não aceitar o oferecimento de emigrar à América.

Integramos o grupo dos que voltaram com o primeiro transporte que levou de regresso a sua pátria a alemães e austríacos. Nosso barco, o transporte de tropas norte-americano Marine Lynx, zarpou de Xangai em 25 de julho de 1947 e chegou a Nápoles em 16 de agosto. Desde ali, os 295 alemães entre os quais meu irmão Peter, com seus dois anos, era o mais jovem, necessitaram ainda de uma semana num trem de carga, até que em 21 de agosto de 1947 entraram na Görlitzer Bahnhof de Berlim. Os homens haviam estendido cordas ante as portas dos vagões, para que nós, as crianças, não pudéssemos cair. Quando o trem parava, nosso amigo Alfred Zacharias, corria a zelar por nossas necessidades, e assim foi que pudemos conseguir até um pouco de palha para dormir no nosso vagão. De vez em quando minha mãe abria alguma lata das que nos tinham proporcionado na UNRRA, e amornava seu conteúdo num esquentadorzinho. Nessa época, a maioria das pessoas se alimentavam com bolachas secas.

Um par de dias depois de nossa chegada, seguindo o desejo de meus pais, viví a experiência de um primeiro dia de classe na escola alemã; apesar de ter frequentado durante dois anos a escola de Xangai, fui inscrita no primeiro grau da escola primária. Durante um tempo, para festejo de meus companheiros, respondi em inglês aos mestres que me interrogavam. Mais tarde também pude fazê-lo em alemão."

Extraído de Leben im Wartesaal. "Exil in Shanghai"(Exílio em Xangai). 1938-1947.
Jüdische Museum im Stadtmuseum Berlin. Berlin: 1997.

Notas
1. A família dos Sassoon era uma família judia de tradição sefardita, estabelecida em Xangai desde o século XIX, que se encontrava entre as dos mais ricos comerciantes da Ásia. Junto aos Sassoon, Kadoorie, Hardoon, que todavia hoje têm importância na Ásia, as famílias Ezra, Shamoon, Baroukh, Toeg, Abraham, Haim e Hillali representavam as personalidades mais cultas da sociedade internacional de Xangai.

Na foto recente(logo acima), Sonja é a primeira da direita para esquerda.
Ver mais fotos no site: http://www.rickshaw.org/childhood.htm

Fonte: Fundación Memoria del Holocausto (Argentina)
http://fmh.org.ar/revista/17/recuer.htm
Texto em espanhol: Ana María Cartolano
Tradução: Roberto Lucena

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