Os que não foram heróis - continuação
Por Renato Mezan
ensaio
HISTÓRIA
Arendt narra um fato que deixa isto absolutamente claro: em Amsterdã, em 1941, alguns judeus ousaram atacar um destacamento da Gestapo. A represália foi fulminante: 430 judeus foram presos e torturados, depois deportados para Buchenwald e Mauthausen. O mesmo aconteceu em outros lugares, com judeus e não-judeus que ousavam se rebelar ou sabotar instalações alemãs; a retaliação vinha logo, sobre centenas de inocentes, e com uma brutalidade aterradora. Não era viável resistir individualmente: esta é a verdade.
A Resistência francesa e os guerrilheiros que na Iugoslávia infernizavam a vida dos ocupantes foram constituídos a partir de bases preexistentes, especificamente o Partido Comunista, organizado já para a vida clandestina segundo as diretrizes de Lênin no famoso opúsculo Que Fazer?. Ora, os judeus como grupo eram bem organizados -as coletividades dispunham de escolas, orfanatos, órgãos assistenciais e, obviamente, sinagogas-, mas não se tratava de estruturas que pudessem ser convertidas do dia para a noite em entidades combatentes, sem falar no fato de que a maioria dos judeus não teria aderido a elas se por milagre pudessem escolher. Foi nas fileiras dos movimentos juvenis sionistas que finalmente se recrutaram os que podiam lutar, mas isto ainda estava longe, no horizonte distante, quando no verão de 1940 a Europa inteira se cobria de suásticas e o Terceiro Reich parecia mesmo poder durar mil anos.
Este poder se abate sobre os judeus com uma velocidade e com uma eficácia que os deixou completamente sem opção. No que se refere à Polônia, o processo Eichmann revelou que já em 21 de setembro de 1939, quando as ruínas de Varsóvia ainda fumegavam, Reinhard Heydrich -o “engenheiro da Solução Final”- convocou uma reunião em Berlim para tratar do destino dos três milhões de judeus que ali viviam. Os nazistas jamais esconderam seu anti-semitismo, mas agora ele não se limitava à discriminação legal ou a ocasionais episódios de brutalidade. Tratava-se de passar, como diz Heine na frase que tomei como epígrafe, das palavras aos atos. As diretivas do Führer eram: concentração imediata dos judeus poloneses em guetos, estabelecimento de Conselhos Judaicos (“Judenräte”) e deportação de todos os que viviam na parte ocidental do país para a área do Governo Geral da Polônia. Isto porque os territórios que faziam fronteira com a Alemanha haviam sido pura e simplesmente anexados ao Reich, com o nome de Warthegau (continham importantes reservas de minérios e petróleo); a parte oriental, até a fronteira do território anexado pela União Soviética, era conhecida como “Governo Geral”, e seria o palco do extermínio nos anos seguintes.
As ordens foram seguidas escrupulosamente, e a máquina pôs-se em marcha. O território do Reich deveria ser tomado “judenrein” o quanto antes: e isto significava deportar 400 mil judeus da Alemanha, da Áustria e dos Sudetos checos, além de 600 mil da nova província formada com a anexação da Polônia ocidental. Ainda não se falava em extermínio físico, mas é evidente que movimentar estas centenas de milhares de pessoas rumo a guetos na Polônia central, em trens de carga hermeticamente fechados, só podia acarretar conseqüências pavorosas. A concentração em guetos era uma etapa essencial neste esquema, e havia a diretriz bastante lógica de que eles fossem estabelecidos perto das estações ferroviárias, a fim de facilitar o transporte. Desta forma, em poucos meses se conduziram à Polônia e se trancaram em bairros superpovoados todos os judeus que tinham permanecido nos territórios do Reich.
Uma operação desta envergadura colocava problemas logísticos de extrema complexidade, e diversos departamentos do governo e das SS tiveram de trabalhar em conjunto -o Ministério dos Transportes, por exemplo, devia cuidar para que os horários dos trens de deportados não colidissem com o funcionamento dos trens normais, a polícia precisava garantir que os embarques se dessem em ordem etc. Mas tudo dependia, antes ainda, da boa vontade dos judeus em “cooperar”, como disse com convicção Eichmann em seus depoimentos. Ora, além dos motivos que já mencionei -a inércia natural a quem vive num país e obedece as suas leis, a dificuldade de opor resistência ativa à força inacreditável e à aparente invencibilidade dos alemães, mito que só foi abalado quando os russos impediram a conquista de Stalingrado e a maré da guerra começou a virar- há ainda um outro fator a ser considerado.
Trata-se do seguinte: a concentração -não em campos de prisioneiros, mas em guetos onde a vida prosseguia tão normalmente quanto possível- era ainda uma situação tolerável. Havia recursos para a iniciativa individual, desde a astúcia para conseguir alimentos ou remédios até a possibilidade de fugir, esconder-se com amigos ou no campo etc. A maioria dos judeus era de homens e mulheres com família, e julgavam, não sem razão, que seria melhor obedecer aos éditos do ocupante até que aquele pesadelo terminasse: não podiam suspeitar que a cúpula nazista já havia decidido seu extermínio.
Um outro elemento de enorme importância é o que chamei atrás de inércia. Não uso este termo num sentido moral: penso no fato de que as pessoas tendem naturalmente a se acomodar às circunstâncias da vida quando lhes parece que não há alternativa viável a elas. Em termos sociais, é preciso levar em conta que existiam governos nestes lugares, mesmo que títeres dos nazistas; havia leis a serem obedecidas, ainda que iníquas, uma polícia que vigiava as pessoas -infelizmente, uma polícia judaica que se somava às SS- e, sobretudo, o conhecimento de que na maior parte dos países a população apoiava, passiva ou ativamente, as medidas anti-semitas(1). Fugir em massa? Impossível. Resistir individualmente, só através da fuga ou do ocultamento por cristãos -foi o que aconteceu com a família de Anne Frank e com tantos outros. Indefesos, desarmados, tendo a perder o pouco que haviam conseguido salvar, e ordeiros por séculos de obediência à Lei, os judeus, nos primeiros dois anos da guerra, simplesmente não tinham outra opção exceto a de seguir vivendo.
A invasão da Rússia, em 22 de junho de 1941, marcou outro ponto de virada nessa história sinistra. Hitler, agora inteiramente tomado por sua megalomania, ordenou o extermínio físico de todos os judeus da Europa, como Heydrich contou a Eichmann numa reunião em novembro daquele ano. E, no Terceiro Reich, “Führerworte haben Gesetzkraft”, as palavras do Führer tinham força de lei. Por extraordinário que pareça, este era um dos princípios fundamentais da legalidade nazista –“l’Etat c’est moi”, literalmente e num sentido que nem mesmo Luís XIV podia suspeitar. Diversos textos jurídicos da época, citados por Hannah Arendt, não deixam qualquer dúvida a respeito.
Até então, havia na verdade dois métodos para lidar com a “Judenfrage”. A política de concentração atingia os judeus trazidos do Reich e os poloneses, assim como, nos diversos países ocidentais, as respectivas comunidades. Com a ocupação dos territórios da União Soviética, que incluíam os países bálticos com sua grande população judaica, entraram em cena os “Einsatzgruppen”, ou unidades de assalto, encarregadas de realizar fuzilamentos em massa. Havia quatro destes batalhões de assassinos, e seus alvos eram todos os funcionários soviéticos, além dos profissionais liberais, jornalistas, intelectuais e de modo geral a intelligentsia destas regiões, que, no radioso futuro traçado pelos nazistas, teriam a missão de fornecer trabalhadores escravos para a raça dominante. A estas categorias logo se somaram os judeus, os ciganos, os “rebeldes” de todo tipo, que pudessem representar alguma “ameaça” à “segurança do Reich”. Cerca de 300 mil pessoas foram assim fuziladas, não sem antes cavarem seus próprios túmulos coletivos, que em seguida eram cobertos de terra, às vezes com os corpos ainda se retorcendo nos últimos estertores da agonia.
Mas um método tão lento de matança não permitiria liqüidar com rapidez toda a população judaica do continente. A Solução Final veio para resolver este problema, e começou a ser delineada no outono de 1941, quando se decidiu ampliar o programa de eutanásia até então aplicado somente aos doentes mentais da própria Alemanha. Um decreto de Hitler datado de 1º de setembro de 1939 -o primeiro dia da guerra- ordenava dar a estes infelizes “uma morte misericordiosa”. O envenenamento por gás foi a fórmula encontrada, e até meados de 1941 foram mortos 50 mil internos em asilos alemães, austríacos e dos Sudetos.
Este foi o ensaio geral da “Endlösung”. Em janeiro de 1942, no subúrbio berlinense de Wannsee, Heydrich convocou uma reunião com os principais executivos do serviço público alemão e com os encarregados de todos os departamentos da SS. O objetivo era avaliar até que ponto a burocracia estatal de carreira estaria disposta a cooperar com o projeto de genocídio, a manter o segredo necessário para que as medidas fossem eficazes e de modo geral a considerar a ordem de extermínio como mais uma tarefa a ser executada. Não houve qualquer oposição da parte destes honrados funcionários, de quem dependia, na verdade, o bom funcionamento da máquina estatal; quanto às SS, era sua tarefa cumprir as ordens de Hitler.
Eichmann assistiu a esta reunião, assim como Oswald Pohl, encarregado do Wirtschafts und Verwaltungshauptamt -o WVHA, ou Escritório Central para a Economia e Administração da SS-, do qual passaria a depender a operação concreta dos campos. Matar pessoas em escala industrial tornava-se assim um assunto “econômico” e “administrativo”, pois havia problemas a serem resolvidos racionalmente -a capacidade de absorção dos campos, por exemplo, tinha de ser calculada em conjunto com as possibilidades de transporte de gente de toda a Europa, as “cargas” deviam lotar os trens para não desperdiçar combustível, havia questões de logística, produção do gás etc. O departamento de Eichmann foi encarregado de organizar o transporte, e durante os anos seguintes ele cumpriu com horrenda eficácia e infinita escrupulosidade essa tarefa.
Hannah Arendt reconstitui os procedimentos que conduziram à instalação dos campos de extermínio na região do Governo Geral da Polônia -Auschwitz, Treblinka, Sobibor, Maidanek, Belzek e outros. Todos conhecemos, depois de tantos livros e filmes, a seqüência macabra deste processo: como os deportados eram conduzidos no meio da noite em trens lacrados, como eram selecionados os mais aptos para os trabalhos necessários ao bom funcionamento dos campos, da cozinha dos oficiais às mulheres que deveriam servir de prostitutas e aos “Sonderkommandos”, encarregados de retirar os cadáveres dos galpões e de cuidar dos fornos crematórios; como os outros prisioneiros eram levados a crer que iriam tomar um banho, despindo-se e arrumando caprichosamente seus pertences; como eram trancadas as portas, ligado o gás e asfixiados os condenados; como eram em seguida queimados os seus corpos, produzindo colunas de fumaça que se podiam ver a quilômetros de distância; e, por fim, como eram arrancados os dentes de ouro, que, fundidos depois, viriam acabar nos cofres do Reichsbank. Estes horrores são por demais conhecidos para que nos demoremos neles, mas é preciso lembrá-los -o dever da memória- para que se tenha a medida da frieza e da naturalidade com que operava a indústria da morte.
3. Ilusão
Agora podemos tentar responder à pergunta que não cala: por que os judeus aceitaram morrer assim? Por que não se revoltaram nos trens, ou antes, ou depois, ao desembarcar no destino final?
A resposta é complexa. Em primeiro lugar, porque não sabiam o que ia lhes acontecer, ao menos nos primeiros tempos. Não havia informação precisa sobre nada na época da guerra, pois o rádio era censurado, a imprensa idem, e quem fosse apanhado ouvindo a BBC podia ter certeza de uma morte rápida como traidor. Para nós, que vivemos no tempo da internet e do mundo que cabe na palma da mão, é difícil imaginar o que anos de ocupação brutal, de propaganda mentirosa e de pavor constante podem provocar em matéria de ilusões ou de simples desconhecimento da realidade. Mesmo quando começaram a surgir os primeiros boatos do que se passava no Leste, poucos acreditaram que aquilo fosse mesmo possível -e o tamanho do seu engano só lhes era revelado quando o galpão se trancava e o Zyklon B começava a fazer efeito.
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Notas:
1 - Nos países em que o governo ou a população boicotaram as medidas exigidas pelos nazistas, como a Dinamarca e a Bulgária, os judeus sofreram muitíssimo menos. Da Dinamarca, quase todos foram evacuados para a Suécia numa única noite, com a ajuda de barcos pesqueiros e muita audácia por parte da população local; da Bulgária, quase todos puderam emigrar para Israel depois de acabada a guerra. A própria França, onde o vergonhoso regime de Vichy endossava a política anti-semita, recusou-se a entregar os que eram cidadãos franceses para serem deportados, em virtude do que 250 mil dos 300 mil que ali viviam no início de 1940 puderam sobreviver.
Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,2.shl
Início:
Os que não foram heróis - parte 1
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