quarta-feira, 29 de julho de 2009

Uma guerra de extermínio

MEMÓRIA
Uma guerra de extermínio

A guerra civil espanhola foi um aperitivo do que iria ser a II Guerra Mundial: republicanos e franquistas sabiam que travavam uma guerra de vida ou de morte, da qual não sairiam sem a vitória total, sem esperança de negociação ou de paz

Santos Juliá (Historiador e ensaísta)

Em seu livro La Velada en Benicarló (O Velório em Benicarló), Manuel Azaña, o último presidente da República espanhola, conta um episódio terrível, recordação pessoal dos primeiros dias da guerra civil: “Certa noite, no final de agosto, estava eu à janela de meu quarto tomando ar fresco, quando ouvi três tiros que vinham do lado do cemitério. Depois, foi um silêncio total... Um pouco depois, de repente, um gemido, ao longe. Prestei atenção. Um novo gemido, mais forte, até se tornar um grito desesperado... Já quase morto, o moribundo gritava de horror... O grito vinha bem na minha direção. Procurei duas ou três pessoas do hospital e trouxe-as à janela. (“Vamos buscá-lo; talvez ainda o consigamos salvar!”) Eles se recusaram; e eu insistia; eles me impediram. Não vamos nos envolver com isso! No máximo, podemos avisar a prefeitura. Avisamos. Passou algum tempo. Pan, pan! Mais dois tiros no cemitério. Os gemidos pararam.”

Esse episódio – dois tiros de misericórdia num fuzilado agonizante – resume a ferocidade da guerra da Espanha: a impotência de alguns, a covardia de outros, a ausência de piedade dos restantes. Nesse sentido, a guerra civil foi um aperitivo, por sua brutalidade, do que iria ser a II Guerra Mundial. Republicanos e franquistas sabiam que travavam uma guerra de vida ou de morte, não podendo vencê-la sem o esmagamento total do adversário, sem esperança de negociação ou de paz. Nessas condições, a distinção entre soldados e civis, entre combatentes e não-combatentes, não passava de mera ilusão. Os espancamentos, a tortura, os estupros, os assassinatos, as execuções, os tiros de misericórdia, a política de terra arrasada e as chacinas de massa tornaram-se rotina: na Espanha, centenas de milhares de civis – num número bastante superior ao de soldados mortos na frente de combate – foram assassinados durante essa guerra.

Uma guerra implacável

Desde o início, em 1936, o conflito também ganhou contornos de uma guerra de liquidação: os ódios de classe, de religião e de nacionalidade (contra bascos, catalães e galegos) desempenharam um papel semelhante ao dos ódios raciais e das “limpezas” étnicas. Os discursos de guerra adotados pela rebelião militar e pela revolução social estigmatizavam o inimigo como um “invasor estrangeiro” (fascista ou bolchevique) que deveria ser massacrado, aniquilado. Jamais se colocou a questão – embora não tenham faltado alguns projetos, do lado republicano – de uma possível perspectiva de mediação ou de paz negociada. Quando a Grã-Bretanha, incentivada pelo presidente da República, tentou uma medição e pediu o apoio do Vaticano, um cardeal espanhol afirmou que ninguém compreendera a natureza daquela guerra, que se tratava de um conflito que só podia terminar com a vitória total de um dos antagonistas.

Os ódios de classe, de religião e de nacionalidade (contra bascos, catalães etc.) tiveram papel semelhante ao dos ódios raciais e das “limpezas” étnicas
E foi justamente o que aconteceu, com as conseqüências que conhecemos: os cadáveres à beira das estradas, as filas de fuzilados ao lado dos cemitérios e os executados jogados em valas comuns (leia, nesta edição, o artigo de José Maldavsky) superaram o número de mortos na frente de combate. Foi uma guerra implacável, na qual o inimigo não era apenas o soldado da trincheira oposta, mas também o civil que tivesse votado no adversário, ou atuado como delegado de um partido ou de um sindicato numa seção eleitoral, ou participado de uma greve, ou mesmo manifestado idéias contrárias àquelas do lado vencedor. Na Espanha, entre 1936 e 1939, na hora de decidir o destino do outro, pertencer ao lado oposto – no caso de ser civil – significava assinar sua sentença de morte.

Anistia e reconciliação

Durante o conflito – e durante a longa noite que, em seguida, se abateu sobre os vencidos – essa brutalidade feroz foi alimentada pelo mito de uma “Espanha verdadeira” (a dos militares e da Igreja católica) que lutava contra uma “anti-Espanha” (a dos “Vermelhos”). O mito de dois princípios eternos, enfrentando-se até a morte, jamais permitiu que fossem ouvidos os argumentos do lado oposto, mas, ao contrário, incentivou uma política de suspeitas, de perseguição e de assassinato. Foi uma repressão sem interrupções. Mais tarde, com o decorrer do tempo, a definição da guerra civil como “guerra contra o invasor” foi substituída, na memória coletiva, pela representação da guerra como uma “guerra fratricida”.

Essa nova memória, que serviu de base moral para a assinatura dos acordos, nas décadas de 60 e de 70, entre as forças políticas de oposição, os dirigentes políticos exilados e os vários grupos dissidentes do franquismo, implicava uma nova visão da história que privilegiasse os princípios do perdão e da reconciliação, ao invés dos da vingança, das represálias e do extermínio. A memória da guerra como guerra fratricida tornou possível uma política de anistia e reconciliação. E impôs um olhar de compaixão e de perdão para com o adversário.

Um ato de liberdade absoluta

Um cardeal espanhol afirmou que ninguém compreendera aquela guerra, que só podia terminar com a vitória total de um dos antagonistas

Apesar dos milhares de livros escritos sobre esse conflito pavoroso, na Espanha como no exterior, faltava ao discurso e à memória da guerra uma concretização literária. E é aí que entra Javier Cercas com seu formidável romance-reportagem Les Soldats de Salamine (leia, nesta edição, o artigo de Albert Bensoussan). Um episódio típico das guerras de extermínio, a execução maciça de prisioneiros sem julgamento, atinge o paroxismo num momento de piedade, fruto do acaso. Quando o soldado que vasculha a área dá de cara com o fugitivo, olha fixamente para ele e grita para seus companheiros: “Por aqui não há ninguém!”, salvando-lhe a vida. O que ele faz é recusar a fatalidade das políticas de extermínio, abrindo uma brecha para a piedade. Esse gesto abre a porta para a reconciliação, pois prova que, durante a guerra, houve momentos de perdão.

O ato desse soldado, membro anônimo de um pelotão de fuzilamento, se deve exclusivamente à sua vontade. Já o grito de agonia em La Velada en Benicarló reflete o que se estaria passando em Madri ou em Barcelona, assim como em Sevilha ou em Pamplona, durante o verão de 1936. É o que deveria ter ocorrido com o fugitivo surpreendido em seu esconderijo: Pan, pan!... e adeus, Rafael Sánchez Mazas.

Mas isso não aconteceu. Num ato de liberdade absoluta, ou talvez de cansaço diante de tantas mortes, dessa vez, o soldado não atirou, não alertou seus companheiros. Olhou-o nos olhos e fez meia-volta. E saiu de cena.

(Trad.: Jô Amado)

Fonte: Le Monde
http://diplo.uol.com.br/2003-01,a538

4 comentários:

Diogo disse...

Nenhuma guerra começa sem que haja poderosos interesses por trás. A população de um país não começa uma guerra fraticida por moto próprio.

Roberto disse...

"Nenhuma guerra começa sem que haja poderosos interesses por trás. A população de um país não começa uma guerra fraticida por moto próprio."

E havia interesses poderosos à época que os "revis" por vezes ignoram, como o anticomunismo virulento dos fascistas e da direita da época, e vice versa(o ódio dos comunistas pelos fascistas).

É algo que pelo visto parece não fazer muito sentido nesse "mundinho" "pós-moderno" internético, mas até o fim da URSS o mundo era bem dividido entre bloco socialista e capitalista e ninguém se impressionava 'tanto' com a rivalidade visceral dos lados opostos da contenda até porque todos sabiam e sabem(tirando disso os moonbats) que não é e nunca se tratou de nenhuma visão esclerosada que abunda.

Na internet abundam os sites esdrúxulos de "teorias de conspiração" pra "explicar tudo" no mundo através de uma "visão mágica" e apocalíptica, como se quisessem ocupar o vácuo de poder e histórico deixado pela União Soviética com "histórias alternativas" dando a entender ou omitindo(ou passando por cima), falsamente, que a mesma não exerceu tanto poder no mundo.

Roberto disse...

Pros que ignoram a rivalidade entre fascistas e socialistas(ou pra quem quiser simplificar, e só quiser chamar de esquerda, o que é meio impreciso pois os liberais ficariam de fora de todo esse embate), fica difícil compreender adequadamente qualquer episódio da História do séc. XX, principalmente os travados após a Revolução Russa.

Parace algo meio óbvio, mas noto que esse pessoal que só passou a saber que política existe após o contato com a internet, falar de URSS é algo que costuma não fazer "muito sentido", rs.

As imagens abaixo falam por si, ainda bem que há o youtube e gente que põe esses vídeos históricos nele como meio informativo, imagens que eram comuns pra muita gente em 1984 mas que se alguém fosse contar que era assim pro pessoal "internerd", que só pegou a ascensão dos EUA como superpotência, acho que não entenderiam perfeitamente a coisa.

O mundo era assim em 1984:
Soviet National Anthem. Red Square (1984) - Hino soviético, parada militar, Praça Vermelha, 1984

Roberto disse...

Do lado norte-americano, imagens de 1984, hino dos EUA(Olimpíadas de 1984 em Los Angeles foram boicotadas pelo bloco socialista, a de 1980 em Moscou foi boicotada pelos EUA e outros países):
University of Michigan Men's Glee Club at 1984 World Series

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...