Os que não foram heróis - continuação
Por Renato Mezan
ensaio
HISTÓRIA
Arendt narra um fato que deixa isto absolutamente claro: em Amsterdã, em 1941, alguns judeus ousaram atacar um destacamento da Gestapo. A represália foi fulminante: 430 judeus foram presos e torturados, depois deportados para Buchenwald e Mauthausen. O mesmo aconteceu em outros lugares, com judeus e não-judeus que ousavam se rebelar ou sabotar instalações alemãs; a retaliação vinha logo, sobre centenas de inocentes, e com uma brutalidade aterradora. Não era viável resistir individualmente: esta é a verdade.
A Resistência francesa e os guerrilheiros que na Iugoslávia infernizavam a vida dos ocupantes foram constituídos a partir de bases preexistentes, especificamente o Partido Comunista, organizado já para a vida clandestina segundo as diretrizes de Lênin no famoso opúsculo Que Fazer?. Ora, os judeus como grupo eram bem organizados -as coletividades dispunham de escolas, orfanatos, órgãos assistenciais e, obviamente, sinagogas-, mas não se tratava de estruturas que pudessem ser convertidas do dia para a noite em entidades combatentes, sem falar no fato de que a maioria dos judeus não teria aderido a elas se por milagre pudessem escolher. Foi nas fileiras dos movimentos juvenis sionistas que finalmente se recrutaram os que podiam lutar, mas isto ainda estava longe, no horizonte distante, quando no verão de 1940 a Europa inteira se cobria de suásticas e o Terceiro Reich parecia mesmo poder durar mil anos.
Este poder se abate sobre os judeus com uma velocidade e com uma eficácia que os deixou completamente sem opção. No que se refere à Polônia, o processo Eichmann revelou que já em 21 de setembro de 1939, quando as ruínas de Varsóvia ainda fumegavam, Reinhard Heydrich -o “engenheiro da Solução Final”- convocou uma reunião em Berlim para tratar do destino dos três milhões de judeus que ali viviam. Os nazistas jamais esconderam seu anti-semitismo, mas agora ele não se limitava à discriminação legal ou a ocasionais episódios de brutalidade. Tratava-se de passar, como diz Heine na frase que tomei como epígrafe, das palavras aos atos. As diretivas do Führer eram: concentração imediata dos judeus poloneses em guetos, estabelecimento de Conselhos Judaicos (“Judenräte”) e deportação de todos os que viviam na parte ocidental do país para a área do Governo Geral da Polônia. Isto porque os territórios que faziam fronteira com a Alemanha haviam sido pura e simplesmente anexados ao Reich, com o nome de Warthegau (continham importantes reservas de minérios e petróleo); a parte oriental, até a fronteira do território anexado pela União Soviética, era conhecida como “Governo Geral”, e seria o palco do extermínio nos anos seguintes.
As ordens foram seguidas escrupulosamente, e a máquina pôs-se em marcha. O território do Reich deveria ser tomado “judenrein” o quanto antes: e isto significava deportar 400 mil judeus da Alemanha, da Áustria e dos Sudetos checos, além de 600 mil da nova província formada com a anexação da Polônia ocidental. Ainda não se falava em extermínio físico, mas é evidente que movimentar estas centenas de milhares de pessoas rumo a guetos na Polônia central, em trens de carga hermeticamente fechados, só podia acarretar conseqüências pavorosas. A concentração em guetos era uma etapa essencial neste esquema, e havia a diretriz bastante lógica de que eles fossem estabelecidos perto das estações ferroviárias, a fim de facilitar o transporte. Desta forma, em poucos meses se conduziram à Polônia e se trancaram em bairros superpovoados todos os judeus que tinham permanecido nos territórios do Reich.
Uma operação desta envergadura colocava problemas logísticos de extrema complexidade, e diversos departamentos do governo e das SS tiveram de trabalhar em conjunto -o Ministério dos Transportes, por exemplo, devia cuidar para que os horários dos trens de deportados não colidissem com o funcionamento dos trens normais, a polícia precisava garantir que os embarques se dessem em ordem etc. Mas tudo dependia, antes ainda, da boa vontade dos judeus em “cooperar”, como disse com convicção Eichmann em seus depoimentos. Ora, além dos motivos que já mencionei -a inércia natural a quem vive num país e obedece as suas leis, a dificuldade de opor resistência ativa à força inacreditável e à aparente invencibilidade dos alemães, mito que só foi abalado quando os russos impediram a conquista de Stalingrado e a maré da guerra começou a virar- há ainda um outro fator a ser considerado.
Trata-se do seguinte: a concentração -não em campos de prisioneiros, mas em guetos onde a vida prosseguia tão normalmente quanto possível- era ainda uma situação tolerável. Havia recursos para a iniciativa individual, desde a astúcia para conseguir alimentos ou remédios até a possibilidade de fugir, esconder-se com amigos ou no campo etc. A maioria dos judeus era de homens e mulheres com família, e julgavam, não sem razão, que seria melhor obedecer aos éditos do ocupante até que aquele pesadelo terminasse: não podiam suspeitar que a cúpula nazista já havia decidido seu extermínio.
Um outro elemento de enorme importância é o que chamei atrás de inércia. Não uso este termo num sentido moral: penso no fato de que as pessoas tendem naturalmente a se acomodar às circunstâncias da vida quando lhes parece que não há alternativa viável a elas. Em termos sociais, é preciso levar em conta que existiam governos nestes lugares, mesmo que títeres dos nazistas; havia leis a serem obedecidas, ainda que iníquas, uma polícia que vigiava as pessoas -infelizmente, uma polícia judaica que se somava às SS- e, sobretudo, o conhecimento de que na maior parte dos países a população apoiava, passiva ou ativamente, as medidas anti-semitas(1). Fugir em massa? Impossível. Resistir individualmente, só através da fuga ou do ocultamento por cristãos -foi o que aconteceu com a família de Anne Frank e com tantos outros. Indefesos, desarmados, tendo a perder o pouco que haviam conseguido salvar, e ordeiros por séculos de obediência à Lei, os judeus, nos primeiros dois anos da guerra, simplesmente não tinham outra opção exceto a de seguir vivendo.
A invasão da Rússia, em 22 de junho de 1941, marcou outro ponto de virada nessa história sinistra. Hitler, agora inteiramente tomado por sua megalomania, ordenou o extermínio físico de todos os judeus da Europa, como Heydrich contou a Eichmann numa reunião em novembro daquele ano. E, no Terceiro Reich, “Führerworte haben Gesetzkraft”, as palavras do Führer tinham força de lei. Por extraordinário que pareça, este era um dos princípios fundamentais da legalidade nazista –“l’Etat c’est moi”, literalmente e num sentido que nem mesmo Luís XIV podia suspeitar. Diversos textos jurídicos da época, citados por Hannah Arendt, não deixam qualquer dúvida a respeito.
Até então, havia na verdade dois métodos para lidar com a “Judenfrage”. A política de concentração atingia os judeus trazidos do Reich e os poloneses, assim como, nos diversos países ocidentais, as respectivas comunidades. Com a ocupação dos territórios da União Soviética, que incluíam os países bálticos com sua grande população judaica, entraram em cena os “Einsatzgruppen”, ou unidades de assalto, encarregadas de realizar fuzilamentos em massa. Havia quatro destes batalhões de assassinos, e seus alvos eram todos os funcionários soviéticos, além dos profissionais liberais, jornalistas, intelectuais e de modo geral a intelligentsia destas regiões, que, no radioso futuro traçado pelos nazistas, teriam a missão de fornecer trabalhadores escravos para a raça dominante. A estas categorias logo se somaram os judeus, os ciganos, os “rebeldes” de todo tipo, que pudessem representar alguma “ameaça” à “segurança do Reich”. Cerca de 300 mil pessoas foram assim fuziladas, não sem antes cavarem seus próprios túmulos coletivos, que em seguida eram cobertos de terra, às vezes com os corpos ainda se retorcendo nos últimos estertores da agonia.
Mas um método tão lento de matança não permitiria liqüidar com rapidez toda a população judaica do continente. A Solução Final veio para resolver este problema, e começou a ser delineada no outono de 1941, quando se decidiu ampliar o programa de eutanásia até então aplicado somente aos doentes mentais da própria Alemanha. Um decreto de Hitler datado de 1º de setembro de 1939 -o primeiro dia da guerra- ordenava dar a estes infelizes “uma morte misericordiosa”. O envenenamento por gás foi a fórmula encontrada, e até meados de 1941 foram mortos 50 mil internos em asilos alemães, austríacos e dos Sudetos.
Este foi o ensaio geral da “Endlösung”. Em janeiro de 1942, no subúrbio berlinense de Wannsee, Heydrich convocou uma reunião com os principais executivos do serviço público alemão e com os encarregados de todos os departamentos da SS. O objetivo era avaliar até que ponto a burocracia estatal de carreira estaria disposta a cooperar com o projeto de genocídio, a manter o segredo necessário para que as medidas fossem eficazes e de modo geral a considerar a ordem de extermínio como mais uma tarefa a ser executada. Não houve qualquer oposição da parte destes honrados funcionários, de quem dependia, na verdade, o bom funcionamento da máquina estatal; quanto às SS, era sua tarefa cumprir as ordens de Hitler.
Eichmann assistiu a esta reunião, assim como Oswald Pohl, encarregado do Wirtschafts und Verwaltungshauptamt -o WVHA, ou Escritório Central para a Economia e Administração da SS-, do qual passaria a depender a operação concreta dos campos. Matar pessoas em escala industrial tornava-se assim um assunto “econômico” e “administrativo”, pois havia problemas a serem resolvidos racionalmente -a capacidade de absorção dos campos, por exemplo, tinha de ser calculada em conjunto com as possibilidades de transporte de gente de toda a Europa, as “cargas” deviam lotar os trens para não desperdiçar combustível, havia questões de logística, produção do gás etc. O departamento de Eichmann foi encarregado de organizar o transporte, e durante os anos seguintes ele cumpriu com horrenda eficácia e infinita escrupulosidade essa tarefa.
Hannah Arendt reconstitui os procedimentos que conduziram à instalação dos campos de extermínio na região do Governo Geral da Polônia -Auschwitz, Treblinka, Sobibor, Maidanek, Belzek e outros. Todos conhecemos, depois de tantos livros e filmes, a seqüência macabra deste processo: como os deportados eram conduzidos no meio da noite em trens lacrados, como eram selecionados os mais aptos para os trabalhos necessários ao bom funcionamento dos campos, da cozinha dos oficiais às mulheres que deveriam servir de prostitutas e aos “Sonderkommandos”, encarregados de retirar os cadáveres dos galpões e de cuidar dos fornos crematórios; como os outros prisioneiros eram levados a crer que iriam tomar um banho, despindo-se e arrumando caprichosamente seus pertences; como eram trancadas as portas, ligado o gás e asfixiados os condenados; como eram em seguida queimados os seus corpos, produzindo colunas de fumaça que se podiam ver a quilômetros de distância; e, por fim, como eram arrancados os dentes de ouro, que, fundidos depois, viriam acabar nos cofres do Reichsbank. Estes horrores são por demais conhecidos para que nos demoremos neles, mas é preciso lembrá-los -o dever da memória- para que se tenha a medida da frieza e da naturalidade com que operava a indústria da morte.
3. Ilusão
Agora podemos tentar responder à pergunta que não cala: por que os judeus aceitaram morrer assim? Por que não se revoltaram nos trens, ou antes, ou depois, ao desembarcar no destino final?
A resposta é complexa. Em primeiro lugar, porque não sabiam o que ia lhes acontecer, ao menos nos primeiros tempos. Não havia informação precisa sobre nada na época da guerra, pois o rádio era censurado, a imprensa idem, e quem fosse apanhado ouvindo a BBC podia ter certeza de uma morte rápida como traidor. Para nós, que vivemos no tempo da internet e do mundo que cabe na palma da mão, é difícil imaginar o que anos de ocupação brutal, de propaganda mentirosa e de pavor constante podem provocar em matéria de ilusões ou de simples desconhecimento da realidade. Mesmo quando começaram a surgir os primeiros boatos do que se passava no Leste, poucos acreditaram que aquilo fosse mesmo possível -e o tamanho do seu engano só lhes era revelado quando o galpão se trancava e o Zyklon B começava a fazer efeito.
__________________________________________________
Notas:
1 - Nos países em que o governo ou a população boicotaram as medidas exigidas pelos nazistas, como a Dinamarca e a Bulgária, os judeus sofreram muitíssimo menos. Da Dinamarca, quase todos foram evacuados para a Suécia numa única noite, com a ajuda de barcos pesqueiros e muita audácia por parte da população local; da Bulgária, quase todos puderam emigrar para Israel depois de acabada a guerra. A própria França, onde o vergonhoso regime de Vichy endossava a política anti-semita, recusou-se a entregar os que eram cidadãos franceses para serem deportados, em virtude do que 250 mil dos 300 mil que ali viviam no início de 1940 puderam sobreviver.
Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,2.shl
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sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Os que não foram heróis - parte 2
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quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Os que não foram heróis - parte 1
Os que não foram heróis
Por Renato Mezan
ensaio
HISTÓRIA
O gueto de Varsóvia em cena de "O Pianista", de Polanski
Psicanalista reflete sobre a submissão dos judeus ao terror nazista
À memória de David Sztulman, morí umadrichí(1)
“As idéias precedem os atos, assim como antes do trovão vem o relâmpago.”
Heine, « De l’Allemagne »
Na parede lateral da sinagoga que, na Congregação Israelita Paulista, é usada para os ofícios diários, estão gravados centenas de nomes: homenagem aos parentes dos membros da comunidade que pereceram durante a “Solução Final da Questão Judaica”, como os nazistas denominaram a mais fantástica realização dos seus doze anos de poder, nos quais não escasseiam horrores e crueldades.
Lembro-me da primeira vez em que entrei nesta sinagoga, durante os preparativos para meu “bar-mitzvá”. O mármore coberto de nomes me chamou imediatamente a atenção, e me recordo de ter pensado que o de minha avó Renata Mezan poderia estar entre eles; mas não foi da Alemanha, e sim de Milão, que ela partiu para uma morte horrenda em algum campo da Polônia.
Os nomes me fizeram pensar também na visita que Tzivia Lubetkin, uma sobrevivente do Gueto da Varsóvia, fizera à CIP poucos meses antes, e no encontro que David Sztulman, então diretor do Departamento Juvenil, organizara com ela. Tzivia Lubetkin havia sido uma importante testemunha no processo Eichmann, dois anos antes, e a este título é mencionada no livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, do qual voltaremos a falar. Ela nos contou sobre o Levante, sobre o heroísmo dos jovens comandados por Mordechai Anilewicz, sobre o prodígio que foram aquelas três semanas da primavera de 1943, quando algumas centenas de judeus enfim despertados da sua apatia resistiram às brigadas alemãs, até que somente uns poucos permanecessem vivos e pudessem escapar pelos esgotos.
Foi por esta época que li Mila 18, o romance de Leon Uris ambientado no Gueto. Anos depois, ao visitar Varsóvia, emocionei-me diante do monumento aos combatentes do gueto, que fica no local onde se erguia o número 18 da rua Mila, hoje uma praça(2). E sempre a mesma pergunta se apresentava diante dos meus olhos, na pequena sinagoga, ouvindo a voz pausada daquela senhora que nos falava em hebraico, em pé recitando um “Kadish” em memória daqueles milhões de mortos, ou ainda ao percorrer as alamedas silenciosas do que foi o campo de Auschwitz3, naquela mesma visita à Polônia: por que não resistiram? Por que marcharam tão passivamente para a morte? Por que somente anos depois de se iniciarem as atrocidades contra os judeus é que ocorreram episódios de resistência, entre os quais o levante? É a responder estas perguntas, ou ao menos encaminhar um esboço de resposta, que visa o presente artigo.
1. Submissão
E antes de mais nada, uma observação. A maneira como costumamos formular a pergunta inclui implicitamente uma nota de desdém, pois o “tão passivamente” nada mais é do que um eufemismo para “marcharam para a morte como carneiros para o matadouro”. Esta conotação é um insulto aos que morreram, acrescentando à sua tragédia um matiz vergonhoso que em nada nos honra, a nós, nascidos depois que tudo terminou, e que teríamos preferido que nossa história contivesse mais episódios como Metzadá (o suicídio coletivo dos combatentes contra Roma em 70 d.C.) ou como o levante do Gueto, e menos cenas como as que nos mostram os filmes sobre o Holocausto, longas filas de pessoas caminhando ordenadamente para as câmaras de gás.
Para compreender como tal coisa pôde acontecer, é preciso entrar no âmago da história, compreender o que era o regime nazista e o que fez com todos os que com ele tiveram contato, alemães e não-alemães, soldados e civis, carrascos e vítimas. Somente assim se pode vislumbrar também o significado da revolta do Gueto, e por que só após três longos anos de sofrimento é que ela pôde eclodir. Dados históricos são assim indispensáveis, mas igualmente a análise destes dados do ponto de vista psicológico, pois estamos lidando com um fenômeno de obediência coletiva a diretrizes tão absurdas, tão bárbaras e desumanas, que desafia a imaginação o simples fato de terem sido formuladas. Acusar de covardia as vítimas -pois é disso que se trata, quando vem à tona a metáfora dos carneiros- é, além de uma ofensa à sua memória, um erro grave, que provém da desinformação tanto quanto do nosso desejo de não nos identificar com elas.
É no livro de Hannah Arendt que encontro as informações necessárias para o que se segue. Enviada em 1961 a Jerusalém pela New Yorker, com a missão de cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, ela escreveu um texto sóbrio, porém que ainda hoje se lê com emoção. O que comove o leitor é a lucidez da pensadora, as questões que ela levanta -e como as levanta- à medida que as páginas vão se cobrindo de dados precisos, cortantes, aterradores. Hannah Arendt não se furta a examinar o papel dos próprios judeus na implementação da Solução Final, sem o qual ela não teria atingido aquele grau macabro de sucesso. E do que nos conta emerge a possibilidade de compreender, como disse, o que se passava nas mentes dos que não resistiram, assim como, talvez, nas daqueles que finalmente pegaram em armas e resgataram a honra do povo condenado.
A Solução Final, ou “Endlösung”, não foi a primeira política dos nazistas em relação aos judeus. Desde a eleição de Hitler para o posto de chanceler, as medidas antijudaicas foram postas em prática com uma determinação fanática e com uma meticulosidade toda germânica. Elas atingiram primeiro os judeus da própria Alemanha, excluídos do serviço público logo nos primeiros meses do regime -o que significava abandonar cargos nas escolas e Universidades, no rádio, em entidades culturais como museus e orquestras, nos serviços médicos etc. As Leis de Nuremberg de 1935 codificaram a exclusão da “raça inferior” e criaram a figura jurídica da “Rassenschande”, o crime de contato sexual entre arianos e judeus. Estas medidas não encontraram oposição dos alemães, antes pelo contrário: obtiveram um apoio mais do que formal, a ponto de Arendt poder falar em “cumplicidade ubíqua” da população e do Estado.
Duas observações cabem aqui. A primeira é que, no contexto dos anos 30, as medidas discriminatórias eram ainda um assunto interno da Alemanha e, por mais que chocassem o mundo civilizado, foram ativamente elogiados pelos anti-semitas de outros países, especialmente na Europa do Leste, que sempre viram na cultura alemã um modelo prestigioso. Em segundo lugar, os próprios judeus alemães as aceitaram, pois reconheciam no regime nazista a legalidade e a legitimidade do Estado constituído. Aceitar, é óbvio, não significa aprovar: é claro que esperavam que um dia os nazistas fossem alijados do poder e que fossem abolidas as leis vergonhosas. Alguns perceberam as proporções do horror e emigraram, mas a maioria se adaptou ao que parecia um mal menor e, em todo caso, passageiro. “As Leis de Nuremberg privavam os judeus dos seus direitos políticos”, frisa Hannah Arendt, “mas não de seus direitos civis; eles não eram mais cidadãos (‘Reichsbürger’), mas continuavam membros do Estado alemão (‘Staatsangehörige’). Os judeus sentiam que agora haviam recebido leis próprias e que não seriam mais postos fora da lei (...). Eles acreditaram que haveria um ‘modus vivendi’ possível, e chegaram a se oferecer para cooperar com a ‘solução da questão judaica’”(4).
Esse engano nos parece hoje incompreensível, mas na época não o era. A imensa maioria dos judeus alemães, apesar do anti-semitismo difuso do último século, havia se integrado à sociedade e à cultura do país em que haviam nascido, e no qual também haviam nascido muitas gerações de seus antepassados. Orgulhavam-se das contribuições dos seus às artes, às ciências e ao progresso da Alemanha; haviam lutado lealmente por seu país na Grande Guerra, e muitos haviam sido condecorados por bravura. Consideravam-se superiores aos “Ostjuden”, ou judeus do Leste europeu, que falavam ídiche, usavam longas barbas, cachos laterais no cabelo (“peies”), casacos de cor negra e viviam num universo religioso que lhes parecia antiquado e cheio de superstições. Seu próprio ambiente religioso era na maior parte dos casos o da Reforma judaica do século XIX, isso quando não eram completamente seculares: a religião era um assunto privado ou comunitário, mas de forma alguma os impedia de levar uma vida civil em nada diferente da dos outros 80 milhões de alemães. Até os sionistas se acomodaram com as Leis de Nuremberg, embora por outra razão: viam na segregação imposta aos judeus um elemento a favor de suas idéias, um primeiro passo para a recusa da assimilação e no sentido de um despertar da consciência nacional entre os refratários à sua mensagem política.
O primeiro grande abalo nesta visão otimista veio com a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, quando todas as sinagogas do país foram incendiadas e se quebraram milhares de vitrinas de lojas judaicas, cujos cacos no chão “brilhavam como cristais” (daí a alcunha com que ficou conhecida esta barbaridade)5. Ainda assim, a política oficial do Reich -que agora englobava a Áustria- era a de que os judeus deveriam sair do país, a fim de que este se tornasse “judenrein” (limpo de judeus). Sabemos que, apesar das extorsões financeiras e do labirinto burocrático, 150 mil judeus austríacos puderam emigrar relativamente em paz entre o “Anschluss” de março de 1938 e os primeiros meses de 1940 -Freud e sua família entres eles. Incidentalmente, era Eichmann o encarregado de negociar com os líderes da comunidade as questões de emigração; fez isso com notável eficácia, com o que veio a adquirir a fama de “perito em questões judaicas” que mais tarde o levaria chefiar o departamento encarregado da enorme tarefa de deportar milhões de pessoas para a morte no Leste.
2. Terror
“Foi com o início da guerra que o regime nazista tornou-se abertamente totalitário e abertamente criminoso”, escreve Hannah Arendt (p. 82). A invasão da Polônia colocou sob a bota alemã três milhões de judeus, cujo destino estava selado antes mesmo que as bombas acabassem de cair sobre Varsóvia. No filme “O Pianista”, de Roman Polanski, vemos a reação de uma família judia de classe média aos primeiros decretos dos ocupantes: medo, estupefação, tentativas de esconder algum dinheiro, indignação -mas principalmente inércia. Quando é formado o gueto, em outubro de 1940, os judeus vão disciplinadamente para as novas casas; assistem paralisados ao levantamento dos muros e continuam a viver como podem. Logo se instalam as doenças e a fome, mas cada um tenta prover a si e aos seus, buscando sobreviver, na esperança de que um dia aquele pesadelo chegaria ao fim.
Na Europa inteira, enquanto isso, a Wehrmacht conquistava um êxito atrás do outro. Com exceção da Inglaterra e da União Soviética, todos os países estavam sob o domínio alemão ou eram governados por regimes pró-Berlim, mesmo os neutros como Portugal, Espanha e Suíça. Nos países ocupados, colocou-se imediatamente em prática a segunda política nazista para os judeus, agora que a emigração em massa se tornara impossível: o que Arendt chama de concentração. Os judeus deviam se registrar e passavam a usar a estrela amarela; em seguida vinha a ordem para se mudarem para o gueto, que era murado e patrulhado pelas SS. Nesse processo, as lideranças judaicas colaboravam através dos “Conselhos Judaicos”, encarregados de obter os dados cadastrais e de cuidar de detalhes práticos como confisco de bens, distribuição de cartões para racionamento etc. A estes homens, sem dúvida atormentados pelas tarefas que deviam executar, parecia que estavam escolhendo o caminho da prudência, ao não confrontarem um invasor cuja crueldade e cujo total desprezo pela vida humana se manifestava diariamente, com uma ferocidade da qual ninguém julgaria capazes homens do século XX. A doutrina da superioridade racial certamente oferecia aos alemães uma boa justificativa para seus atos, e o reino do terror era implantado com uma rapidez de tirar o fôlego. Qualquer tentativa de oposição era punida com massacres e com requintes de crueldade; informantes e colaboradores abasteciam a Gestapo com o que ela precisava saber, e os judeus aceitavam, como todos os outros, a realidade pavorosa que tinha se abatido sobre eles quase do dia para a noite.
______________________________
Notas:
1 - “Meu mestre, que me mostrou o caminho.” David Sztulman, nascido na Polônia, foi por muitos anos diretor do Departamento Juvenil da CIP. Ele e sua esposa Sima despertaram meu interesse pela história e pelos valores do judaísmo e me proporcionaram alguns dos anos mais felizes de minha vida. Que este texto sirva como um testemunho da gratidão que lhes dedico.
2 - Varsóvia foi destruída durante a guerra, inclusive Stare Miesto, a cidade antiga. Seguindo planos e desenhos que puderam ser preservados, os poloneses reconstruíram as fachadas e a aparência urbana do centro histórico exatamente como eram em 31 de agosto de 1939. Mas das ruas onde ficava o gueto nada foi reconstruído: o espaço tornou-se uma praça.
3 - Auschwitz é hoje um monumento nacional polonês, dedicado à memória dos patriotas ali assassinados. Milhares de retratos cobrem as paredes do que foram os dormitórios, tendo em baixo de cada um o nome da pessoa. Não há uma única referência ao martírio dos judeus, nem nomes judaicos entre os retratos.
4 - Hannah Arendt, "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal" (1964), São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 50 ss.
5 - A "Kristallnacht" foi desencadeada como represália ao assassinato, por um jovem judeu, de um diplomata alemão na Embaixada em Paris. O pai deste jovem depôs no processo Eichmann (cf. Arendt, op. cit., p. 248).
Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,1.shl
Continuação:
Os que não foram heróis - parte 2
Por Renato Mezan
ensaio
HISTÓRIA
O gueto de Varsóvia em cena de "O Pianista", de Polanski
Psicanalista reflete sobre a submissão dos judeus ao terror nazista
À memória de David Sztulman, morí umadrichí(1)
“As idéias precedem os atos, assim como antes do trovão vem o relâmpago.”
Heine, « De l’Allemagne »
Na parede lateral da sinagoga que, na Congregação Israelita Paulista, é usada para os ofícios diários, estão gravados centenas de nomes: homenagem aos parentes dos membros da comunidade que pereceram durante a “Solução Final da Questão Judaica”, como os nazistas denominaram a mais fantástica realização dos seus doze anos de poder, nos quais não escasseiam horrores e crueldades.
Lembro-me da primeira vez em que entrei nesta sinagoga, durante os preparativos para meu “bar-mitzvá”. O mármore coberto de nomes me chamou imediatamente a atenção, e me recordo de ter pensado que o de minha avó Renata Mezan poderia estar entre eles; mas não foi da Alemanha, e sim de Milão, que ela partiu para uma morte horrenda em algum campo da Polônia.
Os nomes me fizeram pensar também na visita que Tzivia Lubetkin, uma sobrevivente do Gueto da Varsóvia, fizera à CIP poucos meses antes, e no encontro que David Sztulman, então diretor do Departamento Juvenil, organizara com ela. Tzivia Lubetkin havia sido uma importante testemunha no processo Eichmann, dois anos antes, e a este título é mencionada no livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, do qual voltaremos a falar. Ela nos contou sobre o Levante, sobre o heroísmo dos jovens comandados por Mordechai Anilewicz, sobre o prodígio que foram aquelas três semanas da primavera de 1943, quando algumas centenas de judeus enfim despertados da sua apatia resistiram às brigadas alemãs, até que somente uns poucos permanecessem vivos e pudessem escapar pelos esgotos.
Foi por esta época que li Mila 18, o romance de Leon Uris ambientado no Gueto. Anos depois, ao visitar Varsóvia, emocionei-me diante do monumento aos combatentes do gueto, que fica no local onde se erguia o número 18 da rua Mila, hoje uma praça(2). E sempre a mesma pergunta se apresentava diante dos meus olhos, na pequena sinagoga, ouvindo a voz pausada daquela senhora que nos falava em hebraico, em pé recitando um “Kadish” em memória daqueles milhões de mortos, ou ainda ao percorrer as alamedas silenciosas do que foi o campo de Auschwitz3, naquela mesma visita à Polônia: por que não resistiram? Por que marcharam tão passivamente para a morte? Por que somente anos depois de se iniciarem as atrocidades contra os judeus é que ocorreram episódios de resistência, entre os quais o levante? É a responder estas perguntas, ou ao menos encaminhar um esboço de resposta, que visa o presente artigo.
1. Submissão
E antes de mais nada, uma observação. A maneira como costumamos formular a pergunta inclui implicitamente uma nota de desdém, pois o “tão passivamente” nada mais é do que um eufemismo para “marcharam para a morte como carneiros para o matadouro”. Esta conotação é um insulto aos que morreram, acrescentando à sua tragédia um matiz vergonhoso que em nada nos honra, a nós, nascidos depois que tudo terminou, e que teríamos preferido que nossa história contivesse mais episódios como Metzadá (o suicídio coletivo dos combatentes contra Roma em 70 d.C.) ou como o levante do Gueto, e menos cenas como as que nos mostram os filmes sobre o Holocausto, longas filas de pessoas caminhando ordenadamente para as câmaras de gás.
Para compreender como tal coisa pôde acontecer, é preciso entrar no âmago da história, compreender o que era o regime nazista e o que fez com todos os que com ele tiveram contato, alemães e não-alemães, soldados e civis, carrascos e vítimas. Somente assim se pode vislumbrar também o significado da revolta do Gueto, e por que só após três longos anos de sofrimento é que ela pôde eclodir. Dados históricos são assim indispensáveis, mas igualmente a análise destes dados do ponto de vista psicológico, pois estamos lidando com um fenômeno de obediência coletiva a diretrizes tão absurdas, tão bárbaras e desumanas, que desafia a imaginação o simples fato de terem sido formuladas. Acusar de covardia as vítimas -pois é disso que se trata, quando vem à tona a metáfora dos carneiros- é, além de uma ofensa à sua memória, um erro grave, que provém da desinformação tanto quanto do nosso desejo de não nos identificar com elas.
É no livro de Hannah Arendt que encontro as informações necessárias para o que se segue. Enviada em 1961 a Jerusalém pela New Yorker, com a missão de cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, ela escreveu um texto sóbrio, porém que ainda hoje se lê com emoção. O que comove o leitor é a lucidez da pensadora, as questões que ela levanta -e como as levanta- à medida que as páginas vão se cobrindo de dados precisos, cortantes, aterradores. Hannah Arendt não se furta a examinar o papel dos próprios judeus na implementação da Solução Final, sem o qual ela não teria atingido aquele grau macabro de sucesso. E do que nos conta emerge a possibilidade de compreender, como disse, o que se passava nas mentes dos que não resistiram, assim como, talvez, nas daqueles que finalmente pegaram em armas e resgataram a honra do povo condenado.
A Solução Final, ou “Endlösung”, não foi a primeira política dos nazistas em relação aos judeus. Desde a eleição de Hitler para o posto de chanceler, as medidas antijudaicas foram postas em prática com uma determinação fanática e com uma meticulosidade toda germânica. Elas atingiram primeiro os judeus da própria Alemanha, excluídos do serviço público logo nos primeiros meses do regime -o que significava abandonar cargos nas escolas e Universidades, no rádio, em entidades culturais como museus e orquestras, nos serviços médicos etc. As Leis de Nuremberg de 1935 codificaram a exclusão da “raça inferior” e criaram a figura jurídica da “Rassenschande”, o crime de contato sexual entre arianos e judeus. Estas medidas não encontraram oposição dos alemães, antes pelo contrário: obtiveram um apoio mais do que formal, a ponto de Arendt poder falar em “cumplicidade ubíqua” da população e do Estado.
Duas observações cabem aqui. A primeira é que, no contexto dos anos 30, as medidas discriminatórias eram ainda um assunto interno da Alemanha e, por mais que chocassem o mundo civilizado, foram ativamente elogiados pelos anti-semitas de outros países, especialmente na Europa do Leste, que sempre viram na cultura alemã um modelo prestigioso. Em segundo lugar, os próprios judeus alemães as aceitaram, pois reconheciam no regime nazista a legalidade e a legitimidade do Estado constituído. Aceitar, é óbvio, não significa aprovar: é claro que esperavam que um dia os nazistas fossem alijados do poder e que fossem abolidas as leis vergonhosas. Alguns perceberam as proporções do horror e emigraram, mas a maioria se adaptou ao que parecia um mal menor e, em todo caso, passageiro. “As Leis de Nuremberg privavam os judeus dos seus direitos políticos”, frisa Hannah Arendt, “mas não de seus direitos civis; eles não eram mais cidadãos (‘Reichsbürger’), mas continuavam membros do Estado alemão (‘Staatsangehörige’). Os judeus sentiam que agora haviam recebido leis próprias e que não seriam mais postos fora da lei (...). Eles acreditaram que haveria um ‘modus vivendi’ possível, e chegaram a se oferecer para cooperar com a ‘solução da questão judaica’”(4).
Esse engano nos parece hoje incompreensível, mas na época não o era. A imensa maioria dos judeus alemães, apesar do anti-semitismo difuso do último século, havia se integrado à sociedade e à cultura do país em que haviam nascido, e no qual também haviam nascido muitas gerações de seus antepassados. Orgulhavam-se das contribuições dos seus às artes, às ciências e ao progresso da Alemanha; haviam lutado lealmente por seu país na Grande Guerra, e muitos haviam sido condecorados por bravura. Consideravam-se superiores aos “Ostjuden”, ou judeus do Leste europeu, que falavam ídiche, usavam longas barbas, cachos laterais no cabelo (“peies”), casacos de cor negra e viviam num universo religioso que lhes parecia antiquado e cheio de superstições. Seu próprio ambiente religioso era na maior parte dos casos o da Reforma judaica do século XIX, isso quando não eram completamente seculares: a religião era um assunto privado ou comunitário, mas de forma alguma os impedia de levar uma vida civil em nada diferente da dos outros 80 milhões de alemães. Até os sionistas se acomodaram com as Leis de Nuremberg, embora por outra razão: viam na segregação imposta aos judeus um elemento a favor de suas idéias, um primeiro passo para a recusa da assimilação e no sentido de um despertar da consciência nacional entre os refratários à sua mensagem política.
O primeiro grande abalo nesta visão otimista veio com a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, quando todas as sinagogas do país foram incendiadas e se quebraram milhares de vitrinas de lojas judaicas, cujos cacos no chão “brilhavam como cristais” (daí a alcunha com que ficou conhecida esta barbaridade)5. Ainda assim, a política oficial do Reich -que agora englobava a Áustria- era a de que os judeus deveriam sair do país, a fim de que este se tornasse “judenrein” (limpo de judeus). Sabemos que, apesar das extorsões financeiras e do labirinto burocrático, 150 mil judeus austríacos puderam emigrar relativamente em paz entre o “Anschluss” de março de 1938 e os primeiros meses de 1940 -Freud e sua família entres eles. Incidentalmente, era Eichmann o encarregado de negociar com os líderes da comunidade as questões de emigração; fez isso com notável eficácia, com o que veio a adquirir a fama de “perito em questões judaicas” que mais tarde o levaria chefiar o departamento encarregado da enorme tarefa de deportar milhões de pessoas para a morte no Leste.
2. Terror
“Foi com o início da guerra que o regime nazista tornou-se abertamente totalitário e abertamente criminoso”, escreve Hannah Arendt (p. 82). A invasão da Polônia colocou sob a bota alemã três milhões de judeus, cujo destino estava selado antes mesmo que as bombas acabassem de cair sobre Varsóvia. No filme “O Pianista”, de Roman Polanski, vemos a reação de uma família judia de classe média aos primeiros decretos dos ocupantes: medo, estupefação, tentativas de esconder algum dinheiro, indignação -mas principalmente inércia. Quando é formado o gueto, em outubro de 1940, os judeus vão disciplinadamente para as novas casas; assistem paralisados ao levantamento dos muros e continuam a viver como podem. Logo se instalam as doenças e a fome, mas cada um tenta prover a si e aos seus, buscando sobreviver, na esperança de que um dia aquele pesadelo chegaria ao fim.
Na Europa inteira, enquanto isso, a Wehrmacht conquistava um êxito atrás do outro. Com exceção da Inglaterra e da União Soviética, todos os países estavam sob o domínio alemão ou eram governados por regimes pró-Berlim, mesmo os neutros como Portugal, Espanha e Suíça. Nos países ocupados, colocou-se imediatamente em prática a segunda política nazista para os judeus, agora que a emigração em massa se tornara impossível: o que Arendt chama de concentração. Os judeus deviam se registrar e passavam a usar a estrela amarela; em seguida vinha a ordem para se mudarem para o gueto, que era murado e patrulhado pelas SS. Nesse processo, as lideranças judaicas colaboravam através dos “Conselhos Judaicos”, encarregados de obter os dados cadastrais e de cuidar de detalhes práticos como confisco de bens, distribuição de cartões para racionamento etc. A estes homens, sem dúvida atormentados pelas tarefas que deviam executar, parecia que estavam escolhendo o caminho da prudência, ao não confrontarem um invasor cuja crueldade e cujo total desprezo pela vida humana se manifestava diariamente, com uma ferocidade da qual ninguém julgaria capazes homens do século XX. A doutrina da superioridade racial certamente oferecia aos alemães uma boa justificativa para seus atos, e o reino do terror era implantado com uma rapidez de tirar o fôlego. Qualquer tentativa de oposição era punida com massacres e com requintes de crueldade; informantes e colaboradores abasteciam a Gestapo com o que ela precisava saber, e os judeus aceitavam, como todos os outros, a realidade pavorosa que tinha se abatido sobre eles quase do dia para a noite.
______________________________
Notas:
1 - “Meu mestre, que me mostrou o caminho.” David Sztulman, nascido na Polônia, foi por muitos anos diretor do Departamento Juvenil da CIP. Ele e sua esposa Sima despertaram meu interesse pela história e pelos valores do judaísmo e me proporcionaram alguns dos anos mais felizes de minha vida. Que este texto sirva como um testemunho da gratidão que lhes dedico.
2 - Varsóvia foi destruída durante a guerra, inclusive Stare Miesto, a cidade antiga. Seguindo planos e desenhos que puderam ser preservados, os poloneses reconstruíram as fachadas e a aparência urbana do centro histórico exatamente como eram em 31 de agosto de 1939. Mas das ruas onde ficava o gueto nada foi reconstruído: o espaço tornou-se uma praça.
3 - Auschwitz é hoje um monumento nacional polonês, dedicado à memória dos patriotas ali assassinados. Milhares de retratos cobrem as paredes do que foram os dormitórios, tendo em baixo de cada um o nome da pessoa. Não há uma única referência ao martírio dos judeus, nem nomes judaicos entre os retratos.
4 - Hannah Arendt, "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal" (1964), São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 50 ss.
5 - A "Kristallnacht" foi desencadeada como represália ao assassinato, por um jovem judeu, de um diplomata alemão na Embaixada em Paris. O pai deste jovem depôs no processo Eichmann (cf. Arendt, op. cit., p. 248).
Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,1.shl
Continuação:
Os que não foram heróis - parte 2
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segunda-feira, 6 de agosto de 2007
O Pianista(entrevista coletiva do filme - Varsóvia)
Entrevista coletiva à imprensa em Varsóvia
O depoimento do cineasta foi dado à imprensa em Varsóvia, Polônia, em 28 de Março de 2001, quando ainda filmava "O Pianista"
- Por que você ficou tão atraído pelo livro de Wladyslaw Szpilman? O que havia nele de tão importante e por que, como você mesmo disse, acredita neste filme como não acreditou em nenhum outro antes?
Roman Polanski: Este livro descreve os eventos que lembro de minha juventude. Por muitos anos, planejei fazer um filme sobre esta época, mas não conseguia encontrar o assunto certo, a história certa. O livro de Szpilman não é mais um capítulo da história sobre o martírio judeu que todos conhecemos. O livro descreve esses eventos sob o ponto de vista de um homem que viveu nele. Ele mostra a realidade dessa época com uma objetividade fria e surpreendente. Existem no livro poloneses maus e poloneses decentes, judeus maus e judeus decentes, alemães maus e alemães decentes. Como sabemos, o livro foi escrito logo depois da guerra e, talvez por isso, ele seja tão
verdadeiro, diferente do que foi escrito 20, 30 anos depois da guerra. Assim que li os primeiros capítulos soube que aquele seria o tema do meu próximo filme.
- O Sr. Ronald Harwood, co-autor do roteiro, disse: "A contribuição de Roman Polanski ao roteiro foi enorme. Muitas soluções, que ninguém mais teria pensado, foram tiradas de suas próprias experiências." Até que ponto este filme é sua criação pessoal?
R.P.: Veja, por muitas vezes, li coisas que poderiam ou não ser o tema de um filme como este, mas estavam sempre muito próximos das minhas experiências da guerra. Não era isso que eu queria. Neste aqui, entretanto, temos a descrição do gueto de Varsóvia, eu estava
no gueto de Cracóvia, o que significa que eu vivi naquele período, que conheci os alemães da época, bem como os judeus e poloneses. Ao mesmo tempo, poderia usar a minha própria experiência enquanto escrevia o roteiro, sem torná-lo biografia. Era tudo o que queria
evitar. Foi fácil para mim trabalhar neste roteiro, porque ele não estava relacionado aos eventos, ruas e pessoas que eu me lembro da época.
- Falando de Ronald Harwood, qual foi o motivo que o levou a escolhê-lo para escrever o roteiro, considerando que ele é um dramaturgo muito conhecido?
R.P.: Precisava de alguém que soubesse como escrever este tipo de roteiro, isto é, alguém que já tivesse alguma experiência no assunto. Ronald Harwood já escreveu peças e roteiros relacionados a este período na história. Eu o admiro enormemente tanto como escritor quanto dramaturgo, principalmente por suas peças, a já mencionada O Fiel Camareiro (The Dresser) e... não me lembro do título em polonês da outra peça, Taking Sides, que foi recentemente montada em Varsóvia. É uma peça sobre Furgwegler, o condutor que foi acusado de
colaboração com os nazistas. Qual é o título mesmo? "Za i przeciw". Depois de assistir a esta peça, grande sucesso em Paris do ano passado, que me convenci de que ele era perfeito para o trabalho.
- Você disse muitas vezes que tratou a história contada em O PIANISTA de forma muito pessoal. Você planeja dar seu testemunho, aparecendo pessoalmente em alguma das cenas?
R.P.: Absolutamente não. Quero que tudo no filme pareça o mais realista possível. Fazer aparições em filmes é uma das características de Hitchcock e... isto deixa no ar uma sensação de uma brincadeira pessoal, o que quero evitar neste tema em particular. É claro que seria simbólico, mas já que sou conhecido e as pessoas costumam me reconhecer pelas ruas, provavelmente provocaria conotações enganosas. Todos logo dirão: "É o Polanski, o Polanski!", prefiro evitar.
- Qual foi o maior desafio de seu filme?
R.P.: Provavelmente todos sabem que interpretar é, de certa forma, uma profissão pouco saudável. Isso porque a verdadeira interpretação requer a vivência do papel. Quando você diz isso a pessoas que não entendem muito sobre interpretação, elas normalmente reagem com um sorriso condescendente. Mas como alguém que tem experiência nesta profissão, posso garantir que é totalmente viciante. Um bom ator, que incorpora realmente o que interpreta, vive o seu papel por 12, 14, ou, como foi no nosso caso, 16 semanas até o final, raramente sai ileso.
- Falando nisso, como você imaginou o ator para interpretar o papel principal? Que características especiais queria? E como procurou e o que o fez escolher o Sr. Adrien Brody?
R.P.: Posso lhe dizer uma coisa com certeza: nunca procurei semelhança física, porque na minha opinião, isso não importava. O que eu queria era um ator que se encaixasse no personagem que tinha em mente enquanto escrevia o roteiro com Ronald Harwood. Era muito
importante que ele não fosse uma celebridade, um ator muito conhecido, pela mesma razão que já falei antes com relação a minha participação no filme. Foi por isso que decidimos, desde o começo, tentar encontrar um ator iniciante. Mas já que o filme seria filmado na Inglaterra, precisávamos de alguém que falasse inglês fluentemente. Então, procuramos em Londres, por talentos ainda não descobertos. Fizemos o casting lá. Os organizadores ficaram surpresos
ao ver tantos candidatos; 1.400 pessoas se candidataram, dentre eles algumas mulheres, alguns chineses, alguns negros, etc. Depois dos testes, percebemos que seria difícil encontrar alguém sem nenhuma experiência; então, começamos a procurar entre os atores rofissionais. Não encontrei ninguém na Inglaterra, então resolvi ampliar a minha busca. A América era a escolha óbvia, pois como todos sabem, fala-se inglês fluentemente lá.
- Quando se lê O PIANISTA, tem-se a impressão que Szpilman se culpa por não tentar encontrar Hosenfeld, o oficial alemão. Você concorda com isso? E neste caso, há algum momento de hesitação em seu filme, enfatizando a tragédia do oficial alemão?
R.P.: Há um momento assim no filme, mas não concordo que Szpilman tenha tido algum tipo de arrependimento, ou tenha se culpado. Na minha opinião, a questão é a expressão de sua modéstia. Como sabemos, le fez tudo que pode para salvar a vida de Hosenfeld. Ele até
recorreu às autoridades comunistas e não teve sucesso, é claro. Todos sabem que era uma causa perdida. Nós também sabemos que ele foi procurado pela família de Hosenfeld e que eles tiveram contato. Creio que a família esteve em Varsóvia duas vezes. A propósito, nós também procuramos o filho de Hosenfeld em Berlim.
- Como você ajudou o seu ator a entender a realidade mostrada no filme, a atmosfera da época?
R.P.: É difícil de explicar verbalmente. Você teria de ir até o set e ver como é feito. Depende do momento, da cena e, é claro, do autor. Não quero falar demais sobre Adrien aqui, para que não vire uma troca de elogios. Ia virar o próprio clubinho de elogios mútuos. Espero que
o filme chegue em breve aos cinemas poloneses e que vocês possam assistir.
- Gostaria de perguntar sobre o impacto psicológico ao realizar este filme. Como se sentiu filmando na Polônia? Sei que é o seu primeiro filme realizado aqui depois de A Faca na Água Este fato dá um toque diferente, principalmente quando o tema central do filme está
enraizado em suas próprias experiências? Ele é totalmente diferente de "O Último Portal". Como se você preparou emocionalmente para isto?
R.P.: Não precisei me preparar, foi suficiente ler o livro para voltar imediatamente àqueles momentos, psicologicamente falando. Voltar fisicamente, sem dúvida, ajuda, o idioma polonês, os costumes poloneses, a atmosfera do país, etc. Tudo aconteceu automaticamente.
Devo admitir, entretanto, que filmar com alemães em Berlim foi muito mais fácil para nós. Ao ouvir os alemães gritarem e ao vê-los vestidos em seus uniformes, dei-me conta que não poderia filmar em outro lugar que não fosse a Polônia.
- Deve ter sido uma experiência significante filmar na Polônia depois de tantos anos. A Faca na Água marcou sua estréia, é um dos melhores filmes que eu já vi. Gostaria de lhe fazer uma pergunta técnica: você filmará em locações originais em Varsóvia, como a Avenida Niepodlegosci, na rua Noakowskiego, ou na rua Puawaska?
R.P.: Não. Infelizmente essas ruas não existem mais. Mas temos que dar um jeito. Devo dizer que, felizmente, a tecnologia atual nos permite recriar certas coisas que já não existem mais. Estou falando do uso do computador que é tão comum em outros filmes, mas no nosso,
passará despercebido. Com relação às locações originais, só iremos filmar nas ruas Kralowskie Przedmiescie e na Kozia. As outras locações serão na cidade de Praga. Devo admitir que tive muita sorte. Não sei se é a palavra certa. Em 1939, logo depois que a guerra começou, todos os homens foram para o leste por alguma razão que não sei, visto que eu, minha mãe e irmã fomos para Varsóvia. Eu sobrevivi ao bombardeio de Varsóvia e vivi aqui por duas semanas. Lembro-me de tudo muito bem. Queria recriar tudo o que me lembro de minha infância. Não me lembro da Avenida Ujazdowskie, eu me lembro de uma Varsóvia igual à Praga de hoje: ruas escuras, tráfego intenso, prédios da virada do século. Foi por isso que filmamos lá.
- Mais uma pergunta técnica que esteve presente em nossa discussão desde o princípio. Gostaria de lhe pedir que comentasse sobre a ironia da história, você filmando O PIANISTA simultaneamente ao caso Jedwabno. Poderia comentar a coincidência?
R.P.: É, como você falou, uma coincidência e é difícil para mim relacionar isto à minha própria experiência de fazer o filme na Polônia. As pessoas continuarão a descobrir outros casos, talvez
porque muitos anos se passaram daquela época e os poloneses têm, agora, uma perspectiva maior e mais objetiva da história de seu país. E mais, a geração de hoje não precisa sentir qualquer responsabilidade pelo que aconteceu naquela época.
- Por quanto tempo vocês filmarão em Varsóvia?
R.P.: Resta ainda mais 11 semanas.
- Já considerou fazer um filme sobre Abi Rozner? Sua biografia foi mostrada recentemente na TV, acho que talvez mereça um roteiro para cinema? Estou segurando um livro "Roman by Polanski". Você vai filmá-lo ou entregará o roteiro para outra pessoa?
R.P.: Quanto a primeira pergunta, nunca pensei em desenvolver este projeto. Acho que já respondi a sua segunda pergunta. Voltando a primeira, posso garantir que não. Definitivamente, não estou fazendo a minha biografia, porque não me interessa. Faço filmes e não documentários. Espero que nunca realizem um filme sobre a minha vida.
- Pode nos falar sobre sua relação com o Sr. Szpilman? Vocês conversaram sobre o filme? Quais foram suas exigências? Quais foram suas sugestões?
R.P.: O Sr. Szpilman não fez nenhuma sugestão em particular, ele apenas se limitou a dizer como estava feliz de ver seu livro virar filme e ser dirigido por mim. Eu só vi o Sr. Szpilman três vezes. A primeira vez, em Los Angeles, muito tempo atrás, durante uma de suas
visitas a América. A segunda vez foi aqui, no Clube dos Jornalistas, cerca de 12 anos atrás. Jantava com Morgenstern, Szpilman apareceu e se sentou conosco, e jantamos juntos. Depois que resolvi fazer o filme, nós nos vimos pela terceira vez; visitei Szpilman com Gene
Gutowski, tomamos chá e conversamos sobre o filme.
- Seus filmes normalmente criam a realidade, mais do que a recriam. Depois do que disse hoje, posso assumir que você tentará recriar a realidade de Szpilman e não acrescentar nada de si mesmo?
R.P.: A minha aproximação neste filme é, definitivamente, diferente. Cada assunto requer um tratamento diferente.
- Existem atores poloneses famosos no elenco de O PIANISTA. Nós os identificaremos no filme?
R.P.: Você verá atores poloneses em pequenos papéis, pois como já falei, o filme é filmado em inglês. Por isso nossa escolha ficou limitada a atores poloneses que falassem bem inglês.
- Por que você se desviou da área do grotesco, em direção aos valores fundamentais como lágrimas, medo, fuga? O que aconteceu? Spielberg passou muito tempo lhe pedindo que fizesse um filme assim?
R.P.: A decidi, subitamente, fazer este filme. Essa situação pode ser comparada a escolha de um prato no cardápio de um restaurante. Meus mais recentes filmes foram puro entretenimento e careciam de profundos valores filosóficos e sociais. O PIANISTA é, sem dúvida, um prato mais elaborado. Com relação a A Lista de Schindler, ele estava muito próximo das minhas experiências pessoais. Evito situações assim, porque sei que não faria um bom filme. Acho que Spielberg fez um grande trabalho. Ninguém mais poderia fazê-lo tão bem quanto ele. Ele contou uma história sobre uma época, pessoas e até mesmo de ruas muitos familiares para mim. Enquanto procurava as locações para O PIANISTA, fomos com o Sr. Starski a Cracóvia, já que não existem mais muitas ruas antigas em Varsóvia. Estávamos caminhando pelas ruas do antigo gueto e o que senti comprovou que não deveria filmar em
Cracóvia. Até mesmo por razões pessoais. Eu raramente visito ruas que um dia significaram muito para mim e estive em Cracóvia uma segunda vez. Se eu trabalhasse nos lugares que tiveram valores históricos e pessoais para mim, certamente eles perderiam estes valores e se
tornariam apenas um cenário para mim. O fato é que não conseguia encontrar o tema certo. Perguntaram-me diversas vezes se eu faria um filme na Polônia e sempre respondi: "Sim, e planejo fazer, só não sei quando." Eu sempre soube que queria fazer um filme na Polônia sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre o período pós-guerra, só não conseguia encontrar o tema certo. O livro de Szpilman foi este tema.
Divulgação Europa Filmes
Fonte: http://oscar.uai.com.br/
Holocausto-Doc lista(Yahoo)
Postado em: http://www.casaamarela.org.br/cineclube/arquivo/novembro_03/novembro_roman_polanski.htm
O depoimento do cineasta foi dado à imprensa em Varsóvia, Polônia, em 28 de Março de 2001, quando ainda filmava "O Pianista"
- Por que você ficou tão atraído pelo livro de Wladyslaw Szpilman? O que havia nele de tão importante e por que, como você mesmo disse, acredita neste filme como não acreditou em nenhum outro antes?
Roman Polanski: Este livro descreve os eventos que lembro de minha juventude. Por muitos anos, planejei fazer um filme sobre esta época, mas não conseguia encontrar o assunto certo, a história certa. O livro de Szpilman não é mais um capítulo da história sobre o martírio judeu que todos conhecemos. O livro descreve esses eventos sob o ponto de vista de um homem que viveu nele. Ele mostra a realidade dessa época com uma objetividade fria e surpreendente. Existem no livro poloneses maus e poloneses decentes, judeus maus e judeus decentes, alemães maus e alemães decentes. Como sabemos, o livro foi escrito logo depois da guerra e, talvez por isso, ele seja tão
verdadeiro, diferente do que foi escrito 20, 30 anos depois da guerra. Assim que li os primeiros capítulos soube que aquele seria o tema do meu próximo filme.
- O Sr. Ronald Harwood, co-autor do roteiro, disse: "A contribuição de Roman Polanski ao roteiro foi enorme. Muitas soluções, que ninguém mais teria pensado, foram tiradas de suas próprias experiências." Até que ponto este filme é sua criação pessoal?
R.P.: Veja, por muitas vezes, li coisas que poderiam ou não ser o tema de um filme como este, mas estavam sempre muito próximos das minhas experiências da guerra. Não era isso que eu queria. Neste aqui, entretanto, temos a descrição do gueto de Varsóvia, eu estava
no gueto de Cracóvia, o que significa que eu vivi naquele período, que conheci os alemães da época, bem como os judeus e poloneses. Ao mesmo tempo, poderia usar a minha própria experiência enquanto escrevia o roteiro, sem torná-lo biografia. Era tudo o que queria
evitar. Foi fácil para mim trabalhar neste roteiro, porque ele não estava relacionado aos eventos, ruas e pessoas que eu me lembro da época.
- Falando de Ronald Harwood, qual foi o motivo que o levou a escolhê-lo para escrever o roteiro, considerando que ele é um dramaturgo muito conhecido?
R.P.: Precisava de alguém que soubesse como escrever este tipo de roteiro, isto é, alguém que já tivesse alguma experiência no assunto. Ronald Harwood já escreveu peças e roteiros relacionados a este período na história. Eu o admiro enormemente tanto como escritor quanto dramaturgo, principalmente por suas peças, a já mencionada O Fiel Camareiro (The Dresser) e... não me lembro do título em polonês da outra peça, Taking Sides, que foi recentemente montada em Varsóvia. É uma peça sobre Furgwegler, o condutor que foi acusado de
colaboração com os nazistas. Qual é o título mesmo? "Za i przeciw". Depois de assistir a esta peça, grande sucesso em Paris do ano passado, que me convenci de que ele era perfeito para o trabalho.
- Você disse muitas vezes que tratou a história contada em O PIANISTA de forma muito pessoal. Você planeja dar seu testemunho, aparecendo pessoalmente em alguma das cenas?
R.P.: Absolutamente não. Quero que tudo no filme pareça o mais realista possível. Fazer aparições em filmes é uma das características de Hitchcock e... isto deixa no ar uma sensação de uma brincadeira pessoal, o que quero evitar neste tema em particular. É claro que seria simbólico, mas já que sou conhecido e as pessoas costumam me reconhecer pelas ruas, provavelmente provocaria conotações enganosas. Todos logo dirão: "É o Polanski, o Polanski!", prefiro evitar.
- Qual foi o maior desafio de seu filme?
R.P.: Provavelmente todos sabem que interpretar é, de certa forma, uma profissão pouco saudável. Isso porque a verdadeira interpretação requer a vivência do papel. Quando você diz isso a pessoas que não entendem muito sobre interpretação, elas normalmente reagem com um sorriso condescendente. Mas como alguém que tem experiência nesta profissão, posso garantir que é totalmente viciante. Um bom ator, que incorpora realmente o que interpreta, vive o seu papel por 12, 14, ou, como foi no nosso caso, 16 semanas até o final, raramente sai ileso.
- Falando nisso, como você imaginou o ator para interpretar o papel principal? Que características especiais queria? E como procurou e o que o fez escolher o Sr. Adrien Brody?
R.P.: Posso lhe dizer uma coisa com certeza: nunca procurei semelhança física, porque na minha opinião, isso não importava. O que eu queria era um ator que se encaixasse no personagem que tinha em mente enquanto escrevia o roteiro com Ronald Harwood. Era muito
importante que ele não fosse uma celebridade, um ator muito conhecido, pela mesma razão que já falei antes com relação a minha participação no filme. Foi por isso que decidimos, desde o começo, tentar encontrar um ator iniciante. Mas já que o filme seria filmado na Inglaterra, precisávamos de alguém que falasse inglês fluentemente. Então, procuramos em Londres, por talentos ainda não descobertos. Fizemos o casting lá. Os organizadores ficaram surpresos
ao ver tantos candidatos; 1.400 pessoas se candidataram, dentre eles algumas mulheres, alguns chineses, alguns negros, etc. Depois dos testes, percebemos que seria difícil encontrar alguém sem nenhuma experiência; então, começamos a procurar entre os atores rofissionais. Não encontrei ninguém na Inglaterra, então resolvi ampliar a minha busca. A América era a escolha óbvia, pois como todos sabem, fala-se inglês fluentemente lá.
- Quando se lê O PIANISTA, tem-se a impressão que Szpilman se culpa por não tentar encontrar Hosenfeld, o oficial alemão. Você concorda com isso? E neste caso, há algum momento de hesitação em seu filme, enfatizando a tragédia do oficial alemão?
R.P.: Há um momento assim no filme, mas não concordo que Szpilman tenha tido algum tipo de arrependimento, ou tenha se culpado. Na minha opinião, a questão é a expressão de sua modéstia. Como sabemos, le fez tudo que pode para salvar a vida de Hosenfeld. Ele até
recorreu às autoridades comunistas e não teve sucesso, é claro. Todos sabem que era uma causa perdida. Nós também sabemos que ele foi procurado pela família de Hosenfeld e que eles tiveram contato. Creio que a família esteve em Varsóvia duas vezes. A propósito, nós também procuramos o filho de Hosenfeld em Berlim.
- Como você ajudou o seu ator a entender a realidade mostrada no filme, a atmosfera da época?
R.P.: É difícil de explicar verbalmente. Você teria de ir até o set e ver como é feito. Depende do momento, da cena e, é claro, do autor. Não quero falar demais sobre Adrien aqui, para que não vire uma troca de elogios. Ia virar o próprio clubinho de elogios mútuos. Espero que
o filme chegue em breve aos cinemas poloneses e que vocês possam assistir.
- Gostaria de perguntar sobre o impacto psicológico ao realizar este filme. Como se sentiu filmando na Polônia? Sei que é o seu primeiro filme realizado aqui depois de A Faca na Água Este fato dá um toque diferente, principalmente quando o tema central do filme está
enraizado em suas próprias experiências? Ele é totalmente diferente de "O Último Portal". Como se você preparou emocionalmente para isto?
R.P.: Não precisei me preparar, foi suficiente ler o livro para voltar imediatamente àqueles momentos, psicologicamente falando. Voltar fisicamente, sem dúvida, ajuda, o idioma polonês, os costumes poloneses, a atmosfera do país, etc. Tudo aconteceu automaticamente.
Devo admitir, entretanto, que filmar com alemães em Berlim foi muito mais fácil para nós. Ao ouvir os alemães gritarem e ao vê-los vestidos em seus uniformes, dei-me conta que não poderia filmar em outro lugar que não fosse a Polônia.
- Deve ter sido uma experiência significante filmar na Polônia depois de tantos anos. A Faca na Água marcou sua estréia, é um dos melhores filmes que eu já vi. Gostaria de lhe fazer uma pergunta técnica: você filmará em locações originais em Varsóvia, como a Avenida Niepodlegosci, na rua Noakowskiego, ou na rua Puawaska?
R.P.: Não. Infelizmente essas ruas não existem mais. Mas temos que dar um jeito. Devo dizer que, felizmente, a tecnologia atual nos permite recriar certas coisas que já não existem mais. Estou falando do uso do computador que é tão comum em outros filmes, mas no nosso,
passará despercebido. Com relação às locações originais, só iremos filmar nas ruas Kralowskie Przedmiescie e na Kozia. As outras locações serão na cidade de Praga. Devo admitir que tive muita sorte. Não sei se é a palavra certa. Em 1939, logo depois que a guerra começou, todos os homens foram para o leste por alguma razão que não sei, visto que eu, minha mãe e irmã fomos para Varsóvia. Eu sobrevivi ao bombardeio de Varsóvia e vivi aqui por duas semanas. Lembro-me de tudo muito bem. Queria recriar tudo o que me lembro de minha infância. Não me lembro da Avenida Ujazdowskie, eu me lembro de uma Varsóvia igual à Praga de hoje: ruas escuras, tráfego intenso, prédios da virada do século. Foi por isso que filmamos lá.
- Mais uma pergunta técnica que esteve presente em nossa discussão desde o princípio. Gostaria de lhe pedir que comentasse sobre a ironia da história, você filmando O PIANISTA simultaneamente ao caso Jedwabno. Poderia comentar a coincidência?
R.P.: É, como você falou, uma coincidência e é difícil para mim relacionar isto à minha própria experiência de fazer o filme na Polônia. As pessoas continuarão a descobrir outros casos, talvez
porque muitos anos se passaram daquela época e os poloneses têm, agora, uma perspectiva maior e mais objetiva da história de seu país. E mais, a geração de hoje não precisa sentir qualquer responsabilidade pelo que aconteceu naquela época.
- Por quanto tempo vocês filmarão em Varsóvia?
R.P.: Resta ainda mais 11 semanas.
- Já considerou fazer um filme sobre Abi Rozner? Sua biografia foi mostrada recentemente na TV, acho que talvez mereça um roteiro para cinema? Estou segurando um livro "Roman by Polanski". Você vai filmá-lo ou entregará o roteiro para outra pessoa?
R.P.: Quanto a primeira pergunta, nunca pensei em desenvolver este projeto. Acho que já respondi a sua segunda pergunta. Voltando a primeira, posso garantir que não. Definitivamente, não estou fazendo a minha biografia, porque não me interessa. Faço filmes e não documentários. Espero que nunca realizem um filme sobre a minha vida.
- Pode nos falar sobre sua relação com o Sr. Szpilman? Vocês conversaram sobre o filme? Quais foram suas exigências? Quais foram suas sugestões?
R.P.: O Sr. Szpilman não fez nenhuma sugestão em particular, ele apenas se limitou a dizer como estava feliz de ver seu livro virar filme e ser dirigido por mim. Eu só vi o Sr. Szpilman três vezes. A primeira vez, em Los Angeles, muito tempo atrás, durante uma de suas
visitas a América. A segunda vez foi aqui, no Clube dos Jornalistas, cerca de 12 anos atrás. Jantava com Morgenstern, Szpilman apareceu e se sentou conosco, e jantamos juntos. Depois que resolvi fazer o filme, nós nos vimos pela terceira vez; visitei Szpilman com Gene
Gutowski, tomamos chá e conversamos sobre o filme.
- Seus filmes normalmente criam a realidade, mais do que a recriam. Depois do que disse hoje, posso assumir que você tentará recriar a realidade de Szpilman e não acrescentar nada de si mesmo?
R.P.: A minha aproximação neste filme é, definitivamente, diferente. Cada assunto requer um tratamento diferente.
- Existem atores poloneses famosos no elenco de O PIANISTA. Nós os identificaremos no filme?
R.P.: Você verá atores poloneses em pequenos papéis, pois como já falei, o filme é filmado em inglês. Por isso nossa escolha ficou limitada a atores poloneses que falassem bem inglês.
- Por que você se desviou da área do grotesco, em direção aos valores fundamentais como lágrimas, medo, fuga? O que aconteceu? Spielberg passou muito tempo lhe pedindo que fizesse um filme assim?
R.P.: A decidi, subitamente, fazer este filme. Essa situação pode ser comparada a escolha de um prato no cardápio de um restaurante. Meus mais recentes filmes foram puro entretenimento e careciam de profundos valores filosóficos e sociais. O PIANISTA é, sem dúvida, um prato mais elaborado. Com relação a A Lista de Schindler, ele estava muito próximo das minhas experiências pessoais. Evito situações assim, porque sei que não faria um bom filme. Acho que Spielberg fez um grande trabalho. Ninguém mais poderia fazê-lo tão bem quanto ele. Ele contou uma história sobre uma época, pessoas e até mesmo de ruas muitos familiares para mim. Enquanto procurava as locações para O PIANISTA, fomos com o Sr. Starski a Cracóvia, já que não existem mais muitas ruas antigas em Varsóvia. Estávamos caminhando pelas ruas do antigo gueto e o que senti comprovou que não deveria filmar em
Cracóvia. Até mesmo por razões pessoais. Eu raramente visito ruas que um dia significaram muito para mim e estive em Cracóvia uma segunda vez. Se eu trabalhasse nos lugares que tiveram valores históricos e pessoais para mim, certamente eles perderiam estes valores e se
tornariam apenas um cenário para mim. O fato é que não conseguia encontrar o tema certo. Perguntaram-me diversas vezes se eu faria um filme na Polônia e sempre respondi: "Sim, e planejo fazer, só não sei quando." Eu sempre soube que queria fazer um filme na Polônia sobre a Segunda Guerra Mundial ou sobre o período pós-guerra, só não conseguia encontrar o tema certo. O livro de Szpilman foi este tema.
Divulgação Europa Filmes
Fonte: http://oscar.uai.com.br/
Holocausto-Doc lista(Yahoo)
Postado em: http://www.casaamarela.org.br/cineclube/arquivo/novembro_03/novembro_roman_polanski.htm
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