GENOCÍDIO DOS ROMA NO HOLOCAUSTO
por Ian Hancock
Os Roma, muito comumente, mas de forma equivocada, chamados de ciganos, foram a outra única população, ao lado dos judeus, que foram atingidos pelo extermínio racial na Solução Final. Chegaram à Europa por volta do ano 1300, vindos da Índia, região a qual eles haviam deixado cerca de três séculos antes como uma população militar de origem mestiça, não-ariana, reunidos para lutar contra os invasores muçulmanos. Sua entrada na Europa, via Império Bizantino, foi também resultado direto da expansão islâmica.
Como um povo asiático não-cristão, não-branco, e sem possuir nenhum território na Europa, os Roma eram forasteiros em todos os países. A cultura Romani também forçava - como ainda faz - que houvesse uma distância social entre os Roma e os gadjé (não-Romas), e assim sua segregação era reforçada.
O povo Romani na Alemanha chamava-se a si mesmo de Sinti, enquanto zigeuner é o equivalente alemão de "cigano". Quando os nazistas chegaram ao poder em 1933, as leis alemãs contra eles já estavam em vigor há centenas de anos. A perseguição do povo Romani começou quase tão cedo quando o primeiro Roma chegou pela primeira vez em terras de língua alemã, pois como estrangeiros, estavam quebrando muitas das leis Hanseáticas que tornava crime punível por lei alguém não ter um domicílio fixo ou emprego, e não ser cadastrado como contribuinte de impostos. Eles também foram acusados de serem espiões para os muçulmanos, a quem poucos alemães conheciam, mas de quem haviam ouvido muitas histórias assustadoras. A tez escura e o comportamento não-cristão e a aparência dos Roma simplesmente se adicionavam ao preconceito que se tornou crescente. Em 1721 o Imperador Carlos VI ordenou o extermínio de todos os Roma em qualquer lugar, não era ilegal matar um Rom, e houve algumas vezes "caçadas de ciganos", nas quais os Roma foram perseguidos e mortos como animais selvagens. Florestas foram incendiadas para expulsar qualquer Roma que poderia ter se escondido lá.
Pelo século 19, estudiosos na Alemanha e no resto da Europa estavam escrevendo sobre os Roma e os judeus como sendo seres inferiores e "o excremento da humanidade". Isto se cristalizou especificamente em atitudes racistas nos escritos de Knox, Tetzner, Gobineau e outros. Pelos anos de 1880, o chanceler von Bismarck reforçou algumas das leis discriminatórias, afirmando que os Roma fossem tratados "com especial severidade" se detidos. Por volta de 1890, uma conferência sobre "a escória cigana" foi realizada na Suábia, na qual os militares adquiriram o poder de manter os Roma em circulação. Na obra publicada em 1899 de Houston Chamberlaine, "Os Fundamentos do Século 19", ele defendia a construção de uma "recém formada ... e ... especialmente destacada raça ariana". Isto usado para justificar a promoção de ideias sobre a superioridade racial alemã e para qualquer ação opressora tomadas contra membros de populações "inferiores". Naquele mesmo ano, a "Agência de Informação Cigana" foi criado em Munique sob a direção de Alfred Dillmann, que começou a catalogação de informações sobre todos os Roma em todas as terras alemãs. Os resultados disto foram publicados em 1905 no Zigeuner-Buch de Dillmann, que lançou as bases para o que viria a acontecer com os Roma no Holocausto, 35 anos depois.
O Zigeuner-Buch, com cerca de 350 páginas, era composto de três partes: primeiro, uma introdução afirmando que os Roma eram uma "praga" e uma "ameaça" a qual a população alemã tinha que se defender contra o uso de "castigos cruéis", e que advertia sobre os perigos da mistura de genes Romani e alemães. A segunda parte foi um registro dos Romas conhecidos, dando detalhes genealógicos e registros criminais caso houvesse. E a terceira parte era uma coleção de fotografias dessas mesmas pessoas. A "Mistura de raças" de Dillmann, mais tarde, tornou-se uma parte central das Leis de Nuremberg na Alemanha nazista.
Em 1920, Karl Binding e Alfred Hoche publicaram seu livro "A erradicação das vidas dos indignos da vida", usando uma frase primeiramente cunhada por Richard Liebich com específica referência aos Roma quase 60 anos antes. Entre os grupos que eles consideravam "indignos de viver" estavam os "doentes mentais sem cura", e foi este grupo que eles consideravam que pertenciam os ciganos. A perceptível "criminalidade" Romani era vista como uma doença genética hereditária, embora não fosse levado em conta os séculos de exclusão dos ciganos da sociedade alemã, que fizeram do roubo de subsistência uma necessidade para sobrevivência. Uma lei incorporando a mesma frase foi posta em prática apenas quatro meses depois de Hitler se tornar chanceler do Terceiro Reich.
Durante a década de 1920, a opressão legal aos Roma na Alemanha intensificou-se consideravelmente, apesar dos estatutos de igualdade da República de Weimar. Em 1920 eles foram proibidos de entrar em parques e banheiros públicos; em 1925 uma conferência sobre "A Questão Cigana" foi realizado, e resultou em leis que pediam que os desempregados Roma fossem enviados para campos de trabalho "por razões de segurança pública", e que todos os Roma fossem registrados na polícia. Depois de 1927, todos os ciganos, mesmo as crianças, tinha que carregar cartões de identificação, tendo impressões digitais e fotografias. Em 1929, um Escritório Central de Luta Contra a ciganos na Alemanha foi criado em Munique, e em 1933, apenas dez dias antes dos nazistas chegarem ao poder, funcionários do governo em Burgenland pediram a retirada de todos os direitos civis do povo Romani.
Em setembro de 1935, os Roma tornaram-se sujeitos às restrições da Lei de Nuremberg para a Proteção do Sangue Alemão e Honra, que proibia o casamento entre alemães e "não-arianos", especificamente judeus, ciganos e pessoas de ascendência africana(negras). Em 1937, a Lei de Cidadania Nacional relegava os Roma e judeus à condição de cidadãos de segunda classe, privando-os de seus direitos civis. Também em 1937, Heinrich Himmler emitiu um decreto intitulado "A luta contra a praga cigana", que reiterava que os ciganos de sangue misturado eram os mais propensos a se envolver em atividades criminosas, e que solicitava que todas as informações sobre os Roma fossem enviadas, dos departamentos da polícia regional, para o Escritório Central Reich.
Entre 12 de junho e 18 de junho de 1938, a semana de "limpeza" dos ciganos ocorreu em toda a Alemanha que, como Kristallnacht(Noite dos Cristais) para o povo judeu no mesmo ano, marcou o começo do fim. Também em 1938, a primeira referência à "Solução Final da Questão Cigana" apareceu, em um documento assinado por Himmler em 08 de dezembro daquele ano.
Em janeiro de 1940, a primeira ação do genocídio em massa do Holocausto ocorreu quando 250 crianças ciganas foram assassinadas em Buchenwald, onde foram usadas como cobaias para testar a eficácia dos cristais de Zyklon-B, usado mais tarde nas câmaras de gás. Em junho de 1940, Hitler ordenou a liquidação de "todos os judeus, ciganos e comunistas funcionários políticos em toda a União Soviética."
Em julho, 31 de 1941, Heydrich, arquiteto-chefe dos detalhes da Solução Final, emitiu sua ordem para o Einsatzkommandos, para "matar todos os judeus, ciganos e doentes mentais." Poucos dias depois, Himmler emitiu seus critérios de avaliação biológica e racial, que determinavam que histórico familiar dos Roma deveriam ser investigados por três gerações. Em 16 de dezembro desse mesmo ano, Himmler emitiu uma ordem para que todos os Roma restantes Roma na Europa fossem deportados para Auschwitz-Birkenau para o extermínio. Em 24 de dezembro, Lohse deu a ordem adicional para que "aos ciganos deva ser dado o mesmo tratamento dos judeus". Em uma reunião do partido em 14 de setembro de 1942, o ministro da Justiça Otto Thierack anunciou que "judeus e ciganos devem ser incondicionalmente exterminados." Em 01 de agosto de 1944, quatro mil ciganos foram gaseados e cremados em uma única ação em Auschwitz-Birkenau, o que é lembrado como Zigeunernacht.
Determinar a percentagem ou número de Roma que morreram no Holocausto (chamado de Porrajmos, "paw-RYE-mos" em Romani, uma palavra que significa "Devorando a") não é fácil. Grande parte da documentação nazi ainda precisa ser analisada, e muitos assassinatos não foram registrados, uma vez que ocorreram nos campos e florestas onde os Roma foram apreendidos. Não há estimativa precisa nem para a população Romani pré-guerra na Europa, embora o censo oficial do Partido Nazista de 1939 estimava em cerca de dois milhões, que é sem dúvida, uma sub-representação. A estimativa mais recente (1997) a partir do Instituto de Pesquisa do Museu Memorial do Holocausto dos EUA, em Washington, coloca o número de vidas perdidas pelos Romanis em 1945, "entre meio milhão e um milhão e meio." Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o registro da Alemanha em relação ao povo Romani foi menos que exemplar. Ninguém foi chamado para testemunhar em favor das vítimas Romanis nos Julgamentos de Nuremberg, e nenhuma reparação dos crimes de guerra foi pagas aos ciganos como um povo. Hoje, a atividade neonazista na Alemanha faz dos Roma o seu principal alvo de violência racial.
Os Estados Unidos também não fez nada para ajudar os Roma durante ou após o Holocausto. Apenas dez por cento das centenas de milhões de dólares disponibilizados pela Organização das Nações Unidas(ONU) para os sobreviventes, os quais foram dadas a responsabilidade ao governo dos EUA de desembolso, foi reservada para não-judeus, e nada disto foi direcionado aos sobreviventes Romanis, cujo número hoje é de cerca de 5.000. Roma que não foram mencionados em qualquer documentação do Conselho de Refugiados de Guerra dos EUA, o qual foi capaz de salvar a vida de mais de 200.000 judeus. Quando o Conselho do Museu Memorial do Holocausto dos EUA (USHMM) foi criado em 1980, nenhum Roma foi convidado a participar, e ele tem hoje apenas um membro hoje Romani. Os Roma são apenas uma parte deste Museu até o momento, estando localizados em um canto no terceiro andar reservado para as "outras vítimas".
Leitura adicional
Hancock, Ian, 1989. "Gypsy history in Germany and neighboring lands: A chronology leading to the Holocaust and beyond," in David Crowe and John Kolsti, eds., The Gypsies of Eastern Europe , Armonk: EC Sharpe, pp. 11-30.
Kenrick, Donald, and Grattan Puxon, 1972. The Destiny of Europe's Gypsies . London: Sussex University Press.
Excerto da Encyclopedia of Genocide (1997) de Israel W. Charny (ed.)
Reproduzido por Patrin Web Journal com permissão do autor, Ian Hancock.
Publicado em 01 de março de 1997.
Fonte: The Patrin Web Journal (trecho do livro Encyclopedia of Genocide; editor: Israel Charny)
http://reocities.com/paris/5121/genocide.htm
Texto: Ian Hancock
Tradução: Roberto Lucena
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terça-feira, 17 de janeiro de 2012
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Holocausto cigano: ontem e hoje
Familia Aristich-Marcovich, Chile 1918 |
1710: século “das luzes e da razão”. Um edito ordena que os ciganos adultos de Praga sejam enforcados sem julgamento. Os jovens e as mulheres são mutilados. Na Bohemia, que lhes sejam cortada a orelha esquerda. Na Morávia, a orelha direita.
1899: clímax “da modernidade e do progresso”. A polícia da Baviera cria a Seção Especial de “assuntos ciganos”. Em 1929, a seção foi elevada à categoria de Central Nacional, e trasladada para Munique. Em 1937, se instala em Berlim. Quatro anos depois, meio milhão de ciganos morrem nos campos de concentração da Europa central e do leste.
2010: fim das “metanarrativas” e das “ideologias” (sic). Na Itália, (onde nasceu a “razão do Estado”), e na França (sede mundial da reunião intelectual), os gabinetes em exercício de ambos os governos (com forte apoio popular, ou seja, “democráticos”), ficham e deportam milhares de ciganos para a Bulgária e Romênia.
A tragédia dos Roma começou nos Balcãs. Qual drama europeu não começou nos Balcãs? Em meados do século XV, o príncipe Vlad Dracul (o Demônio, um dos heróis nacionais na resistência contra os turcos), regressou de uma batalha devedora na Bulgária com 12 mil escravos ciganos. Por certo... não era cigano o misterioso cocheiro do conde Drácula?
O doutor Hans Globke, um dos redatores das leis de Nuremberg sobre a classificação da população alemã (1935), declarou: os ciganos são de sangue estrangeiro. Estrangeiros de onde? Sem poder negar que “cientificamente” eram de origem ária, o professor Hans F. Guenther os classificou numa categoria à parte: Rassengemische (mistura indeterminada).
Em sua tese de doutorado, Eva Justin (assistente do doutor Robert Ritter, da seção de investigações raciais do Ministério da Saúde alemã), afirmava que o sangue cigano “era enormemente perigoso para a pureza da raça alemã”. E um tal doutor Portschy enviou um memorando a Hitler sugerindo-lhe que eles sejam submetidos a trabalhos forçados e a esterilização em massa, porque punham em perigo “o sangue puro do campesinato alemão”.
Qualificados como “criminosos inveterados”, os ciganos começaram a ser determinados em massa, e a partir de 1938 os internaram em blocos especiais nos campos de Buchenwald, Mauthausen, Gusen, Dautmergen, Natzweiler e Flossenburg.
Num campo em sua propriedade de Ravensbruck, Heinrich Himmler, chefe da Gestapo (SS), criou um espaço para sacrificar as mulheres ciganas que eram submetidas a experimentos médicos. Esterilizaram 120 crianças ciganas. No hospital Dusseldorf-Lierenfeld esterilizou-se as ciganas casadas com não ciganos.
Mais milhares de ciganos foram deportados da Bélgica, Holanda e França ao campo polonês de Auschwitz. Em suas Memórias, Rudolf Hoess (comandante de Auschwitz), conta que entre os deportados ciganos havia velhos quase centenários, mulheres grávidas e um grande número de crianças.
No gueto de Lödz (Polônia), as condições ficaram tão extremas, que nenhum dos 5 mil ciganos sobreviveu. Trinta mil mais morreram nos campos poloneses de Belzec, Treblinka, Sobibor e Majdanek.
Durante a invasão alemã à União Soviética (Ucrânia, Crimeia e os países bálticos) os nazis fuzilaram em Simferopol (Ucrânia) 800 homens, mulheres e crianças na noite de Natal de 1941. Na Iugoslávia, executava-se por igual a ciganos e judeus no bosque de Jajnice. Os campesinos recordam todavia dos gritos das crianças levadas aos lugares de execução.
Segundo consta nos arquivos dos Einsatzgruppen (patrulhas móveis de extermínio do exército alemão), haviam sido assassinados 300 mil ciganos na URSS, e a 28 mil na Iugoslávia. O historiador austríaco Raul Hilberg, estima que antes da guerra viviam na Alemanha cerca de 34 mil ciganos. Ignora-se o número de sobreviventes.
Nos campos de extermínio, só o amor dos ciganos pela música foi às vezes um consolo. Em Auschwitz, famintos e cheios de piolhos, juntavam-se para tocar e alentavam as crianças para dançar. Mas também era legendária a coragem dos guerrilheiros ciganos que militavam na resistência polonesa na região de Nieswiez.
“Também eu tinha / uma grande família / foi assassinada pela Legião Negra / homens e mulheres foram esquartejados / entre eles também pequenas crianças” [versos do hino Roma, Gelem, gelem (Caminhei, caminhei)].
As exigências de assimilação, expulsão ou eliminação (não necessariamente nessa ordem) justificariam a afeição dos povos Roma pelos talismãs. Os ciganos levam três nomes: um para os documentos de identidade do país onde vivem; outro para a comunidade, e um terceiro que a mãe canta durante meses ao ouvido do recém-nascido.
Esse nome, secreto, servirá como talismã para protegê-lo contra todo o mal.
DEPOIS DA GUERRA
Depois da guerra, os países aliados dissolveram o Estado nazi alemão e suas lideranças foram julgadas por crimes contra a humanidade (Nuremberg, 1945-1946). Em inícios de 1950, quando começou a negociação das indenizações pelo Holocausto, o novo Estado alemão estimou que só os judeus tinham direito a elas.
Sem organizações políticas que os defendessem, os povos Roma(ciganos) foram ignorados e excluídos. O governo democrata-cristão de Konrad Adenauer afirmou que as medidas de extermínio tomadas contra os ciganos antes de 1943, eram “políticas legítimas do Estado”. Mas os sobreviventes a este ano tampouco cobraram um centavo.
A polícia criminal da Bavária ficou como responsável dos arquivos do doutor Robert Ritter, o especialista nazi sobre os Roma que não foi condenado. Ritter retornou à atividade acadêmica e em 1951 se suicidou. Recentemente em 1982, o chanceler social-cristão Helmut Kohl reconheceu o genocídio dos Roma. Em tempo: a maioria que houvera tido direito à restituição já havia morrido.
Contudo, a ira da Suíça contra os yenishes (assim chamam os ciganos no país de Heidi) foi mais... discreto? Durante cerca de meio século (desde 1926), com ajuda da polícia e do clero, a Obra de Assistência às Crianças de Rua, da muito respeitável Fundação Pró-Juventude, arrancou de suas famílias mais de 600 crianças ciganas.
O doutor Alfred Siegfried (1890-1972), diretor e fundador da obra, foi um psicopata ferozmente decidido a “vencer o mal do nomadismo”. Num informe sobre suas atividades (1964), Siegfred afirmou que “...o nomadismo, como algumas enfermidades perigosas, é transmitido principalmente pelas mulheres... todos os ciganos são maus, mentem, roubam...”.
O financiamento oficial se manteve até 1967, e em 1973 a “obra” se dissolveu. Mas, de acordo com uma lei de 1987, tudo o que foi relativo a seus experimentos médicos com crianças ciganas poderia ser revisado dentro de... cem anos. Em 1996, a Confederação Helvética(Suíça) reconheceu sua responsabilidade moral, política e financeira acerca da Pró-Juventude encarregada de “proteger as crianças ameaçadas de abandono e vagabundagem”.
Mais de três quartos da população mundial de ciganos (12 a 14 milhões), vive nos países da Europa central e do leste. Mas só na Iugoslávia de Tito os Roma conseguiram ser reconhecidos como uma minoria com os mesmos direitos de croatas, albaneses e macedônios. Não obstante, depois do “reordenamento balcânico” que teve lugar no decênio de 1990, dez mil ciganos bósnios se refugiaram em Berlim.
Na Romênia os ciganos tiveram que sobreviver à ditadura de Ceausescu. O “socialismo real” reforçou os tenebrosos orfanatos que funcionavam desde a época da monarquia, e neles colocou a milhares de crianças Roma. Ceausescu caiu e o “livre mercado” foi mais duro ainda. As tendas de alguns ciganos, que tiveram sucessos econômicos com a liberalização da economia, foram saqueadas.
A deportação em massa de ciganos para Romênia e Bulgária, ordenada pelo governo do presidente francês, Nicolas Sarkozy, resulta particularmente perversa. Segundo país mais pobre da União Europeia, a população da Romênia é sumamente hostil aos 2 milhões de ciganos que ali vivem, e além disso mais de um governo que para cumprir com o FMI acaba de baixar 25 por cento o salário dos funcionários e subir o IVA a 24 por cento.
Em dias passados, o presidente romeno, Traian Basescu, chamou de “cigana asquerosa” a uma jornalista e o chanceler Teodor Baconschi declarou em fevereiro que “…algumas comunidades romenas têm problemas psicológicos (sic) relacionados com a delinquência, especialmente as comunidades ciganas”.
A situação dos ciganos na antiga Tchecoslováquia não levou à fúria como a romena. Até o momento da participação (1992), eram cidadãos. Depois, nem tchecos nem eslovacos os reconheceram como tais, apesar de haver vivido durante gerações no país.
Em julho de 1998, um cigano foi atacado e apunhalado por um skinhead(neonazi) em Pisek, pequena cidade ao sul da Boêmia checa. Pisek está situada a poucos quilômetros do campo de concentração de Lety, estabelecido pelos checos e só para ciganos, em tempos da ocupação alemã. E de Lety, eles eram enviados aos campos nazis de extermínio.
Por sua parte, os vizinhos da cidade eslovaca de Michalovce acabam de concluir um muro de 500 metros para evitar a passagem dos ciganos que habitam uma aldeia próxima. A obra recebeu o apoio das autoridades. Em finais de 2009, obras similares isolaram os ciganos nas cidades de Ostrovany, Secovec, Lomnicka e Trebisov.
E desta maneira o holocausto silencioso e consentido pelos cruzados da União Europeia, os meios de comunicação da “aldeia global” conseguem o que queriam. No 30 de agosto passado, a CNN informou de um assassino que matou oito pessoas, ferindo a mais 14 na Bratislava, capital de Eslováquia. Em parte alguma da notícia a CNN esclareceu que todas as vítimas eram ciganos.
Da civilização versus a barbárie, a barbárie da civilização.
Por José Steinsleger
Jornalista argentino-mexicano, colunista de La Jornada
Fonte: http://www.surysur.net/
Fotografia: Familia Aristich-Marcovich ao chegar ao Chile em 1918.
Mais informação sobre ciganos no Chile:
Ciganos: 1.000 anos de viagens no corpo
http://www.gitanoschile.cl/
gitanosdechile.blogspot.com
Ciganos do Chile
Fonte: La Jornada/El Ciudadano
http://www.elciudadano.cl/2010/09/09/el-holocausto-gitano-ayer-y-hoy/
Tradução: Roberto Lucena
Observação: quando fui traduzir o texto notei que já havia algumas traduções de parte do texto publicadas pela rede. Achei-as quando procurei pela tradução correta dos nomes de lugares que aparecem no texto(como "Simferopol"), por isso que esta tradução não é uma cópia de outras. Todas as traduções colocadas no blog, traduzidas pelos postantes, não são cópias. Sempre que houver ou há uma cópia de algum texto ou tradução será citada a fonte de origem, sendo que esta tradução é do texto completo. Eu o havia guardado pra traduzir depois e acabou não dando pra postar rápido, por isso que só o estou publicando agora.
Texto revisado em: 09.04.2014
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domingo, 20 de janeiro de 2008
"Sobre Viver" traz relatos de sobreviventes
"Sobre Viver" traz relatos de sobreviventes do Holocausto
(Foto)Memorial do Holocausto, em Berlim
Pesquisadora brasileira Sofia Débora Levy fala em entrevista à DW-WORLD sobre pesquisa e livro acerca dos sobreviventes do Holocausto nazista que emigraram para o Rio de Janeiro.
A psicóloga brasileira Sofia Débora Levy entrevistou entre 1994 e 1996 dez sobreviventes do Holocausto. Judeus de várias nacionalidades, todos residentes no Rio de Janeiro, eles relatam a experiência da fuga do nazismo e o recomeço da vida no Brasil.
Oito das dez entrevistas realizadas por Levy foram reunidas no volume Sobre Viver – oito relatos antes, durante e depois do Holocausto por homens e mulheres acolhidos no Brasil, publicado pela editora Relume-Dumará.
À DW-WORLD.DE Levy fala da forma como conduziu as entrevistas que formam o livro de sua autoria, descreve o processo de integração dos sobreviventes após a chegada ao Brasil e ressalta a importância da história oral para a memória coletiva.
DW-WORLD – A premissa do projeto de pesquisa que conduziu à publicação do seu livro Sobre Viver foi rever criticamente o comentário difamante de que os judeus "teriam se deixado levar como gado em direção ao matadouro". Poderia falar um pouco sobre como os depoimentos que você colheu elucidam a perversão da máquina nazista e a postura das vítimas, que muitas vezes não conseguiam, à primeira vista, acreditar no que acontecia?
Levy – Minha intenção ao rever este comentário é chamar a atenção para a maneira como a história é repassada às gerações que não vivenciaram aquele momento histórico. Dizer que os judeus se deixaram levar como gado é atribuir uma posição passiva a um povo que fora estigmatizado pela ideologia vigente no totalitarismo nazi-fascista, que proibia a sua existência.
As vítimas, traumatizadas pela categorização de "não-seres", "coisificadas" ideologicamente e ameaçadas de morte a cada segundo, foram tratadas como indignas de pertencer à raça ariana, ideal de humanidade do nacional-socialismo. O absurdo de tais idéias de exclusão social em massa despertava primeiramente a reação de descrédito de que tal dimensão pudesse se concretizar, retardando tentativas de reposicionamento.
Com a gradativa deterioração social e financeira, e as chances diminutas de obter ajuda em larga escala, restava às vítimas tentar sobreviver dia a dia à morte circundante, inclusive submetendo-se às piores situações para poder chegar a ver o dia seguinte. Assim, a visão dos vagões de gado transportando milhares de seres humanos retrata a intenção das autoridades, mas não a conivência dos passageiros, como dá a entender o comentário referenciado.
DW - Sua tese de mestrado inclui dez entrevistas com sobreviventes do Holocausto, que emigraram para o Brasil. A história brasileira vive em grande parte do mito da cordialidade em relação ao imigrante. Esses entrevistados têm lembranças positivas da chegada ao Brasil ou falam da transição entre as culturas como um processo doloroso?
(Foto) Livro da autora Sofia Débora Levy
É unânime a referência ao Brasil como um país no qual os depoentes sentiram-se acolhidos. Todos relatam a boa impressão frente às belezas naturais e, sobretudo, a um país onde não havia guerra. A possibilidade de novamente pertencer a uma pátria e ter sua cidadania reconhecida e legitimada fez com que a integração à cultura brasileira fosse vivenciada com abertura e satisfação. A colaboração de entidades filantrópicas e da comunidade judaica que aqui já vivia também ajudou bastante.
DW - Os depoimentos que formam o volume Sobre Viver foram baseados no que você chama de escuta sensível, com poucas interferências do entrevistador. Poderia comentar a opção por este tipo de diálogo com os entrevistados?
Entrevistar sobreviventes com idade avançada e acompanhá-los numa retrospectiva de suas vidas, durante e depois de terem passado pelo Holocausto, não é como entrevistar uma pessoa para colher uma informação específica. Minha intenção era compreender como essas pessoas conseguiam apreender o que se passava com elas e, tendo sobrevivido, em que bases psicológicas e filosóficas conseguiram se reerguer e não sucumbir à dor.
Como psicóloga clínica, trago comigo a referência da escuta respeitosa à verdade do outro. Aliada à ótica da estruturação de coleta de dados pela técnica de "história de vida", ramo da história oral, coube a mim ouvir os relatos com atenção, de modo a conseguir trazer à tona as vivências frente às quais poderíamos nos aproximar de pessoas e não de dados, fatos, números já coletados e formatados pela história formal.
DW - Recorrer à crueldade do passado e contar traumas vividos é certamente um momento doloroso. Poderia falar sobre a reação dos entrevistados, ao serem confrontados com a própria lembrança?
À medida que o sobrevivente acessava dados dolorosos e deixava aflorar sua sensibilidade durante a entrevista, minha interferência maior fazia-se no apoio à sua possibilidade de repassar essas dores com a certeza de que estariam sendo compreendidas, e não julgadas, duvidadas, nem distorcidas.
Assim, procurei ater-me à visão de mundo (Weltanschauung) presente no relato de cada depoente, sem contrapor comparações com outras fontes, mas sim enfatizando o resgate de quem relembrava momentos em que nem podia falar, muito menos ter sua percepção legitimada por alguém.
Além disso, todos os entrevistados concordaram em registrar suas histórias de vida com a finalidade de contribuir com informações para que outros não sejam vítimas e nem algozes de atrocidades como as perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial. Este objetivo deu força para que cada um conseguisse relatar e atravessar suas dores pessoais em prol de uma contribuição social maior, além de constituir um legado para seus descendentes.
DW - A relevância da história oral ainda é pouco valorizada pela história formal, que confia mais no documento do que no depoimento e muitas vezes ignora este último. Qual é, na sua opinião, a importância do registro do testemunho pessoal para a constituição da memória coletiva?
Quando trabalhamos com a história oral e em particular com a história de vida, constituímos, com a aquiescência do depoente, um "documento pessoal", como no caso das entrevistas de Sobre Viver. Quando o depoente possuía algum documento da época, comprobatório dos dados relatados, anexamos ao seu relato. No entanto, como é comum às vítimas de grandes tragédias, na maioria das vezes os sobreviventes não portavam nenhuma prova de suas vidas durante os anos de Holocausto.
Mas o que é mais fascinante no testemunho pessoal é a aproximação da vítima para com aqueles que não estavam em condições similares. O relato traz dados em linguagem clara e acessível, mantendo a história viva, inteligível e próxima de quem as ouve ou lê. Um dos objetivos de Sobre Viver é promover essa aproximação entre depoente e leitor, mantendo a peculiaridade de cada depoente em seu modo de se expressar e descrever o seu cotidiano.
Hoje em dia, a narrativa em primeira pessoa ganha espaço tanto em textos acadêmicos quanto em romances. Os depoimentos têm despertado maior interesse por parte de pesquisadores, visando apreender o real vivido e não só o real conjeturado ou teorizado.
DW - Em seus textos, você cita a reflexão acerca do Holocausto como uma forma de pensar, num contexto social ou até mesmo filosófico, sobre as relações humanas. Em que sentido esta reflexão pode ser inserida numa análise atual das sociedades contemporâneas?
Refletir sobre o Holocausto é refletir sobre a capacidade e responsabilidade humana de ser tão mais vil ou sublime conforme a posição ética e moral de cada indivíduo. Este é um exercício sempre necessário ao aprimoramento social. O horror inimaginável e desumano foi concretizado no período nazista e, infelizmente, ainda hoje assistimos ao longo do mundo inteiro a repetição de atrocidades, apesar de não organizadas sob a mesma égide nazista.
Em nossos dias, convivemos com novas formas de banalização do mal, que cresce em escala individual e coletiva – desde a violência doméstica até o fundamentalismo que mata o diferente em nome do seu sagrado religioso. O que vemos acontecer na violência atual é o despojamento de qualquer sentimento de culpa, vergonha ou responsabilidade acerca do mal intentado e praticado; esta foi a correção que os algozes fizeram de sua posição destrutiva na Segunda Guerra: não sucumbir, nem se suicidar se o plano não teve sucesso.
(Foto)Sofia Débora Levy
Basta negar a participação, manipular as informações ainda mais e inverter os motivos de suas ações através de justificativas racionalizadas, distantes da realidade perpetrada. Além disso, havemos de considerar as crises econômicas ao longo do mundo, que aumentam a intolerância e promovem a violência como parâmetro socialmente aceito. Isso por si só já nos remete às características totalitárias.
DW - Não negar a diferença e sim fazer proveito dela como enriquecimento é certamente uma utopia nas sociedades multiculturais. As posturas frente à diversidade são, no entanto, bastante distintas na Europa e no chamado Novo Mundo. Você acredita que o Brasil pode, neste contexto, servir de exemplo a ser seguido?
Sim, se nós brasileiros conseguirmos manter a qualidade "macunaímica" da miscigenação resultando de felicidade e aceitação. Mas, infelizmente, a violência se alastra pelo Brasil, e a imagem do país ensolarado e hospitaleiro cede lugar, nas manchetes nacionais e internacionais, a um país temível, perigoso e do qual não se tem certeza de visitar e sair ileso.
Soma-se a isso a tendência colonialista de assimilarmos modelos culturais dos países desenvolvidos, inclusive suas formas de violência e de discriminação. A manutenção da imagem do país acolhedor, emocionante, integrador e rico em belezas naturais depende da prática vivida pelos seus cidadãos.
Espero que possamos resgatar essa característica já registrada historicamente no Brasil, mantendo um referencial de melhores possibilidades de convivência, revisitando esta identidade nacional como forma de combate à da intolerância, e como expressão da cultura brasileira.
(Foto)Edward Heuberger, um dos entrevistados de 'Sobre Viver', em foto ao lado de Oskar Schindler: primeiro encontro com soldados norte-americanos após a libertação e fim da Segunda Guerra, em 1945
Soraia Vilela
Fonte: Deutsche Welle(Brasil/Alemanha. 18.09.2007)
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,2781827,00.html
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,2781827_page_2,00.html
(Foto)Memorial do Holocausto, em Berlim
Pesquisadora brasileira Sofia Débora Levy fala em entrevista à DW-WORLD sobre pesquisa e livro acerca dos sobreviventes do Holocausto nazista que emigraram para o Rio de Janeiro.
A psicóloga brasileira Sofia Débora Levy entrevistou entre 1994 e 1996 dez sobreviventes do Holocausto. Judeus de várias nacionalidades, todos residentes no Rio de Janeiro, eles relatam a experiência da fuga do nazismo e o recomeço da vida no Brasil.
Oito das dez entrevistas realizadas por Levy foram reunidas no volume Sobre Viver – oito relatos antes, durante e depois do Holocausto por homens e mulheres acolhidos no Brasil, publicado pela editora Relume-Dumará.
À DW-WORLD.DE Levy fala da forma como conduziu as entrevistas que formam o livro de sua autoria, descreve o processo de integração dos sobreviventes após a chegada ao Brasil e ressalta a importância da história oral para a memória coletiva.
DW-WORLD – A premissa do projeto de pesquisa que conduziu à publicação do seu livro Sobre Viver foi rever criticamente o comentário difamante de que os judeus "teriam se deixado levar como gado em direção ao matadouro". Poderia falar um pouco sobre como os depoimentos que você colheu elucidam a perversão da máquina nazista e a postura das vítimas, que muitas vezes não conseguiam, à primeira vista, acreditar no que acontecia?
Levy – Minha intenção ao rever este comentário é chamar a atenção para a maneira como a história é repassada às gerações que não vivenciaram aquele momento histórico. Dizer que os judeus se deixaram levar como gado é atribuir uma posição passiva a um povo que fora estigmatizado pela ideologia vigente no totalitarismo nazi-fascista, que proibia a sua existência.
As vítimas, traumatizadas pela categorização de "não-seres", "coisificadas" ideologicamente e ameaçadas de morte a cada segundo, foram tratadas como indignas de pertencer à raça ariana, ideal de humanidade do nacional-socialismo. O absurdo de tais idéias de exclusão social em massa despertava primeiramente a reação de descrédito de que tal dimensão pudesse se concretizar, retardando tentativas de reposicionamento.
Com a gradativa deterioração social e financeira, e as chances diminutas de obter ajuda em larga escala, restava às vítimas tentar sobreviver dia a dia à morte circundante, inclusive submetendo-se às piores situações para poder chegar a ver o dia seguinte. Assim, a visão dos vagões de gado transportando milhares de seres humanos retrata a intenção das autoridades, mas não a conivência dos passageiros, como dá a entender o comentário referenciado.
DW - Sua tese de mestrado inclui dez entrevistas com sobreviventes do Holocausto, que emigraram para o Brasil. A história brasileira vive em grande parte do mito da cordialidade em relação ao imigrante. Esses entrevistados têm lembranças positivas da chegada ao Brasil ou falam da transição entre as culturas como um processo doloroso?
(Foto) Livro da autora Sofia Débora Levy
É unânime a referência ao Brasil como um país no qual os depoentes sentiram-se acolhidos. Todos relatam a boa impressão frente às belezas naturais e, sobretudo, a um país onde não havia guerra. A possibilidade de novamente pertencer a uma pátria e ter sua cidadania reconhecida e legitimada fez com que a integração à cultura brasileira fosse vivenciada com abertura e satisfação. A colaboração de entidades filantrópicas e da comunidade judaica que aqui já vivia também ajudou bastante.
DW - Os depoimentos que formam o volume Sobre Viver foram baseados no que você chama de escuta sensível, com poucas interferências do entrevistador. Poderia comentar a opção por este tipo de diálogo com os entrevistados?
Entrevistar sobreviventes com idade avançada e acompanhá-los numa retrospectiva de suas vidas, durante e depois de terem passado pelo Holocausto, não é como entrevistar uma pessoa para colher uma informação específica. Minha intenção era compreender como essas pessoas conseguiam apreender o que se passava com elas e, tendo sobrevivido, em que bases psicológicas e filosóficas conseguiram se reerguer e não sucumbir à dor.
Como psicóloga clínica, trago comigo a referência da escuta respeitosa à verdade do outro. Aliada à ótica da estruturação de coleta de dados pela técnica de "história de vida", ramo da história oral, coube a mim ouvir os relatos com atenção, de modo a conseguir trazer à tona as vivências frente às quais poderíamos nos aproximar de pessoas e não de dados, fatos, números já coletados e formatados pela história formal.
DW - Recorrer à crueldade do passado e contar traumas vividos é certamente um momento doloroso. Poderia falar sobre a reação dos entrevistados, ao serem confrontados com a própria lembrança?
À medida que o sobrevivente acessava dados dolorosos e deixava aflorar sua sensibilidade durante a entrevista, minha interferência maior fazia-se no apoio à sua possibilidade de repassar essas dores com a certeza de que estariam sendo compreendidas, e não julgadas, duvidadas, nem distorcidas.
Assim, procurei ater-me à visão de mundo (Weltanschauung) presente no relato de cada depoente, sem contrapor comparações com outras fontes, mas sim enfatizando o resgate de quem relembrava momentos em que nem podia falar, muito menos ter sua percepção legitimada por alguém.
Além disso, todos os entrevistados concordaram em registrar suas histórias de vida com a finalidade de contribuir com informações para que outros não sejam vítimas e nem algozes de atrocidades como as perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial. Este objetivo deu força para que cada um conseguisse relatar e atravessar suas dores pessoais em prol de uma contribuição social maior, além de constituir um legado para seus descendentes.
DW - A relevância da história oral ainda é pouco valorizada pela história formal, que confia mais no documento do que no depoimento e muitas vezes ignora este último. Qual é, na sua opinião, a importância do registro do testemunho pessoal para a constituição da memória coletiva?
Quando trabalhamos com a história oral e em particular com a história de vida, constituímos, com a aquiescência do depoente, um "documento pessoal", como no caso das entrevistas de Sobre Viver. Quando o depoente possuía algum documento da época, comprobatório dos dados relatados, anexamos ao seu relato. No entanto, como é comum às vítimas de grandes tragédias, na maioria das vezes os sobreviventes não portavam nenhuma prova de suas vidas durante os anos de Holocausto.
Mas o que é mais fascinante no testemunho pessoal é a aproximação da vítima para com aqueles que não estavam em condições similares. O relato traz dados em linguagem clara e acessível, mantendo a história viva, inteligível e próxima de quem as ouve ou lê. Um dos objetivos de Sobre Viver é promover essa aproximação entre depoente e leitor, mantendo a peculiaridade de cada depoente em seu modo de se expressar e descrever o seu cotidiano.
Hoje em dia, a narrativa em primeira pessoa ganha espaço tanto em textos acadêmicos quanto em romances. Os depoimentos têm despertado maior interesse por parte de pesquisadores, visando apreender o real vivido e não só o real conjeturado ou teorizado.
DW - Em seus textos, você cita a reflexão acerca do Holocausto como uma forma de pensar, num contexto social ou até mesmo filosófico, sobre as relações humanas. Em que sentido esta reflexão pode ser inserida numa análise atual das sociedades contemporâneas?
Refletir sobre o Holocausto é refletir sobre a capacidade e responsabilidade humana de ser tão mais vil ou sublime conforme a posição ética e moral de cada indivíduo. Este é um exercício sempre necessário ao aprimoramento social. O horror inimaginável e desumano foi concretizado no período nazista e, infelizmente, ainda hoje assistimos ao longo do mundo inteiro a repetição de atrocidades, apesar de não organizadas sob a mesma égide nazista.
Em nossos dias, convivemos com novas formas de banalização do mal, que cresce em escala individual e coletiva – desde a violência doméstica até o fundamentalismo que mata o diferente em nome do seu sagrado religioso. O que vemos acontecer na violência atual é o despojamento de qualquer sentimento de culpa, vergonha ou responsabilidade acerca do mal intentado e praticado; esta foi a correção que os algozes fizeram de sua posição destrutiva na Segunda Guerra: não sucumbir, nem se suicidar se o plano não teve sucesso.
(Foto)Sofia Débora Levy
Basta negar a participação, manipular as informações ainda mais e inverter os motivos de suas ações através de justificativas racionalizadas, distantes da realidade perpetrada. Além disso, havemos de considerar as crises econômicas ao longo do mundo, que aumentam a intolerância e promovem a violência como parâmetro socialmente aceito. Isso por si só já nos remete às características totalitárias.
DW - Não negar a diferença e sim fazer proveito dela como enriquecimento é certamente uma utopia nas sociedades multiculturais. As posturas frente à diversidade são, no entanto, bastante distintas na Europa e no chamado Novo Mundo. Você acredita que o Brasil pode, neste contexto, servir de exemplo a ser seguido?
Sim, se nós brasileiros conseguirmos manter a qualidade "macunaímica" da miscigenação resultando de felicidade e aceitação. Mas, infelizmente, a violência se alastra pelo Brasil, e a imagem do país ensolarado e hospitaleiro cede lugar, nas manchetes nacionais e internacionais, a um país temível, perigoso e do qual não se tem certeza de visitar e sair ileso.
Soma-se a isso a tendência colonialista de assimilarmos modelos culturais dos países desenvolvidos, inclusive suas formas de violência e de discriminação. A manutenção da imagem do país acolhedor, emocionante, integrador e rico em belezas naturais depende da prática vivida pelos seus cidadãos.
Espero que possamos resgatar essa característica já registrada historicamente no Brasil, mantendo um referencial de melhores possibilidades de convivência, revisitando esta identidade nacional como forma de combate à da intolerância, e como expressão da cultura brasileira.
(Foto)Edward Heuberger, um dos entrevistados de 'Sobre Viver', em foto ao lado de Oskar Schindler: primeiro encontro com soldados norte-americanos após a libertação e fim da Segunda Guerra, em 1945
Soraia Vilela
Fonte: Deutsche Welle(Brasil/Alemanha. 18.09.2007)
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