quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Os campos de internação do sul da França (Holocausto)

Os campos de internação do sul da França
Da exclusão ao extermínio


Na foto: Os campos de internação do sul da França
Löw e Bodek “Toujours la même chose”. Lavis. Camp de Gurs, 1940

Que a prática da xenofobia, da discriminação e da exclusão podem, sob certas condições, conduzir ao extermínio do outro é uma afirmação não só de ordem especulativa senão uma das mais duras lições do século XX. Um índice revelador de tal escalada que foi da “exclusão” até a “eliminação” massiva da população considerada indesejável é provido pelas transformações sofridas pelos campos de reclusão do sul da França. Efetivamente, estes locais destinados em princípio a serem centros de refugiados, especialmente de espanhóis republicanos e alemães social-democratas e comunistas, transformariam-se, no curso da guerra, de campos de deportação, à antessala dos centros de extermínio no centro da Europa.

A questão assume um viés particularmente espinhoso: aqueles centros de detenção foram localizados antes da chegada do governo pró-alemão de Vichy, precisamente foram construídas durante o período da República, sob o governo de Daladier em 1938. Esta nota singular dos campos do sul da França, o fato que remontam suas origens ao período republicano, os tem investido de caráter problemático que alcançam o coração da mesma memória histórica francesa. Contudo, nas últimas décadas, tem-se podido assistir a relevantes expressões por voltar-se sobre os passos daquele ignominioso lastro que nasceu durante a República. Uma das maiores expressões de retorno sobre o cenário dos campos do sul da França, anos depois do massacre, foi empreendida pela Biblioteca Municipal de Toulouse - fisicamente próxima a área onde se localizavam aqueles campos - sob a iniciativa e direção de Monique-Lise Cohen. De fato, a Biblioteca Municipal de Toulouse organizou diversas amostras sobre o antissemitismo no sul da França.

A abjeta lógica - a que vai da segregação ao extermínio - que testemunham estes campos, aquela que os levou a operar como centros de internação para estrangeiros e a chegar a serem campos de morte, é digno de uma revisão sobre sua existência.

Um traço singular no processo de deportação no sul da França concerne a anterioridade dos campos de internação referente ao governo de Vichy e a ocupação alemã. Mais precisamente, a origem destes campos remonta ao período da República, sob o governo de Daladier, em 1938. Esta “iniciativa” será herdada pelo governo pró-alemão de Vichy transformando o caráter e fim dos campos. Revela-se assim uma certa continuidade entra a obra do governo Republicano e o governo de Vichy sustentada, apesar de seus contrastes, no fino fio da xenofobia e da discriminação. Aqueles campos de refugiados destinados a comunistas, republicanos espanhóis e social-democratas alemães, converteram-se a partir de novembro-dezembro de 1940 em campos de judeus.

Na foto: Chegada dos refugiados espanhóis a França.
L’Illustration, 11 de fevereiro de 1939.

Com exatidão, os campos do sul da França nascem com o decreto-lei de 12 de novembro de 1938 do governo de Daladier. Aquele decreto já fazia referência aos “estrangeiros indesejáveis” um termo que evocava uma lei de 1849 que previa a expulsão de todos os estrangeiros julgados perigosos. O contexto destas medidas remetiam diretamente, durante este período, aos acontecimentos que por aqueles anos eram vividos no território espanhol, em especial Barcelona e outras zonas da Espanha próximas a França. Durante o mês de janeiro de 1939 um contingente numeroso de republicanos espanhóis, intimidados ante o avanço franquista, se dirigiam até a fronteira francesa.

Entre o 26 de janeiro - a um dia da queda de Barcelona - e o 9 de fevereiro - quando os nacionalistas fecharam definitivamente a fronteira catalã -, mais de 500.000 espanhóis, primeiro civis e militares feridos e depois os soldados republicanos, passaram pela aduana de Perthus. O primeiro “centro especial” destinado a internação de refugiados foi instalado por decreto em 21 de janeiro de 1939 em Rieucros perto de Mende(Lozère). Em pouco tempo esta “designação de residência” se tornaria em “internação administrativa”. Pouco depois, entre março e abril de 1939 se situam seis centros nas periferias dos Pirineus Orientais para o internamento de milicianos: em Bram(Aude) reservado aos anciãos; Agde (Hérault) e Riversaltes (Pirineus-Orientais)destinado aos catalães; Sepfonds (Tarn-et-Garonne) e Le Vernet (Ariège)para os trabalhadores e Gurs (Basses Pyrénées)onde esteve internada Hannah Arendt. Estes dois últimos centros foram os campos franceses mais importantes e funcionaram até 1944. Particularmente o campo de Le Vernet - onde permaneceu o escritor e ensaísta Arthur Koestler - teria como nota própria a ser “campo repressivo” onde deveriam ficar presos os “indivíduos perigosos para a ordem pública e a segurança nacional”, em geral comunistas e dirigentes das Brigadas Internacionais.

O destino dos internados nos campos do sul da França sofreria rapidamente as consequências das cada vez mais estreitas relações do governo de Vichy com o regime nazi. Seguindo os termos do tratado concluído em 22 de junho, o regime de Vichy entregou, na noite de 8 de fevereiro de 1941, algo em torno de vinte alemães antinazis reclusos nos campos para as autoridades do Reich. Entre estes alemães estavam os prestigiados Herschel Grynspan, Rudolf Hilferding e Rudolf Breitscheid, morto num campo nazi em 1944.

Pouco a pouco, os campos foram afetados pela coloratura particular das políticas antissemitas que impunham a aproximação do governo de Vichy ao regime nazi. Em 2 de outubro de 1940 o prefeito de Haute Garonne ordena que os ‘israelitas franceses sem recursos’ se dirijam ao campo de Clairfont. Sem nenhuma pressão alemã, Vichy estabeleceu uma discriminação jurídica que repousava sobre o postulado racial. O propósito do governo de Vichy era “limitar a influência judia” por uma série de interdições profissionais. Numa declaração promulgada em 18 de outubro o Conselho de Ministros adaptava o decreto anterior de 1938 relativo ao internamento de estrangeiros ao novo parâmetro racial e a perseguição antissemita. A nova lei permitia aos prefeitos internar nos “campos especiais” o estrangeiros de “raça judia”. A administração municipal começou, então, a revisar suas estatísticas segundo o novo critério racial. Em novembro, o prefeito de Haute Garonne indica a Vichy que os 53% dos 2000 internados de seu departamento eram da “raça judia” porcentagem que se elevaria a 70 % dos 40.000 estrangeiros internados da Zona Não-Ocupada.

A política fazia a população judia sofrer um virada crucial em outubro de 1940 quando se condena os judeus estrangeiros ao internamento e a vigilância especial em vilas distantes. O centro provincial maior, logo promovido a categoria de campo, foi o de Bouches du Rhône acerca de Aix, na carvoaria de Milles, onde foram reunidos 2.000 emigrados, entre os quais se encontrariam intelectuais de renome tais como Golo Mann, Walter Benjamin, Max Ernst e Lion Feuchtwanger que estampou num livro suas memórias do internamento sob o título de 'Diabo na França'.

Na foto: Monumento à Memoria dos deportados
(Cemitério do Campo de Noé)

Os mais notórios campos do sul da França foram Gurs, Argèles, Noé, Récébédou e Riversaltes. Vichy operou Vernet, Rieucros e a prisão de Brébant em Marselha como campo de punição. Os campos se caracterizaram, sobretudo, por suas condições de vida intoleráveis. Um informe do American Friends Service Comittee de janeiro de 1942 os chamava de locais para “esquálidos, apertados e enfermos com altas probabilidades de morrer”. André Jean-Faure, inspetor dos campos de Vichy e sem dúvida um não-crítico do regime descobriu condições chocantes nos campos. As crianças e os anciãos pereciam rapidamente entre a falta de vestimenta, o tifo e a tuberculose. Serge Klarsfeld calculou em 3000 os judeus mortos neste período.

De todos os campos da Zona Não-Ocupada, o de Gurs foi talvez o mais infame. Localizado em Basses-Pyré, sudoeste da cidade de Pau, Gurs foi apressadamente construído em 1939 como centro de detenção para 15.000 refugiados espanhóis. Durante os anos da guerra a população do campo, a maioria judeus mas também espanhóis e romenos, flutuou entre 6.000 a 29.000 pessoas. Em 1940, durante uma série de dramáticos traslados, as autoridades alemães expulsaram cerca de 7.000 judeus de Palatinado para Gurs em trens selados. Muitos daqueles que os nazis expulsaram de Baden, da Saarland e da Alsácia-Lorena hegaram a Gurs em 1940 só para aguardar a deportação em 1942. Cerca da metade dos judeus expulsos nesta operação estavam por chegar aos sessenta anos de idade(o mais velho foi um de 100 anos)e, naturalmente, não puderam sobreviver sob aquelas condições. Em novembro de 1940 uma média de oito pessoas por dia morriam no campo. Em novembro de 1943 haviam morrido 1.038 pessoas e cerca de 3900 haviam sido deportadas aos campos de morte nazi.

O campo de Riversaltes, a 20 quilômetros ao norte do povoado de Perpignan nos Pirineus Orientais, alojou cerca de 9.000 pessoas, a maioria judeus, incluindo até 3.000 crianças. Riversaltes abriu em 1941 para ‘atender’ o cada vez mais crescente número de internos judeus.

Até Riversaltes, foram orientadas uma série de esforços de diversas organizações judias para aliviar as penúrias dos que ali se encontravam: o rabino René Hirschler, capelão geral para os campos, intentou manter uma quantidade módica de vida cultural e religiosa judia para os prisioneiros, a Comissão Nîmes, um grupo de ajuda combinado, trabalhou para levar diversas formas de assistência as mães e crianças internados. As condições alimentares e de vestimenta em Riversaltes eram de tal grau de indigência que em 1942 o American Friends Service Comittee computava uma morte diária com maior incidência entre as crianças.

O campo de Noé com a metade de sua população judia e a outra dividida entre alemães e espanhóis foi outro campo de detenção onde os internos sofreram iguais condições inumanas durante sua permanência.

Entre os campos mais cruéis se encontra aquele de Le Vernet no que estaria internado o grande escritor Arthur Koestler junto a uma população que chegaria aos 3000 internos. Daquela população cerca de um quarto eram membros das Brigadas Internacionais e o resto judeus. Koestler pôde finalmente evadir-se, em 1940, mas o caráter de terror do campo ficaria bem retratado em seu livro de memórias 'A escória da terra'.

Como assinalamos mais acima estes campos sofreram pouco a pouco uma importante mudança de status. No começo entre 1939 e 1940, a maior parte deles eram campos para “estrangeiros perigosos” que persistiam como um corpo estranho à democracia, sendo sua existência amplamente debatida na câmara de deputados e na imprensa, sobretudo pelos diários de esquerda L’Humanite e o Populaire que em fevereiro de 1939 denunciavam a existência de “campos de concentração”. Mas a partir de 1942 os campos do sul da França, até esse momento herança assumida bem que mal pelo Estado francês, tornaram-se instrumentos naturais da política repressiva de Vichy.

Já em janeiro de 1940, 13.000 espanhóis haviam sido deportados desde os campos do sul até o campo nazi de Mauthausen onde pereceriam em número de 5.000.

Este caminho que recorreram os campos do sul da França, caminho impensado por aqueles a que na democracia os criaram seguramente sem imaginar sua transformação posterior, confrontam-nos com a periculosidade do gesto segregacionista ou xenófobo ainda quando se queira que este seja contido dentro das margens da lei. A sutil pátina que separa a exclusão do extermínio pode ser franqueada sob certas circunstâncias, certas mas não excepcionais circunstâncias segundo nos demonstra o século que deixamos."

Pablo M. Dreizik
Os campos de internação do sul da França.

Fonte: Fundación Memoria del Holocausto
Texto original(espanhol): http://www.fmh.org.ar/revista/18/delaex.htm
Tradução: Roberto Lucena

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