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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A Invenção do Nordeste (livro). Pra entender o Brasil atual e suas divisões artificiais criadas na Era Vargas

Eu sempre disse que um dia iria fazer um post sobre esse livro e acabava deixando pra depois, como eu ia fazer um comentário sobre preconceito regional (mais precisamente do que eu penso sobre isso) achei melhor fazer primeiro o post desse livro porque ele deixa bem claro o que eu penso sobre regiões e Brasil. Essas divisões regionais atuais do Brasil são mitificações/divisões oriundas do Estado Novo varguista, basicamente, mas o livro mencionado no título do post detalha de forma mais precisa (e como isso foi conduzido propositalmente) a construção dessas divisões regionais que afetam o país hoje pois a mídia brasileira depois da redemocratização do Brasil em 1985 faz questão de reforçar essas divisões e não atenuar.

Este livro "A invenção do Nordeste", do autor Durval Munis de Albuquerque Jr (se não me engano, potiguar), que mal vejo ser citado no país (mas sai tudo quanto é porcaria como "bestseller" na mídia), é essencial pra entender o Brasil atual e como essa divisão regional criada na Era Vargas vem afetando negativamente o intercâmbio estadual que sempre existiu no país, desde os tempos em que o Brasil ainda era colônia portuguesa. Esse comentário aqui é uma interpretação minha, não sei se o autor concorda, mas é como vejo a atuação política desta divisão que eu considero artificial. "Ah, mas toda tradição é criada, artificial", sim, mas tradições podem surgir de culturas existentes ou ser simplesmente forjadas pra algum propósito, no caso a criação do "Nordeste" serviu aos interesses do estado autoritário de Vargas e à maioria dos governos posteriores a ele.

Resumo do livro: (FGV-CPDOC)
A invenção do nordeste
Matéria do JC: A invenção do Nordeste; por Isabel Guillen
http://www2.uol.com.br/JC/_2000/0409/cu0409e.htm
Links pro livro ou partes dele:
III. “A invenção do Nordeste”. 3.1. O conceito de região: da Geografia ao discurso

Foto da capa tirada do link do Skoob:
http://www.skoob.com.br/livro/15933-a_invencao_do_nordeste_e_outras_artes

Tem mais de um PDF se procurarem no site acima. Depois vejo se consigo colocar o resto.

Quem quiser entender o Brasil só por coisas como "ó, São Paulo a locomotiva do Brasil" ou "Brasil, meu Brasil brasileiro" reduzindo o Brasil a mitificação criada em cima do Rio, não vai entender nada, ou só uma parte do todo, e uma parte muito pequena em relação ao conjunto da obra chamada Brasil (514 anos de História). Por sinal, esse é um dos motivos da crise de identidade que existe em alguns estados do país, o não saber como tais cidades e Estados foram formados e um certo discurso fascistoide que endeusa a formação desses estados em detrimento dos núcleos mais antigos de população do Brasil.

Intuitivamente eu sempre soube que essa região que chamam por "Nordeste" é uma formação forçada, nunca foi homogênea, não existe um sotaque regional ou uma identidade regional já que vários estados possuem sua própria identidade e sotaques. Tampouco existe uma bandeira regional ou hino regional, a não ser o que a mídia de dois estados do país "forçam" a ser. O sotaque baiano não é igual ao pernambucano (que tem mais de um), que não é igual ao sotaque cearense e assim por diante. Cada estado tem sua bandeira e seus simbolismos, e hino também (link1, link2, link3). Justamente pelo forte fator identitário de Pernambuco essas contradições entre essa identidade regional forjada no Estado Novo (apropriando-se de coisas do Estado e disseminando que isso é algo "de todos") e uma identidade com praticamente meio milênio de História, fica fácil de sacar de cara o que é ou não forjado e imposto de fora.

Resumidamente, o livro fala da construção literária e ideológica que formou a ideia em torno do que muita gente no Brasil vê como "Nordeste brasileiro" e "nordestinos", o livro fala do quanto isso é mitificação e construção, criada na ditadura Vargas, pra justificar a "diferença" de regiões ou valorizar umas e largar a própria sorte outras, principalmente a área do país onde o próprio Brasil surgiu como país e nação. Inclusive com participação de gente da região reforçando essa ideia de "seca", "retirante" etc, o que é uma distorção pesada da História do Brasil.

É sempre bizarro ver alguém querendo falar de Pernambuco citando Lampião (por conta do cinema) do que Frei Caneca, Nassau ou Joaquim Nabuco que tiveram muito mais relevância pro Estado (e pro Brasil) do que um mero bandoleiro. É duplamente irônico ver a reverência que tratam do período Holandês em Pernambuco pelo complexo de vira-latas (au au) de alguns estados do país, com crenças ridículas (que eu já ouvi e li gente dizer, mas não salvei o link, é algo bizarro e sem fundamento algum) de que os loiros do Estado são descendentes de holandeses e quando retratam este mesmo estado (e região) no século XX, mudam pra imagem de Lampião, coronéis etc.

O autor do livro é potiguar, mas por motivos óbvios irei falar mais do meu estado, primeiro por conhecer mais e saber dessas peculiaridades, também por saber das rixas históricas entre estados da região e por saber da manipulação que a grande mídia do país reproduz o tempo todo sobre essas identidades regionais e com os estados do país. Gente preconceituosa falando sobre isso em TV é uma desgraça total. Também por saber da relutância e rejeição pernambucana a essa imposição cultural televisiva de outros estados do país. Por exemplo, a grande mídia, por prepotência (e burrice) omite o nome dos estados da região os citando como "bloco", o que pra quem sabe dessas diferenças sempre soa como estupidez ou cretinice, e que como ficará demonstrado neste post, essa postura é uma repetição das crenças e mitificações fascistoides criadas no Estado Novo varguista.

O mal do brasileiro (generalizando) é ignorar profundamente a História do país. Digo isso porque o que vejo de gente chorona (reclamando de tudo) na internet quando fala de política, com comentários totalmente alienados e idiotas, é vergonhoso.

Este post é um comentário em cima da ideia do livro, que pra muita gente poderá soar como uma "revelação" pois a maioria é criada ouvindo que o Brasil atual é esta divisão regional ridícula da Era Vargas e das generalizações cretinas que a mídia hegemônica do país (que se situa atualmente nas cidades do Rio e de São Paulo) reproduzem o tempo todo sobre isso, reforçando estereótipos reais ou não e essa ideia de divisão regional como se o Brasil não tivesse uma origem comum e omitindo a formação dessas cidades populosas (hoje) do país, que nem sempre foram politicamente relevantes na História do Brasil (a maior parte da História do Brasil foi vivida e passada nos estados mais antigos do país e não nos mais populosos atuais). Existe uma falta de reflexão clara da maior parte da população do país, que é criada pra aceitar verdades impostas e não ter uma mente aberta pra, por exemplo, entender sem choque que o Brasil que elas concebem não passa de uma criação varguista. Que o Brasil é o país dos bairrismos e não um país "unido" como muita gente apregoa. Que o Brasil já esteve a ponto de se fragmentar e por conta de um português autoritário isso não ocorreu. Se isso foi bom? Pra alguns certamente não foi (principalmente pernambucanos que tiveram seu estado mutilado, único corte de estado do país por castigo e retaliação política).

Daí a razão de haver um certo ressentimento por parte de uns quando a gente cita isto, que não é uma diminuição do papel das outras cidades do país, mas sim uma visualização da História do Brasil como um todo e não um recorte a partir da ascensão de Rio de Janeiro e São Paulo no século XIX. Até chegarmos ao século XIX houve mais de três séculos de lutas e conflitos no Brasil, que nem sequer era um território unido, que definiram o que hoje todo mundo entende como o Brasil. O Brasil não começa com a vinda (fuga dos fujões de Lisboa) da Família Real Portuguesa em 1808, correndo do cerco de Napoleão a Portugal e sim em 1500 mesmo ou antes.

O próprio crescimento dessas cidades se deveu a dois fatores: a vinda pesada de imigrantes europeus no século XIX e começo do século XX e o grande êxodo das outras regiões do país e da antiga capital (Salvador) pra esses centros, pegando quase toda classe média e intelectuais do que hoje é conhecido como "Nordeste".

A você de outro estado e região que vive malhando o que entende por "Nordeste" sem nem saber como o país foi formado, ou sente vergonha disso (por ser imbecil mesmo), se você tiver sobrenome português, as chances de você ter raízes nesses estados que citei é muito, mas muito grande e não foi pouca gente que migrou mesmo antes do êxodo do século XX que é mais conhecido (como retirantes etc), mas fazem questão de apagar esses fatos, ou omitir ou simplesmente diminuir a importância deles pra mitificar a ideia de estados formados por "italianos" etc mesmo falando português e tendo vários bairros com nomes indígenas.

O Brasil atual não existia até 1879 do século XIX quando São Paulo ascende como metrópole (até então era menor que Teresina no Piauí, dados do livro A Economia Brasileira, de Werner Baer) com a produção de café (o ciclo) e a industrialização que ocorre por isso. O resultado deste processo de mudança e migração interna é o que vocês veem hoje em dia.

Os centros políticos, econômicos e militar do Brasil por 308 anos ou mais foram Bahia, Pernambuco e Minas Gerais. O Rio Grande do Sul sempre foi muito isolado e passou a ter relevância política no país também no século XIX com as lutas contra a coroa e a imigração e colonização maior dos estados da região Sul. Há outro núcleo também antigo e forte que fica no estado do Pará, não menos relevante. Mas os maiores centros urbanos eram Salvador (principalmente, capital do Brasil por mais de três séculos), Recife e o interior de Minas (Ouro Preto etc).

A maioria dos brasileiros antigos do país, principalmente os que têm sobrenomes portugueses (a maioria da população), são descendentes desses centros urbanos que citei acima. O intercâmbio (migração interna) no Brasil sempre foi intenso, em toda a história do país.

Se eu por acaso esquecer de citar algum estado, não foi proposital, nem sempre dá pra lembrar tudo.

E a quem quiser duvidar que esta divisão regional é algo recente na História do país, como eu citei no post, pois se trata de uma criação/herança da Era Vargas (Estado Novo) e uma mitificação ridícula, inclusive bancada nos estados da atual região Nordeste por ignorância de parte da população, façam o seguinte teste: procurem o termo "Nordeste" e "nordestino" em livros de literatura antigos do Brasil e de Portugal. Se você encontrar o termo me avise aqui.

Dificilmente alguém encontrará pois o Brasil era dividido por Portugal por séculos em Norte e Sul apenas, sem qualquer conotação ideológica atual, o Brasil era território português e só, por isso que até hoje existem os termos sulista e nortista pra apontar regiões, mesmo com esses termos novos como "nordestino".

Sugestão de livro: O Norte Agrário e o Império (1871 - 1889)
De Evaldo Cabral de Mello (talvez o historiador brasileiro vivo mais importante do país).

Nem no Sertão de Euclides da Cunha existe a palavra "nordestino" e sim sertanejo. O termo "nordeste" que se encontra no livro é referente a ponto cardeal e área dentro da área maior em que ele se encontra, não tem ligação com o que se conhece hoje como "Nordeste" (região), só pra ilustrar a mitificação e falsificação fascistoide que criaram em torno das regiões do país. Cito esse autor porque é talvez o mais conhecido ao retratar o sertão do Brasil, que abrange o semiárido do país uma região que vai até o Norte de Minas Gerais atravessando vários estados.

Fico por aqui na apresentação do livro, mas farei ainda um post sobre preconceito regional e o que penso disso pois não comungo da ideologia de vitimismo/coitadismo que muita gente da região vive manifestando e enaltecendo, como se fosse virtude quando não é.

Eu mesmo acho que equiparar preconceito regional ao racismo (que é manifestado em sua maioria contra negros no Brasil, inclusive na região Nordeste com histórico escravagista pesado) um absurdo total. Quem comunga com isso, aceita passivamente a ideia que a mídia e pessoas ignorantes ou preconceituosas passam que gente de tal região é "inferior" e precisam de leis pra preservar sua integridade moral e física quando deveriam se impor e bater de frente com quem manifesta isso.

E nessa questão do preconceito pesa bastante e entra o fator Pernambuco no meio, que não quero frisar aqui pra não parecer que estou tentando ressaltar isso por bairrismo, mas como a mídia nunca ou quase nunca menciona essas particularidades, eu prefiro eu mesmo comentar que ouvir um paspalho de outro estado falar besteira sobre o que não conhece.

Mas o fator existe e é real, sempre foi. Resumidamente, já que citei o fato e não diminuindo o peso dos outros estados da região: a rejeição a essas imposições culturais e identitárias de governos autoritários sempre foi mais forte e pesada em Pernambuco, até pelo peso cultural, das ideias libertárias das revoluções do Estado e do envolvimento em revoltas em toda a história do Brasil. Sempre quiseram destruir a identidade cultural pernambucana por representar uma ameaça ao status quo de algumas elites e da Monarquia luso-brasileira que combatia toda e qualquer revolta por soberania (independência) do Brasil.

Quem quiser ler algo sobre os conflitos do século XIX que forjaram o Brasil e a forçaram a independência do país, destacando as relações de Minas, Bahia e Pernambuco nisto, ler o PDF:
Pernambuco, 1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro. Notas sobre as idéias de pátria, país e nação
Luiz Carlos Villalta*; 1817, DO REINO UNIDO A PERNAMBUCO, DO RIO AO RECIFE

Por isso não deixa de ser engraçado que comemorem a independência do país "declarada" por um português (um estrangeiro) e não se escolha uma revolta popular brasileira no lugar disso, o que é de fato correto. O 7 de setembro é mais outra distorção histórica cultuada no Brasil até hoje como "verdade" inconteste, fruto da imposição historiográfica do Rio com o Brasil (por ter sido a sede da Coroa Portuguesa no Brasil, moldou esses mitos). A independência de fato do Brasil de Portugal (quando há uma ruptura real) foi na Proclamação da República em 1889, onde se constituiu o primeiro governo brasileiro de fato e não o resquício do ex-dominador português sob mando de Pedro II, herdeiro de Pedro I.

Por isso também tenho aversão a essa ideia de Monarquia que ainda alguns delirantes no Brasil ficam defendendo sem nem entender as causas da rejeição à mesma. Como podem ver, essa imposição de identidade no Brasil é algo nocivo pois não respeita a pluralidade de manifestações culturais locais do país que é a grande riqueza cultural de fato do país. Essa imposição autoritária de sotaque e cultura é muito, mas muito chata, principalmente num país continente.

terça-feira, 25 de março de 2014

Prisioneiros da guerra: os súditos do Eixo dos campos de concentração (1942-1945)

PRISIONEIROS DA GUERRA: OS SÚDITOS DO EIXO DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO (1942 - 1945)
Autor: Priscila Ferreira Perazzo
Editora: Humanitas: Fapesp
ISBN: ISBN (Humanitas) 978-85-7732-008-0 e ISBN (Imprensa Oficial) 978-85-7060-519-1
Ano: 2009

Prefácio:
Este é um livro que perturba. Ele segue a trilha aberta pela nova historiografia brasileira sobre a participação do país na Segunda Guerra Mundial, contrapondo-se à visão apologética que construiu uma mitologia no imediato pós-guerra. Durante várias décadas, o envolvimento brasileiro permaneceu encoberto por espesso véu de ignorância e de condescendência.

Concomitantemente ao vazio na historiografia brasileira, os estudos históricos sobre o episódio multiplicaram-se através de departamentos, institutos e centros de pesquisas em muitos países, partícipes ou não, da terrível hecatombe. Uma dupla obrigação sustenta estes esforços: por um lado o direito e o dever de memória. Todo povo detém o direito fundamental e inalienável de saber o que foi feito em seu nome. Por outro lado, a capacidade de lembrança constitui importante instrumento para tentar evitar os erros e renovar os acertos do passado.

Cada geração tem a obrigação de reconstruir a memória sobre a trajetória das gerações que a antecederam. Neste sentido, reveste-se de fundamental importância o papel do historiador na renovação temática, instrumental, metodológica e, sobretudo, na luta para ter acesso a novas fontes documentais. Esta é, certamente, a maior contribuição do livro que tenho o prazer de apresentar. A presente tese atinge plenamente o objetivo que deveria ser de toda tese: uma contribuição original sobre um tema obscuro ou desconhecido. Ressalte-se que as fontes utilizadas são inéditas e a trabalhosa pesquisa de campo fornece resultados extraordinários.

No final da década de 1970, começou a surgir uma série de estudos que renovaram a historiografia brasileira. Alguns orientados informalmente por José Honório Rodrigues como os de Stanley Hilton (1) e os meus, outros como do sempre lembrado Gerson Moura (2) e posteriormente Tullo Vigevani (3), todos eles tratando essencialmente das relações exteriores do país. A memória sobre o Brasil, partícipe marginal do conflito, começava a ser construída.

Muitos outros estudos se seguiram sobre essa área que desperta, ainda hoje, um grande interesse junto a parte ponderável da opinião publica.

Todavia, os aspectos internos decorrentes do conflito internacional ainda permaneciam à sombra. Foi novamente Stanley Hilton, num texto provocativo que causou grande impacto (4), o iniciador de uma reflexão sobre temas considerados secundários do conflito. O livro de Priscila Ferreira Perazzo inscreve-se nessa perspectiva. Ele decorre de um trabalho consistente e abrangente desenvolvido no Programa de História Social da FFLCH da Universidade de São Paulo e do Projeto Integrado Arquivo do Estado/Universidade de São Paulo, que resultou na preparação e publicação de um conjunto de trabalhos fundamentais sobre a política das autoridades brasileiras com relação às supostas minorias vinculadas de alguma maneira ao Eixo (5).

O tratamento dispensado aos prisioneiros de guerra capturados junto ao inimigo e sobretudo aos que poderíamos denominar reféns das circunstâncias (supostos membros de quinta-coluna ou simplesmente detentores de vínculos com o inimigo, sejam eles de nacionalidade, de descendência ou de simpatia por sua causa), denominados neste trabalho de «prisioneiros da guerra», constitui um dos temas historiográficos de maior aridez e que impõem uma série de dificuldades de abordagem.

Em primeiro lugar, trata-se de um tema que é marginal no conjunto da historiografia dos conflitos. Se tomarmos como exemplo as centenas de obras escritas sobre a Segunda Guerra Mundial veremos que são escassos os trabalhos dedicados a estes reféns das circunstâncias. Assim, durante décadas permaneceu escondido, em razão de um misto de indiferença e de pruridos mal avaliados, o tratamento imposto, durante os anos de conflito, às minorias oriundas do Eixo estabelecidas nos Estados Unidos.

Convidado pela Professora Maria Luiza Tucci Carneiro, orientadora, participei da banca de defesa da tese de doutoramento de Priscila que resultou no presente livro. Constatada a importância da pesquisa, a metodologia, o tratamento das fontes e inovação – bases de uma boa tese – a banca discutiu longamente a natureza e, por conseguinte, a caracterização dos espaços destinados pelo Estado brasileiro para reunir os prisioneiros de guerra. Este é o segundo grande desafio da obra. Ora, a autora designa estes espaços como sendo «campos de concentração», contrariando outros especialistas que os consideram como simples prisões onde as regras eram de tal modo elásticas, a ponto de ser identificadas como verdadeiras «colônias de férias» (6).

De fato, o debate deve orientar-se pela definição da expressão «campo de concentração». Considero que, etimologicamente, trata-se de um espaço físico delimitado por barreiras (físicas, normativas e de autoridade) que separam os internos do restante da população. Não é necessária a constatação de maus tratos para caracterizar a existência de um campo de concentração. Nesse caso, muitas prisões e delegacias policiais brasileiras deveriam mudar de denominação … Por outro lado, não deve haver confusão de gênero entre os campos de concentração e os famigerados campos de extermínio. Neste sentido, o auxílio de que se vale Priscila junto aos trabalhos de Hannah Arendt são muito úteis pois o sistema concentracionário brasileiro pode ser efetivamente considerado como integrante do «limbo» cujas formas são «relativamente benignas, que já foram populares mesmo em países não-totalitários, destinados a afastar da sociedade todo tipo de elementos indesejáveis» (7).

A ocorrência de dois fenômenos contraditórios nos campos de concentração brasileiros torna mais complexa a escolha correta de sua denominação. Priscila constata que os internos de certos campos eram autorizados a manter uma vida social fora dele. Portanto, estamos diante de situações nas quais os internos gozavam de uma semi-liberdade. De outra parte, as condições de higiene, a falta de qualidade e de regularidade do atendimento médico, bem como a própria localização do campo, muitas vezes situado em lugares insalubres, fez com que muitos internos padecessem de moléstias evitáveis e viessem a falecer.

O presente livro, ao contestar uma visão idílica da história, desperta consciências e provoca desconforto. Redigido em uma linguagem coloquial, na primeira pessoa do plural, ele aborda um tema pungente. Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma tentativa de resgate dos marginais da história e da construção de uma visão dos vencidos. Mas não unicamente isso, pois a autora opera a historia através do homem e sua condição, extraindo dela lições sobre sua natureza. Surge então o homem em sua (des)humanidade, pouco importando o que o Estado tente fazer com ele através das normas da nacionalidade que separam e opõem os humanos.

Outra importante contribuição de Priscila advém do enfoque metodológico. Uma primeira lição deve ser retida e conservada pelos leitores, especialmente aqueles que se dedicam à pesquisa. Por trás de um excelente livro como este, esta (e sempre estará em todas as grandes obras), muita dedicação, trabalho, sacrifício e espírito de equipe. Não se constrói uma obra científica somente com inspiração e ideias, mesmo que sejam pertinentes. A autora não somente percorre uma trajetória intelectual através da qual ela renova, contesta e afina seus pressupostos, mas também percorre um trajetória física que a conduz aos quatro cantos do país. A fazê-lo, demonstra que as fontes constituem a matéria-prima imprescindível do bom historiador. Mas sobretudo aproxima a História da vida e do homem. Para avaliar de maneira adequada a contribuição de Priscila, é indispensável imaginar que em cada etapa da pesquisa de campo e dos arquivos, a autora organizava as ideias, as fichas e as informações acumuladas para tentar tirar o maior proveito possível da investida. Ora, a sempre possível incompreensão dos guardiões dos arquivos paira como uma espada de Dâmocles sobre os pesquisadores, assim como a precária preparação para o trabalho de campo pode torná-lo inútil.

Apesar de ser tratado marginalmente nos estudos sobre a repressão ao comunismo e sobre o controle social no Brasil, objetos de vários estudos recentes(8), o tema da repressão às minorias originárias do Eixo constitui um vasto campo ainda a ser explorado. Trabalhos pontuais foram publicados enfocando a realidade estadual ou a micro-realidade municipal (9). Todavia falta uma sistematização e uma abrangência que somente trabalhos que se espelhem no exemplo da tese de Priscila poderão responder. Certamente se trata de uma história dolorosa mas indispensável para a construção da memória nacional.

A tese acadêmica ora apresentada ao grande público reúne grande valor para a historiografia brasileira. Posso não concordar com a utilização de um vocabulário por vezes pouco científico e com conclusões apressadas como, por exemplo, a que identifica a existência de um projeto étnico-político marcado pela xenofobia da política governamental brasileira. Todavia, o mérito do livro consiste em nos fazer entender como o governo autoritário de um pais povoado essencialmente por imigrantes enfrenta o desafio que poderia ter mudado a face das relações internacionais. Imaginando que a distância dos principais palcos de operações militares pudesse também nos manter afastados dos dramas da guerra, as nossas riquezas naturais e a forte presença de contingentes populacionais oriundos do Eixo, jogaram por terra qualquer esperança de neutralidade. O tributo que pagamos para reconquistar a paz deve ser compensado pela construção da memória. As páginas que seguem constituem inconteste contribuição.

(1). Conforme O Brasil e a as grandes potências. Aspectos políticos da rivalidade comercial (1930-1939 e O Brasil e a crise internacional (1930-1945), ambos publicados pela Civilização Brasileira em 1977.

(2). in Autonomia na dependência : a política externa brasileira de 1935 à 1942, Nova Fronteira, 1980.

(3). in Questão nacional e política exterior. Um estudo de caso: formulação da política internacional do Brasil e motivações da FEB, FFLCH-USP, 1989.

(4). Conforme A guerra secreta de Hitler no Brasil : a espionagem alemã e a contra-espionagem aliada no Brasil (1939-1945), Nova Fronteira, 1983.

(5). A primeira publicação da Coleção Teses e Monografias resultante do programa é justamente a dissertação de Mestrado de Priscila sob o titulo O perigo alemão e a repressão policial no Estado Novo, Arquivo do Estado de São Paulo, 1999.

(6). Consultar, por exemplo,CYTRYNOWICZ, R., Guerra sem guerra : a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial, Edusp, 2000.

(7). Cf. Origens do totalitarismo : anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo, Cia das Letras, 1989, p. 496.

(8). As obras de Paulo Sérgio Pinheiro e mais recentemente o livro de R. S. Rose, Uma das coisas esquecidas : Getúlio Vargas e controle social no Brasil/ 1930-1954, Cia. das Letras, 2001.

(9) Cf. a obra pioneira de René Gertz no Rio Grande do Sul e as mais recentes de Maria Hoppe Kipper sobre o impacto da política de nacionalização em Santa Cruz do Sul e o interessante livro de SGANZERLA, C., A lei do silêncio : repressão e nacionalização no Estado Novo em Guaporé (1937-1945), Ed. UPF, 2001.

Ricardo Seitenfus

Doutor em Relações Internacionais pelo Institut Universitaire des Hautes Etudes Internationales (Genebra) e autor, entre outras, da obra O Brasil vai à Guerra, São Paulo, Editora Manole, 2003, 3a. edição, 365 p.

Fonte: site da USP
http://www.usp.br/proin/publicacoes/detalhes_publicacoes.php?idLivro=32&idCategoriaLivro=5

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Fantasia lusitana (documentário sobre o fascismo em Portugal)

Fantasia Lusitana é um filme português realizado por João Canijo, no ano de 2010.

Documentário que explora a relação do povo português com os estrangeiros refugiados da segunda guerra mundial, a forma como a sua estadia no nosso país influenciou (ou não) o nosso olhar sobre a guerra, e uma procura pela herança cultural deixada (ou não) pela sua passagem. Uma leitura interpelante da história portuguesa do século XX construída inteiramente a partir de imagens de arquivo e da leitura de testemunhos desses refugiados nas vozes de Hanna Schygulla, Rudiger Vogler e Christian Patey.

O resto do texto (resumo) se encontra aqui.



terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Antissemitismo ‘oficial’ de Estado, entre 1933 e 1948: Livro expõe circulares secretas visavam barrar entrada de judeus no País

Entre 1933 e 1948, o governo brasileiro emitiu dezenas de circulares secretas que visavam dificultar, ou até mesmo impedir, a entrada de judeus que fugiam do nazismo e do fascismo que dominavam a Europa. O mito do Brasil cordial, que não é racista, pode ser confrontado agora por meio do livro Cidadão do Mundo – o Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do nazifascismo – 1933-1948 (Editora Perspectiva, 476 p., R$75,00). A obra, lançada no início do mês de dezembro, é originada da tese de livre docência da professora Maria Luiza Tucci Carneiro, apresentada em 2001 à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP.

Refugiados judeus no porto de Lisboa.
Imagem de Roger Kahan (1940)
O livro analisa o contexto desse ‘cidadão do mundo’: trata-se do judeu que começa a ser perseguido na Europa, a partir de 1933 com a ascensão do nazismo na Alemanha. “À medida que os nazistas vão invadindo outros países, surgem novos fluxos migratórios de judeus alemães que vão se somando a novas nacionalidades de judeus refugiados da guerra, como austríacos e poloneses”, explica a professora.

Com a perda da identidade jurídica decorrente da perseguição nazista, esse ‘cidadão no mundo’ foge de seu país de origem e busca rotas de fuga – incluindo o Brasil. “Mas aqui vai encontrar receptividade apenas dentro da comunidade judaica. A posição oficial do governo brasileiro é a de descaso para esse ‘cidadão do mundo’, ou mesmo de omissão em algumas situações bastantes críticas. As circulares secretas mostram que a orientação dada aos diplomatas brasileiros era de dificultar ou negar a emissão de vistos para os refugiados judeus”, conta.

A professora explica que o governo brasileiro vê esse ‘cidadão do mundo’ como perigoso para compor a ‘raça brasileira’ e também para a segurança nacional, pois o judeu era associado com o comunismo, ao parasitismo e a ideia de raça inferior. Por meio desta pesquisa, Maria Luiza demonstra que muitos desses judeus tinham posturas políticas liberais e que, entre 1940-1945, fortaleceram no Brasil os movimentos antifascistas.

Segundo a historiadora, uma minoria de diplomatas se mostrou sensibilizada com a situação vivenciada pelos judeus refugiados e raros foram os que se ofereceram para ajudar. Entre os diplomatas brasileiros que assumiram uma postura humanitária, ela cita Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador do Brasil na França de 1922 a 1944, e que concedeu cerca de 500 vistos, desobedecendo as imposições antissemitas do governo Vargas expressas através das circulares secretas. Por suas ações salvacionistas, Souza Dantas é considerado pelo Instituto Yad Vashem, em Israel, como um dos “Justos entre as Nações“, sendo que o processo de reconhecimento foi aberto a pedido da própria professora Maria Luiza Tucci Carneiro. Outro exemplo é o de Aracy Moebius de Carvalho que ajudou a salvar centenas de refugiados judeus favorecendo a emissão de vistos pelo Consulado Geral do Brasil de Hamburgo, onde trabalhava ao lado do diplomata e escritor Guimarães Rosa, então cônsul geral.

Pós-guerra

Mesmo no pós-guerra, a emissão de circulares secretas continuou. A professora conta que em 1947, durante o período de criação da Organização das Nações Unidas (ONU), Oswaldo Aranha, ex-ministro das Relações Exteriores na Era Vargas, produziu um relatório, atendendo ao pedido do ministro Raul Fernandes, então chanceler do presidente Dutra. Neste documento, Aranha avalia alguns dos assuntos que seriam debatidos na primeira reunião da ONU: a discussão sobre genocídio instigada pelas imagens de catástrofe sobre o Holocausto; o controle do uso de armas atômicas, pensando-se do que ocorrera em Hiroshima e Nagasaki, no Japão; e, por fim, a divisão do território palestino com a criação do Estado de Israel.

“No final do relatório, Oswaldo Aranha apontava que se realmente fosse votada a partilha da Palestina, o Brasil poderia ficar tranquilo pois os judeus teriam, a partir de então, um território próprio específico e o país não precisaria mais se preocupar em receber esses ‘cidadãos do mundo’”, destaca a historiadora. “Ao mesmo tempo, Oswaldo Aranha havia recebido a orientação de seguir o voto dos Estados Unidos, fosse qual fosse o voto”, completa, mostrando a posição comprometida do governo brasileiro.

Documentos do Itamaraty revelam a
morosidade e a insensibilidade do governo
Outro ponto apresentado no livro é que a partir de abril de 1944, o Comitê Internacional para Refugiados Políticos apelou, por meio de dezenas de cartas, para dezenas de países, pedindo auxílio para salvar cerca de 10 mil crianças judias órfãs, retirando-as da França e Hungria ocupadas. Segundo a professora, um conjunto de documentos pesquisados junto ao Itamaraty revela a morosidade e a insensibilidade do governo brasileiro em assumir qualquer tipo de responsabilidade sobre a situação que exigia rápidas ações humanitárias.

“O governo de Vargas impõs uma série de condições para aceitar cerca de 500 crianças. Exigia, dentre outras condições, que elas fossem educadas por pais católicos, de forma a anular sua identidade judaica; não poderiam ter contato com a família de origem; e não deveriam ter mais de 10 anos de idade”, conta a professora. Quando o governo brasileiro decidiu oficialmente aceitar as crianças, em junho de 1945 – portanto em pleno governo Dutra -, elas já haviam sido resgatadas graças à ajuda dos Estados Unidos e Grã-Bretanha”, conta.

Mentalidade antissemita

Segundo a professora, a partir da documentação analisada, é possível perceber que os discursos de grande parte dos diplomatas e de um grupo de intelectuais católicos reproduziam as teorias de exclusão nazistas.

“Apesar dessa postura antissemita e da repressão policial, é possível identificar movimentos de resistência ao nazismo, que atuaram nos subterrâneos do governo Vargas e que lutaram em prol da Alemanha, França e da Áustria livres, conforme atestam os documentos pesquisados junto ao Fundo Deops/SP, sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo”, finaliza a historiadora.

Mais informações: (11) 3091-8598 ou email malutucci@gmail.com, com a professora Maria Luiza Tucci Carneiro ou junto ao Arqshoah – Arquivo Virtual sobre Holocausto e Antissemitismo disponível no endereço www.arqshoah.com.br

Reportagem de Valéria Dias, da Agência USP de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 12/01/2011

Publicado em janeiro 12, 2011 por HC

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Fonte: Agência USP/Ecodebate
http://www.ecodebate.com.br/2011/01/12/antisemitismo-oficial-de-estado-entre-1933-e-1948-livro-expoe-circulares-secretas-visavam-barrar-entrada-de-judeus-no-pais/
http://www.usp.br/agen/?p=45541

segunda-feira, 14 de março de 2011

Biografia de Salazar, de Filipe R. Meneses - "Mais perto do vício do que da virtude"

Entrevista com o investigador Filipe Ribeiro de Meneses
"Mais perto do vício do que da virtude"

O autor da primeira biografia académica de Oliveira Salazar defende que o ditador se considerava o português mais capacitado para governar

Filipe Luís

No livro, parece defender que a principal prioridade de Salazar era manter-se no poder. Como explica a ideia do "sacrifício pessoal", as suas vacilações no cargo?

Não encontrei nada que me fizesse acreditar que Salazar alguma vez pensou a sério, e desejou, sinceramente, retirar-se da cena política, e sobretudo da Presidência do Conselho de Ministros. Teria feito todo o sentido, do ponto de vista da evolução do regime, a sua eleição à Presidência da República após a morte de Carmona: seria a demonstração cabal de que o regime era mais do que só Salazar. Mas Salazar travou essa eleição porque significaria a sua marginalização - isto depois de quase duas décadas a proclamar o desejo de se afastar de São Bento... Havia, parece-me a mim, uma enorme encenação a este respeito.

Mas é credível a tese do "sacrifício"?

Não mais nem menos do que o que sucede com outras figuras políticas - e Salazar era mais dono do seu tempo do que qualquer seu sucessor o conseguiu ser. Não tinha de comparecer perante o parlamento; raramente reunia o Conselho de Ministros; não se tinha de preocupar em manter a liderança partidária; não tinha de ir a Bruxelas semana sim, semana não... Tinha a vida que queria, e trabalhou como quis. Idealizou uma forma de governar e foi-lhe sempre fiel.

O poder era o seu "oxigénio", viciou-se nele, ou devemos acreditar na tese do espírito de missão?

Salazar desejava o poder, e convenceu--se de que governaria melhor do que qualquer outro português. Estou convencido de que ele acreditava ser (ou que a certa altura acreditou ser) uma figura providencial. Reprimiu quem reclamasse uma alternativa ao regime, mas travou a evolução desse mesmo regime para se proteger, impossibilitando assim o que sempre disse desejar - passar alguns anos antes da morte no Vimieiro, longe da política, tratando do seu jardim. Parece-me assim estar mais próximo do vício do que da virtude.

Nunca assumiu uma relação ou um casamento por deveres do Estado? Ou os compromissos afetivos assustavam-no?

A primeira explicação sempre me pareceu disparatada. Mas isso não quer dizer que a segunda seja correta. Parece--me mais simples dizer que organizou a vida como quis, subalternizando a vida emocional à carreira profissional.

Estabelece uma diferença entre Estado Novo e salazarismo. Qual é ela, tendo em conta que o Estado Novo, praticamente, não sobreviveu a Salazar?

Parece-me que o salazarismo - a fidelidade à pessoa de Salazar - era uma das muitas correntes que existiam dentro do Estado Novo. Este foi a continuação de uma ditadura militar em que vários movimentos combatiam pela supremacia ideológica, não desaparecendo automaticamente com a ascensão ao poder de Salazar. Havia republicanos conservadores, fascistas, monárquicos, católicos... e, pelo meio, oriundos destes setores e até de outros, surgiram os salazaristas. Mas não era fácil ser salazarista: o líder aparecia pouco, falava menos, e não gostava da palavra "salazarismo". O líder não queria deixar-se prender por um programa detalhado, e desconfiava de quem o quisesse seguir a todo o custo... Se o Estado Novo mal sobreviveu a Salazar não foi devido ao enorme vazio que este deixou e que Marcelo Caetano não conseguiu colmatar - foi porque, graças à guerra colonial, Salazar deixou o regime numa situação impossível de resolver.

Encontrou um Salazar-ser humano versus um Salazar-estadista? Ou as duas faces confundem-se?

As duas faces confundem-se. Se Salazar tem dúvidas sobre o caminho a seguir, estas são passageiras e apenas confiadas a um número muito reduzido de interlocutores. O professor de Direito - ou o católico - parece preocupar-se pouco com os poderes da PVDE/PIDE, com o que se passa no Tarrafal, com o assassinato de Humberto Delgado. O homem que se orgulhava de ter "nascido pobre" é insensível à pobreza extrema que se encontra no País, ou à emigração que a política económica dos seus governos provoca. Nunca visitou as colónias mas não duvidava do caminho traçado quanto à preservação do Ultramar.

Defende que Salazar estava convencido de que o seu regime era o mais apropriado à índole do povo português. Tendo em conta a longevidade do Estado Novo, esta tese não estaria certa, pelo menos no seu tempo?

Mas - justamente - qual é o seu tempo? São os anos Trinta, Quarenta, Cinquenta ou Sessenta? Qual é o verdadeiro Estado Novo? O segredo da longevidade do regime reside na sua capacidade de resposta e de evolução, acompanhando, de forma distorcida e sempre com algum atraso, o que se passa no resto da Europa. Salazar está no centro da teia, e luta por lá se manter, mas as prioridades do regime mudaram constantemente, porque os intervenientes também mudaram. Salazar quis, e conseguiu, ir renovando a sua elite ministerial de forma a evitar a cristalização do Estado Novo.

Há quem diga que, se Salazar se tivesse submetido a eleições livres, as teria ganho. Faz algum sentido?

Custa a crer, seja na realização de eleições livres em Portugal antes de 1974, ou na capacidade de Salazar de as ganhar. Mas uma coisa era votar contra Salazar dada a oportunidade de o fazer livremente - muitos o teriam feito - e outra bem diferente era lutar para que essas eleições se realizassem. Foram poucos os que o fizeram.

A faceta das violências, da repressão e dos crimes do regime não está relativamente desvalorizada no seu livro? Ou deve-se isso a um esforço de distanciamento político?

Não gosto do termo "desvalorizado".
A repressão existiu, e os crimes foram cometidos. Mas não escrevi uma história do Estado Novo - escrevi uma biografia política do seu líder. E por isso tentei transmitir no livro o distanciamento que Salazar criou entre essa repressão e a sua pessoa. Precisava dela para se manter no poder, mas não queria conhecer os detalhes do que se passava no Aljube ou em Caxias. Quando lhe chegava às mãos uma queixa precisa sobre o mau tratamento de presos políticos, pedia esclarecimentos ao diretor da PIDE - que obviamente dizia que as queixas eram injustas - e o caso morria aí. Era como a pobreza: denúncias da situação em que muitos portugueses viviam chegavam às mãos de Salazar, mas este não reagia. Era extremamente frio.

Dois dos períodos mais importantes do regime foram as guerras de Espanha e Mundial. Nota-se, no livro, um certo fascínio pela forma como Salazar se desenvencilhou nesses períodos...

Sem dúvida. Foi um esforço enorme, possível apenas graças a uma tenacidade e uma força de vontade singulares, impressionantes até. Trabalhou sob uma pressão constante durante quase dez anos. No entanto, temos de nos lembrar que muitas das decisões tomadas (a começar pelo apoio dado aos militares espanhóis em 1936) foram guiadas pelo desejo de salvaguardar o regime e, por isso mesmo, a posição do próprio Salazar: era isto depois apresentado como o verdadeiro interesse nacional.

Foi o homem certo no lugar certo durante a II Guerra Mundial? Teve aí ocasião para revelar o seu génio?

Revelou o seu génio (especialmente no que toca a Espanha durante a II Guerra Mundial), mas também as suas limitações. Demorou demasiado tempo a entender a fraqueza estratégica da Alemanha e as vantagens de que dispunha a Grã-Bretanha. Desta demora resultou, em parte, o desentendimento com Armindo Monteiro. Por outro lado, não parece ter entendido o funcionamento da Alemanha nazi. Convencido da paixão alemã pela eficiência, pela sistematização e pela uniformização, Salazar não se apercebeu da falta de nexo e de lógica que caracterizavam a política de guerra alemã. Vendo em Hitler um político tradicional, Salazar parece ter acordado demasiado tarde para o que aconteceria quando à política racial dos nazis se juntasse à necessidade de vencer uma guerra mundial. O facto de Salazar nunca ter denunciado o Holocausto, mesmo depois de finda a guerra, conta contra ele.

Tinha mesmo prestígio e notoriedade internacionais (sobretudo nos anos 30 ou 40) ou essa ideia resulta mais da propaganda do Estado Novo?

Salazar tinha mesmo prestígio. Não há dúvida que os mercados financeiros o admiravam. Os elogios feitos pelo Times ao ministro das Finanças português a partir de 1928 são disso testemunha. Por outro lado, a Europa dos anos Trinta estava a evoluir em direcção à extrema-direita, mas não o estava a fazer como um bloco unido: e nem todos os que pensavam que a era dos regimes parlamentares tinha acabado desejavam ser governados por demagogos como Hitler e Mussolini, ou generais brutais como Franco. Salazar aparecia como um modelo a seguir, sobretudo no mundo Católico. O seu passado profissional funcionava como uma garantia do seu valor, da sua modéstia e da sua moderação. Porém, quando se escrevia sobre ele, ou sobre Portugal, no estrangeiro, era com base nas publicações do Secretariado de Propaganda Nacional, o que criava uma imagem falsa da realidade portuguesa, sobretudo do corporativismo nacional.

Nota-se uma fractura entre o ante e o pós-guerra, no regime e na própria energia de Salazar. Salazar deixou de acreditar em si e no país?

É muito difícil falar sobre este período da vida de Salazar. Por um lado não deixou de trabalhar; consultamos os seus diários e vemos que ele continuou a receber pessoas, a rever legislação, a exercer a tutela habitual sobre a administração do país. Por outro lado, porém, quem o conhecia melhor estava espantado, ou mesmo assustado, com a sua condição física. Parece-me que a crise teve a ver com a dificuldade em ler o que se iria passar no mundo e, por consequência, em Portugal. Haveria guerra com a União Soviética? Qual o papel dos comunistas nos governos francês, belga e italiano? Sobreviveria Franco à enorme pressão internacional a que estava sujeito? Recuperaria a economia europeia? Qual o papel dos impérios coloniais num mundo dominado por soviéticos e norte-americanos (sobretudo após a independência da Índia)? O Estado Novo tinha demonstrado as suas limitações durante a guerra, e a contestação popular tinha aumentado. Salazar precisava de paz e de estabilidade, precisava de saber com o que contava no resto do mundo. Uma vez definida a situação internacional, o estado de espírito de Salazar melhorou.

O que pensava Salazar dos portugueses?

Salazar queixava-se sobretudo da falta de elites que o ajudassem a governar; muitos dos que tinham a educação necessária não eram politicamente aproveitáveis (e note-se que Salazar admitia a posições de responsabilidade pessoas oriundas de passados políticos bem distintos). No fundo era uma visão nacionalista e contrarrevolucionaria clássica: um povo rude mas bom, mal servido por uma elite politiqueira, dividida em fações inúteis e estéreis, incapazes de pensar no bem comum.

De episódios que o senhor descreve nesta obra podemos concluir que era Salazar detentor de um fino e inteligente sentido de humor?

Absolutamente. São extremamente divertidos os comentários trocados com o Secretário-Geral do MNE, Embaixador Teixeira de Sampaio, sobre Nicolás Franco, irmão e Embaixador do ditador espanhol em Lisboa. Mas, em geral, só alguns eleitos tinham contacto directo com este sentido de humor. Mesmo assim, por vezes o público tinha acesso a esta faceta de Salazar - veja-se, por exemplo, os artigos escritos no jornal Novidades durante a ditadura militar, em que Salazar criticou a obra financeira do General Sinel de Cordes de forma acessível a todos.

A ideologia ruralista, o medo do cosmopolitismo, do desenvolvimento, da prosperidade económica, faz de Salazar um asceta, um ecologista prematuro ou um provinciano de horizontes limitados?

Salazar era nacionalista, mas tinha pouca fé no seu país, sobretudo na capacidade de sobrevivência de Portugal se completamente aberto a influências estrangeiras. Pensava, como muitos nacionalistas (não só portugueses) que a população urbana estava atingida por um cosmopolitismo prejudicial. Mas Portugal nunca foi uma fortaleza do isolacionismo, nem mesmo nos anos Trinta - e nos anos Cinquenta e Sessenta sofreu transformações importantes na sua estrutura económica e no seu relacionamento com o resto da Europa. Salazar era cauteloso, mas não era, regra geral, dogmático. E onde ir buscar as elites de que tanto precisava para administrar o país e as colónias senão às cidades?

As observações de Salazar sobre o destino de um Portugal sem colónias, com cedências de soberania, estão de alguma forma confirmadas pela atualidade?

Passamos aqui da História para a política. Mas parece-me que a resposta à sua pergunta é 'não' - e isto porque Salazar conduziu o País - mas sobretudo o regime - para um beco sem saída por causa das colónias. Era impossível, como Marcelo Caetano depressa constatou, transformar o Estado Novo em algo mais aceitável domestica e internacionalmente quando se continuava a combater em África, quando era necessário o apoio de Pretória e de Salisbúria e quando a situação interna se estava a radicalizar. O "orgulhosamente sós" foi muito mais perigoso para a soberania nacional, e o papel de Portugal no mundo, do que qualquer outra política desde então seguida. Após o 25 de Abril e o PREC, a integração europeia deu um novo fôlego a Portugal, permitindo que o País se reinventasse após a queda dos mitos salazaristas e revolucionários. O que a União Europeia não fez, claro, foi transformar Portugal num país rico, e por isso as dificuldades financeiras de que Salazar beneficiou para se tornar parte imprescindível da ditadura militar a partir de 1928 continuam a atormentar a nossa vida nacional, 80 anos depois...

Salazar continua vivo e influente? O que subsiste e o que desapareceu?

O interesse em Salazar e no Estado Novo, que é enorme, não deve ser confundido com saudade do regime; é sobretudo o desejo natural de entender as especificidades do caso português, de tentar entender por que somos como somos (embora me pareça, após ter escrito o livro, que temos a tendência de exagerar o papel de Salazar neste processo: as nossas qualidades e os nossos defeitos, assim como alguns dos problemas que se nos atravessam pela frente são bem anteriores ao Estado Novo). Porém, nem todos os que tentam ir ao encontro deste interesse sobre o passado o fazem isentos de fins políticos. Quero dizer com isto que a memória de Salazar e algumas das suas características pessoais (o cuidado com os dinheiros públicos, por exemplo) são usadas como armas de arremesso ideológicas contra a "situação" atual. Quarenta anos depois da sua morte, pouco parece restar da obra de Salazar, porque Portugal seguiu um caminho bem diferente do por ele desejado. Mas se a I República não marcou um novo começo para Portugal e se o Estado Novo guardou muito da I República, parece-me lógico partir do princípio que o corte entre Estado Novo e o regime atual não foi total.

Fonte: Visão(aeiou, Portugal)
http://aeiou.visao.pt/mais-perto-do-vicio-do-que-da-virtude=f570269

quarta-feira, 4 de março de 2009

Max Wolf, herói paranaense da FEB

Natural de Rio Negro, sargento se destacou em patrulhas; seu aniversário de nascimento é comemorado na próxima semana.

Na campanha da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, as patrulhas – missões de grupos pequenos para levantar informação sobre o terreno e o inimigo, fazer prisioneiros ou resgatar colegas feridos – foram vitais para as vitórias dos expedicionários. E, dentre os combatentes patrulheiros, um se destacou a ponto de ser chamado “rei”: Max Wolf Filho, herói paranaense da FEB, que tem seu aniversário de nascimento recordado na próxima terça-feira e dá o nome ao ao Museu do Expedicionário e ao 20º Batalhão de Infantaria Blindado, em Curitiba.

A historiadora Carmen Rigoni, do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e especialista em assuntos da FEB, explica que o apelido de Wolf, “rei dos patrulheiros”, demonstra sua habilidade na atividade que, para muitos, ganhou a guerra. “A patrulha foi um elemento decisivo na Segunda Guerra Mundial. Quando se olha os números totais da guerra, a tendência é de imaginar batalhas envolvendo o encontro de tropas numerosas, com dezenas de milhares de homens. Mas foi o intenso trabalho dos pequenos grupos que permitiu as movimentações maiores”, diz. Outra prova da capacidade de Wolf nas patrulhas foi o fato de o major Manoel Lisboa tê-lo escolhido em março de 1945 para comandar um pelotão especial: o sargento poderia escolher os melhores patrulheiros entre os membros das três companhias que formavam o batalhão comandado por Lisboa. “Eram 19 homens que confiavam no seu comandante, eles sabiam que Wolf levava e trazia de volta”, diz Carmen.

Mas foi justamente em uma patrulha que o sargento morreu – ele seria, depois, promovido postumamente a tenente. A missão, que deveria ter ocorrido na noite de 11 para 12 de abril, foi transferida para a luz do dia. “Uma temeridade”, escreveria anos depois o coronel Adhemar Rivermar de Almeida, que na guerra foi capitão no mesmo batalhão de Wolf. Carmen classifica o relato de Almeida como o melhor texto sobre a participação do herói paranaense na guerra.

A historiadora não tem medo de entrar em duas polêmicas relativas ao sargento. Ela, que já esteve no local dos combates, acredita que apenas os membros da patrulha de Wolf o viram morrer, desmentindo depoimentos como o do jornalista Joel Silveira (publicado nesta página). “Por causa do terreno acidentado, de onde os correspondentes estavam seria muito difícil ver a cota 747”, afirma. Carmen também alega que o corpo de Wolf nunca foi encontrado. “O próprio Exército, em agosto de 1945, reconhecia que ele continuava desaparecido. Muito provavelmente os alemães o enterraram”, diz. Justamente por não haver corpo, a mãe do sargento, Etelvina Wolf, não aceitou imediatamente a morte do filho. Mas declarou, em uma entrevista ainda em 1945: “Se de fato meu filho sucumbiu, o foi por uma causa nobre, uma causa que dignifica e enobrece o homem”.
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Montese teve valor estratégico

A conquista de Montese, ocorrida dias depois da morte de Max Wolf Filho, além de ser uma das batalhas mais importantes da FEB, teve uma importância estratégica. Os norte-americanos contavam com a vitória pela superioridade numérica e de material em relação aos alemães. No entanto, em terreno montanhoso essa vantagem era anulada pelo melhor posicionamento das tropas inimigas. “Montese era uma das últimas posicões de montanha dos alemães. Eles não podiam perder a cidade porque do contrário seriam empurrados para a planície do Pó, onde os aliados fariam valer de uma forma decisiva a vantagem de homens, tanques e carros”, diz a professora Carmen Rigoni. De fato, quando as tropas alemãs perderam definitivamente a vantagem de estar no alto dos montes, só lhes restou bater em retirada em direção à Alemanha. Na perseguição, a FEB chegou a cercar uma divisão inimiga inteira, que se rendeu aos brasileiros. Menos de um mês depois da conquista de Montese, a guerra na Europa terminaria com a vitória aliada. (MAC)

Publicado em 26/07/2008, Marcio Antonio Campos

Fonte: Gazeta do Povo
http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=790857&tit=Max-Wolf-heroi-paranaense-da-FEB

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Brasil foi o país com mais filiados ao Partido Nazista fora da Alemanha

Com base em documentos de arquivos alemães, pesquisadora identifica atuação do Partido em 83 países. O grupo brasileiro tinha o maior número de integrantes

A historiadora Ana Maria Dietrich analisou, em seu mestrado, documentos do Deops-SP que revelaram a atuação do Partido Nazista alemão (NSDAP) no Estado de São Paulo, entre 1928 e 1938. Algumas dessas descobertas incentivaram a historiadora a ir para a Alemanha, onde atualmente pesquisa o tema para o doutorado. O objetivo é compreender a atuação do NSDAP em território brasileiro sob a perspectiva do III Reich.

O doutorado é feito pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em parceria com o Centro de Estudos de Anti-Semitismo da Universidade Técnica de Berlim, onde Ana Maria atua como pesquisadora convidada. A historiadora utiliza como fontes as atas do Arquivo Federal Alemão e o Arquivo político do Ministério das Relações Exteriores, em Berlim.

A pesquisadora pretende analisar, também, revistas e jornais da linha nacional-socialista publicados no Brasil em alemão, disponíveis no Instituto de Relações Exteriores, em Stuttgart, e verificar arquivos de outras cidades alemãs. As fontes orais - entrevistas com ex-partidários ou familiares - também estão entre as suas prioridades.

"Além de revelar um capítulo da história do Brasil, minha pesquisa está fundamentada no fortalecimento dos valores democráticos no Brasil e em outros países da América Latina", conta.

Nacional-socialismo no Brasil

Entre os primeiros resultados, Ana Maria identificou que o Landesgruppe Brasilien (o grupo do país Brasil) integrava uma espécie de rede mundial com outras filiais do partido. Esta "rede" estava presente em 83 países, em todos os continentes, com 29 mil integrantes.

As filiais estavam ligadas à Organização do Partido Nazista no Exterior (AO), um departamento do governo do Reich. Todas as diretrizes, ordens e controles partiam desta central. "A estruturação como uma espécie de 'rede de aranha' me chamou a atenção, pois mostra a força mundial do movimento."

O Landesgruppe Brasilien tinha o maior número de filiados do Partido Nazista fora da Alemanha, com 2.903 integrantes, superior à Holanda (1.925), Áustria (1.678) e Polônia (1.379). Dos filiados no Brasil, 92,7% eram alemães natos e apenas 2,45% eram brasileiros. "Para o governo Vargas, o NSDAP era um pequeno partido voltado para uma minoria estrangeira (alemães). Mas para o governo de Hitler, a história era outra."

"Uma grande surpresa foi localizar documentos sobre o norte do Brasil e saber que o Partido também desempenhou um importante papel nos estados de Pernambuco, Bahia e Pará." Ana Maria pretende comparar a história do NSDAP nos diferentes estados brasileiros, principalmente na relação norte / sul do País.

"Inferno" tropical

Se nos panfletos de propaganda para imigração que circulavam na Alemanha entre 1920 e 1930 o Brasil foi descrito como paraíso tropical, Ana Maria constatou que nos relatórios da Organização do Partido Nazista no Exterior e nos artigos de alguns jornais alemães, o País era visto pelos nazistas como "inferno" tropical.

"Isso não aconteceu pelas diferenças climáticas, nem pelas doenças que os imigrados tinham de enfrentar, mas pelo fato de os "arianos puros" conviverem com negros e outras etnias na lavoura e nas cidades. A miscigenação característica da formação do povo brasileiro era absolutamente inaceitável para o III Reich."

Durante o mestrado, Ana Maria identificou Hans Henning von Cossel como chefe do Partido Nazista no Brasil e também como editor do jornal semanal Deutscher Morgen, que circulou livremente no País entre 1932 e 1940. Na Alemanha, a pesquisadora conseguiu entrevistar duas filhas de Cossel. "Elas relataram que o pai tinha uma boa relação com os estadistas da época, como Getúlio Vargas e Adolf Hitler, sendo que este último ele encontrou pessoalmente."

Segundo Ana Maria, Cossel fazia viagens pelo Brasil para divulgar o nacional-socialismo e também para a Alemanha, onde encontrou o chefe da Organização do Partido Nazista no Exterior, Ernst Wilhelm Bohle. "Cossel era, para o Partido, o "Fuhrer" no Brasil. Exercia as funções de "Vertrauensmann" (homem de confiança) do III Reich e adido cultural da Embaixada Alemã no Rio de Janeiro, além de manter o status de correspondente do III Reich, transmitindo informações importantes sobre o Brasil para a Alemanha.

Aspectos sociais

"O viés 'social' também é uma das novidades do meu trabalho, em complemento a importantes estudos de historiadores alemães e brasileiros sobre a chamada 'história política' do Partido Nazista no exterior e no Brasil."

Segundo a historiadora, ao se estudar as consequências do fenômeno do nazismo para o Brasil e para a humanidade, evita-se a proliferação da ideologia e de movimentos de extrema-direita. "Só através do debate deste período histórico poderemos informar às futuras gerações sobre a importância da democracia, contra qualquer tipo de discriminação em relação às minorias."

Ana Maria faz doutorado-sanduíche com bolsa do CNPq / DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico). A orientação no Brasil é da professora Maria Luíza Tucci Carneiro, da FFLCH, e na Alemanha é do professor Wolfgang Benz, da Universidade Técnica de Berlim. A previsão é que, em 2006, seus estudos estejam concluídos. Segundo a pesquisadora, o mestrado será publicado no segundo semestre deste ano pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

[imagens: arquivo Ana Maria Dietrich]

Valéria Dias / Agência USP

Fonte: USP Online
http://www2.usp.br/index.php/sociedade/442

terça-feira, 14 de outubro de 2008

O integralismo brasileiro, o serviço secreto nazista e os militares

Reprodução de trechos escolhidos do livro "Crônica de uma guerra secreta - Nazismo na América: A conexão argentina", de autoria do embaixador Sérgio Corrêa da Costa, sobre participação de grupos brasileiros em colaboração com o regime nazista.

Sobre a ligação entre líderes do integralismo brasileiro, o serviço secreto nazista e os militares argentinos do GOU (páginas 127/131)

"Pesquisas recentes na Argentina, bem como documentação apreendida pelos aliados, mostram que um certo número de militantes integralistas, inconformados com o Estado Novo, que os marginalizara inteiramente, passaram a conspirar contra o regime de Vargas. O Putsch de 11 de maio de 1938, mal preparado, serviu de pretexto ao governo para livrar-se definitivamente dos camisas-verdes e determinar o exílio do chefe nacional, Plínio Salgado, em Portugal.

Walter Schellenberg, chefe do SD e brigadeiro das SSs, contaria em seus depoimentos ter sido dele a iniciativa de contatar Plínio Salgado em Lisboa. O fato de ser líder de um importante movimento "antidemocrata e anti-semita" na América do Sul o tornava aliado natural do serviço secreto de Himmler (6). Em fins de 1941 houve um primeiro contato entre Erich Schröder, representante da Gestapo em Portugal, e Hermes Lins de Albuquerque, secretário de Plínio. Informado por Schröder de que o político brasileiro "constituia uma boa oportunidade a ser explorada pelo serviço secreto", o próprio Schellenberg decidiu ir ao seu encontro, em Lisboa. De tempos em tempos , alías, o chefe do SD visitava clandestinamente Portugal, onde tinha bons contatos no governo e na polícia.

A entrevista com o chefe dos camisas-verdes ter-se-ia realizado em fins de março de 1942, presentes também Schröder e Albuquerque. Plínio Salgado teria pedido o reconhecimento, pela Alemanha, da sua condição de "lider político do Brasil", conforme recordaria Schellenberg. "Desejava, ainda, nossa assessoria na formação de um serviço secreto, além de apoio material. O fundamento de sua proposta era a hostilidade ao bolchevismo."

Segundo o depoimento de Schröder, Schellenberg prometeu empenhar-se em fornecer essa colaboração ao movimento integralista após a vitória da Alemanha, e designou o Sturmbannführer Adolf Nassenstein para ser a ligação, cabendo-lhe receber e encaminhar as comunicações do chefe integralista à secção latino-americana do SD, em Berlim.

Johann Siegfried Becker - antes de assumir a chefia suprema da espionagem nazista na Argentina, que exerceu entre 1943 e 1945 - ter-se-ia também reunido com Plínio Salgado e Albuquerque em 1942. Assegurou os recursos financeiros solicitados pelos brasileiros em troca de uso do seu sistema de correio. Becker recebeu ordem de "ensanchar desde Buenos Aires la veta integralista abierta en Portugal", pondo em marcha uma conspiração que continuasse dando frutos mesmo depois de finalizado o conflito (7).

A ligação entre Perón e o SD era feita por um coronel do GOU, Arturo Brinkmann. Além do comando da Primeira Região da província de Buenos Aires, chefiava o serviço então conhecido como "Organização Brinkmann", de combate à contra-espionagem americano-britânica. Por sua vez, a ligação entre Brinkmann e Siegfried Becker estava confiada a um nacionalista argentino, Guillermo Laserre Mármol, editor do suplemento em castelhano do La Plata Zeitung. O braço direito de Becker era um executivo da Bayer - Hans Harmeyer.

Em meados de 1942, Harmeyer convocou Laserre Mármol para pô-lo em contato com dois integralistas, então em Buenos Aires: Vicente Caruso e Jair Tavares, este último membro da Câmara dos Quatrocentos da AIB. Foram ambos muito claros. Não se conformavam com a crescente tendência de Getúlio Vargas de apoio à política belicista dos Estados Unidos, sob a influência do chanceler Oswaldo Aranha. Por isso, votaram fervente admiração à revolução argentina de 4 de junho e sua decidida adesão a uma neutralidade exemplar. Esses propósitos foram transmitidos, na própria sede da Bayer, a Harmeyer, que muito se animou ante a perspectiva de união de esforços entre integralistas brasileiros e nacionalistas argentinos. Os elementos alemães no Brasil, acrescentou Harmeyer, "estavam certamente chamados a desempenhar um papel de importância apreciável na concretização dessas perspectivas (8).

Seguiu-se nova reunião, esta no café Richmond, calle Esmeralda, a que compareceram Harmeyer e um outro colaborador de Becker, o ex-diplomata romeno Gustavo Seraphim, que servira no Rio de Janeiro.

Passo seguinte, o coronel Brinkmann recebe os dois integralistas em sua residência, e deles ouve plena ratificação do propósito de promover no Brasil um "levante cívico-militar" que derrubasse o governo Vargas e implantasse uma política totalmente similar à da revolução argentina de 4 de junho. Como penhor das suas palavras, dispunha-se a promover a vinda à Argentina de um dos chefes do movimento. Em segunda reunião no domicílio de Brinkmann, este informou haver transmitido ao "ministério da Guerra" a essência do que fora conversado. Em princípios de dezembro, com a chegada do "calificado jefe integralista Rodrigues Contreras" (Nestor Contreiras Rodrigues), houve uma reunião plenária em casa de Brinkmann, já assessorado por dois oficiais do Serviço de Informação do Exército, tenentes Ávila e Jorge Osinde, que tomaram parte ativa nas conversações (9).

Contreiras Rodrigues - um dos três chefes provinciais do Rio Grande do Sul - julgava favoráveis as perspectivas de mudança em seu país, com a conquista do poder pelos integralistas. Mostrou-se preocupado com as manobras ianques, que buscavam criar incidentes na fronteira argentina e, mesmo, razões de conflito com o Brasil. Recomendou um sistema confidencial de entendimentos entre os chefes de guarnições argentinas, a serem indicados pelo coronel Brinkmann, e os correspondentes brasileiros, que seriam confidencialmente assinalados pelos dirigentes integralistas.

Como a guerra na Europa ainda apontava nitidamente a vitória do Eixo, o acordo argentino-brasileiro deveria assumir um caráter sul-americano, com projeções próprias, independentes do conflito europeu, tendo em vista a defesa dos interesses ibero-americanos face a qualquer tentativa de submissão a planos estranhos. Nesse contexto, a coincidência do interesse alemão com a manutenção da neutralidade argentina e brasileira propiciaria decidido apoio dos elementos alemães do Brasil. Para intenso interesse de Brinkmann e dos dois tenentes, o chefe integralista teria revelado "aspectos das instalações militares ianques no Brasil", ansiosamente procurados pela espionagem nazista na Argentina. Contreiras Rodrigues declarou que voltaria imediatamente ao Brasil Para transmitir "a Raimundo Padilha, delegado supremo do exilado Plínio Salgado", o resultado das conversações. Ficou entendido que Lasserre Mármol seria o elemento de ligação (10).

Com excessão de Lasserre Mármol, os demais conspiradores estavam a par do acordo de cooperação entre Schellenberg e Plínio Salgado. Dias depois, tendo Harmeyer mostrado a Lesserre Mármol uma carta de Contreiras Rodrigues com "amplias noticias" sobre o conversado, Lasserre Mármol comentou com Brinkmann a extensão do conhecimento de Harmeyer do "asunto Brasil". O coronel foi enfático. "La relación directa entre el integralismo y los dirigentes de Eje, expuesta por los brasileños em la última entrevista" era "un factor de importancia fundamental en el éxito de esta negociación" (11).

Logo após o regresso de Contreiras Rodrigues ao Rio, teria havido uma reunião plenária de chefes integralistas, supostamente com a participação de comandantes de guanições. Dada a importância das deliberações, e seu duplo aspecto civil e militar, ficou decidido o envio a Buenos Aires de um prestigioso militar, o major Jayme Ferreira da Silva, "profesor de la Escuela Militar brasileña, vinculado por ser compañero de promoción a diversos generales en servicio activo". Sendo o major virtualmente cego, o pretexto para despistar a espionagem aliada foi o de que iria consultar um oftalmólogo de renome. Desembarcou, assim, na aeroporto de Pacheco em companhia da mulher e de dois filhos menores, hospedando-se no hotel Nogaró, na Diagonal Sur, em frente à Secretaria do Trabalho, feudo de Perón."

Seguiu-se conferência noturna na casa de Brinkmann , a que assistiram, além do recém-chegado, Caruso, Tavares, Lasserre Mármol e o tenente Ávila. "Luego de describir las relaciones ideológicas Y sentimentales entre el integralismo brasileño y los partidos totalitarios europeus, incluyendo los de España y Portugal y sus respectivos gobiernos, y de destacar la relación de amistad personal existente entre Plínio Salgado, Oliveira Salazar, Mussolini Y Hitler, expresó que su presencia e ésta obedecia efectivamente a la determinación de la jefatura integralista, con anuencia de Plínio Salgado y con la participación de un importante sector del ejército brasileño, de procurar establecer una alianza virtual de fines e objectivos com el gobierno de la revolución nacionalista argentina." (12)

Notas

6 . Uki Goñi, Perón Y los alemanes: La verdad sobre el espionaje nazi y los fugitivos el Reich, p. 134-5
7. Id., ibid., p. 135, ver nota 7
8. Id., ibid., p. 136
9.Id., ibid., p. 137
l0. Id., ibid., p. 137-8
11. Id., ibid., p. 138
12. Id., ibid., p. 138-9

Fonte: Transcrição(adaptada)do tópico da lista Holocausto-doc O integralismo brasileiro, o serviço secreto nazista e os militares
Contribuição de Borges
http://br.groups.yahoo.com/group/Holocausto-Doc/message/4439

sexta-feira, 11 de julho de 2008

O centenário de Alexandre Altberg, o Niemeyer alemão

No Brasil desde 1931, ele assina algumas das primeiras construções modernistas do Rio e é tema de pesquisas

Roberta Pennafort

Há sete meses, o Brasil comemorou o centenário de seu maior arquiteto, Oscar Niemeyer. Uma semana atrás, outro nome importante do modernismo brasileiro também completou cem anos: Alexandre Altberg, alemão que chegou ao País em 1931 e assina algumas das primeiras construções do estilo no Rio. Bem de saúde, ele acha graça do súbito interesse por sua trajetória: virou tema de documentário e estudos acadêmicos.

Quando Altberg deu vida a seus trabalhos mais importantes, de 1932 a 1936, Niemeyer - de quem lembra como "o rapazinho que trabalhava no escritório de Lúcio Costa" - ainda se iniciava na profissão. Com diploma de engenheiro-arquiteto, o alemão, que havia passado pelas salas de aula da lendária Bauhaus e trabalhara com Arthur Korn, um dos nomes de maior destaque da vanguarda de Berlim, nunca teve muito contato com ele.

No Rio, onde montou o 1º Salão de Arquitetura Tropical, tinha como amigos o poeta Manuel Bandeira, os pintores Lasar Segall e Guignard e o arquiteto Affonso Eduardo Reidy (construtor do Museu de Arte Moderna da cidade). A vinda ao Brasil com a família se deu pelo fato de serem judeus numa Alemanha em plena ascensão nazista. Os pais vieram antes e se instalaram em Ipanema, então pouco povoada.

Foi no bairro e em seus arredores (Leblon, Gávea) que Altberg construiu seus prédios e casas. Alguns foram demolidos no processo de verticalização da antiga capital federal. Os oito que permanecem de pé estão descaracterizados, como o da esquina das Ruas Humberto de Campos e Joana Angélica e os três prédios geminados da Paul Redfern, em Ipanema.

DOCUMENTÁRIO

As histórias de sua vida estão sendo registradas pela jovem cineasta alemã Inken Sarah Mischke, que se encantou com ele há dois anos e, nas três vezes em que foi a Marília (SP), onde Altberg passou a morar após se casar com a atual mulher, encontrou um senhor lúcido e bem humorado. Filmou também na Alemanha."Essa é uma história que precisa ser conhecida por alemães e brasileiros. Quero mostrar não só um retrato dele, mas o momento da chegada da modernidade ao Brasil." Antes dela, o arquiteto Pedro Moreira já se interessara por Altberg. Para a pesquisa de seu doutorado em História da Arquitetura, levantou a biografia dele e de outro arquiteto estrangeiro que viveu os primeiros momentos do modernismo brasileiro, o russo Gregori Warchavchic - foi dele a primeira casa no estilo da cidade, em Copacabana, em 1930.

Um ensaio seu sobre o até então desconhecido Altberg foi publicado num portal de arquitetura e o "revelou" a estudiosos. Moreira e o alemão começaram a se corresponder em 2003. Detalhe: o alemão usa sempre computador. Surpreendeu-se com sua memória prodigiosa. "É uma pessoa em paz com a vida", descreve o arquiteto, que está em Berlim por conta do doutorado e planeja dar início a um pedido de tombamento dos prédios. Além de seu trabalho, mais dois que contemplam Altberg estão sendo desenvolvidos: um, de um doutorando alemão que estuda em Viena; outro, de um estudante da Universidade Federal de Minas Gerais.

PRANCHETA

Ao contrário de Niemeyer, que se dedica ao ofício até hoje, o alemão largou a prancheta nos anos 40. E sofre com a deformação de seus projetos. "Isso me dói. É como se a gente tivesse perdido um parente."

Por outro lado, parece não dar importância ao fato de seu nome ter permanecido à margem da historiografia oficial - embora tenha tido presença marcante nos primeiros anos do modernismo brasileiro, como editor da Base - Revista de Arte, Técnica e Pensamento, considerada revolucionária para as artes gráficas no País e cujo artigo de abertura foi assinado por Mário de Andrade.

Para Moreira, isso se deu por sua condição num país que, em 1937, entraria na ditadura do Estado Novo. "Altberg chegou ao Rio num período crítico da história. O Brasil começava a ter de se posicionar contra a Alemanha, e os alemães eram perseguidos. Além disso, o anti-semitismo era algo muito enraizado", explica.

Fonte: Estadão
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080706/not_imp201328,0.php

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