As meninas do Reich. 11/05/2013 | 17h01
O julgamento de Beate Zschäpe, o mais importante das últimas décadas contra um grupo neonazista alemão, evidenciou o papel feminino nada secundário no extremismo xenófobo do século 21
Figura central da Clandestinidade Nacional Socialista, Beate morou com militantes que teriam se suicidado Foto: CHRISTOF STACHE / AFP
Léo Gerchmann
leo.gerchmann@zerohora.com.br
Professora universitária em Frankfurt, na Alemanha, Michaela Köttig, cujo nome consta na lista negra de grupos neonazistas (eles não têm a imagem dela, e ela não se deixa fotografar), vê se comprovar a tese que defende com ardor: a de que as mulheres jamais se limitaram e continuam não se limitando a papéis secundários no extremismo xenófobo. Mais do que isso: para surpresa de quem imagina a Alemanha imune ao vírus letal do nazismo por conta dos anticorpos adquiridos 70 anos atrás, na II Guerra Mundial, Michaela sustenta que skinheads e assemelhados não são meros casos de polícia. Refletem uma mentalidade ainda presente nas famílias e nas instituições alemãs.
O fato que corrobora os 20 anos de estudos acadêmicos da professora alemã é o atual julgamento, em Munique, da neonazista Beate Zschäpe, uma das fundadoras e líderes do grupo Clandestinidade Nacional Socialista (CNS). Beate e seus comparsas são acusados de terem matado 10 pessoas na Alemanha, a maioria de origem turca, entre 2000 e 2007. Beate teria participado de 15 assaltos a bancos para financiar, por exemplo, dois atentados à bomba em bairros de imigrantes. Ela só foi presa em 2011, quando se entregou à polícia após o suicídio de outros dois criadores da CNS.
Michaela, 48 anos, está em Porto Alegre para participar, às 19h30min de quarta-feira, do painel Mulheres, Violência e Criminalidade, no Instituto Goethe (com entrada franca), a convite do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Em entrevista a ZH da quarta-feira passada, ela disse que o próprio CNS, de Beate, é uma demonstração de o quanto o neonazismo está impregnado na sociedade alemã: há, apenas nessa unidade extremista, 129 integrantes, muitos deles mulheres.
Com o sorriso acolhedor que suaviza a sonoridade seca do idioma, Michaela perfila as linhas da sua tese sobre a participação de meninas e mulheres jovens em grupos extremistas alemães. Acredita que, se Beate não tivesse se entregado à polícia, os crimes poderiam não ter sido elucidados.
A professora também é cética quanto à possibilidade de esses crimes levarem a outras investigações.
— O serviço secreto alemão está envolvido no processo. O serviço secreto falhou. Não acredito que se empenhe em elucidar esse e outros casos. Vão tentar encobrir a participação deles no cenário neonazista, porque têm agentes infiltrados nos movimentos. Esse caso ocorreu durante tantos anos porque tinha o envolvimento do serviço secreto — analisa a especialista.
Crítica à análise sexista do caso
Michaela também critica a sociedade civil em geral e a imprensa germânica em especial pela abordagem que dão ao CNS.
— A imprensa erra por se ater ao envolvimento sexual entre a mulher que sobreviveu e outro integrante do grupo. O mais importante é entender o que ocorre, as motivações e o que fizeram. Isso mostra como a imprensa lida com o envolvimento das mulheres nos movimentos neonazistas. Acham que elas estão lá por conta dos homens e que não têm motivação política própria, como se a violência fosse uma coisa de homens, com as mulheres tendo participação subalterna — diz.
A estudiosa sustenta que a realidade em relação à mulher sempre foi bem outra. Nos anos 1940, havia grupos feministas que participavam ativamente do Partido Nazista e assumiam papéis importantes enquanto os homens iam à guerra. Atualmente, segundo ela, "as estratégias de penetração nas instituições levam mulheres neonazistas e se tornarem professoras para formar pessoas, os grupos discutem de forma deliberada como influenciar as novas gerações".
— As mulheres atuam também como advogadas e professoras de história, por exemplo. São posições estratégicas na sociedade com o objetivo de influenciar. Na universidade, não há essa reflexão, pensam que todos lá são de esquerda, que esse problema não existe. Tenho exemplos de meninas normais, que são engajadas militantes do movimento neonazista. Algumas são da direção do movimento.
A noiva nazi _ Vida no underground
— Uma suposta célula neonazista alemã vai a julgamento em Munique por ligação com assassinatos de motivação racial.
— Os crimes ocorreram ao longo de sete anos, entre 2000 e 2007. Morreram oito turcos, um imigrante grego e um policial alemão.
— Beate Zschaepe, 38 anos, é acusada de participar da Clandestinidade Nacional Socialista (CNS), que matou 10 pessoas, a maioria de origem turca. Ela nega as acusações.
— Além da cumplicidade com os assassinatos, ela é acusada de envolvimento em 15 roubos à mão armada, um incêndio criminoso, e dois ataques à bomba. Beate pode ser condenada à prisão perpétua. Quatro homens também são acusados de colaboração com a organização.
— O grupo foi descoberto em novembro de 2011. Dois comparsas de Beate, Uwe Mundlos, 38, e Uwe Boenhardt, 34, suicidaram-se após um assalto a banco frustrado. Beate
morava com os dois homens em um apartamento em Zwickau. Uma arma encontrada com eles foi usada para matar 10 pessoas.
— No local, foi encontrado um vídeo mostrando os corpos das vítimas e identificando a CNS como autora dos assassinatos. Nas imagens, aparecia um desenho da Pantera Cor-de-Rosa, que atualizava um placar de mortes.
— O caso gerou críticas à polícia, que antes de descobrir a célula de extrema-direita, havia atribuído os crimes à máfia turca. O escândalo provocou demissões na área de inteligência. Arquivos de inteligência sobre extremistas de direita teriam sido destruídos após as atividades do grupo virem à tona.
— Na segunda-feira, ao entrar no tribunal, Beate permaneceu de braços cruzados e de costas. A defesa conseguiu a prorrogação do julgamento para 14 de maio, alegando preconceito por parte do juiz.
Número de adeptos dobrou na Alemanha
Em 20 anos, o contingente de neonazistas na Alemanha subiu de 20 mil para 40 mil. São pessoas que falam em criar o IV Reich, realizam acampamentos e fazem atividades recreacionistas que remontam aos antigos germânicos, como disputas de arco e flecha. Os grupos mais visados são ainda os judeus, além de imigrantes (especialmente quando são negros), muçulmanos e, em uma menor escala, italianos e estrangeiros do Leste Europeu.
— Há até grupos de anti-antifascistas, que ameaçam sindicatos e personalidades. Fazem listas de pessoas que devem ser perseguidas. Eu estou nessas listas — diz a professora Michaela Köttig.
O protagonismo da mulher em movimentos nazistas mostra um fenômeno mais amplo, de acordo com Michaela Köttig: a penetração resiliente das ideias nacionalistas e xenófobas na sociedade alemã.
Ela cita três itens que estimulam a adesão de mulheres ao movimento nazista: a falta de reflexão dentro das famílias a respeito da participação no nazismo durante a II Guerra Mundial, o apego dos netos a avós afeitos a ideias nacionalistas (ao mesmo tempo em que mantêm conflitos geracionais com os pais) e o contexto social, genérico, refratário a discutir o nazismo. Isso, segundo ela, forma um ambiente propício.
— Não se politiza o tema (do neonazismo), trata-se dele como se fosse delinquência juvenil. Acompanhar, perseguir ou reprimir a extrema-direita é um problema, porque a sociedade não quer saber disso, por conta do passado. Atualizar o tema do nazismo significa atualizar o papel que as famílias tiveram. Atinge a todos. Melhor ignorar, virar as costas. Minha área de pesquisa é justamente sobre isso, sobre as biografias dessas famílias e sobre as mulheres que se engajam nessas organizações. São biografias de famílias, a partir de entrevistas com famílias em mais de uma geração.
Direita simpatiza com Ahmadinejad
A ideia segundo a qual a economia em crise justificaria a persistência das ideias nazistas na sociedade alemã é contestada por Michaela, que, ao ser perguntada a respeito, responde com certa ironia.
— Melhor seria se as causas fossem econômicas, vinculadas à austeridade. O fato é que, depois da reunificação, passou a vingar a ideia de uma Alemanha grande, única. Em meados dos anos 2000, os movimentos deixaram de ser marginais. Mas eles passaram a se entranhar na sociedade, nas instituições estabelecidas. Começaram a fazer contatos e contaminar as instituições dos mais diversos tipos, como associações de pais. Todas as instituições passaram a ser alvo do movimento. Fica muito mais sutil. A ideia vai se consolidando. De repente, todos estão pensando igual, e ninguém se deu conta.
E sobre a possibilidade de surgir uma figura como a de Adolf Hitler? Michaela não acredita que se chegue a tanto.
— A estrutura democrática da Alemanha não permitiria isso. O número de pessoas que simpatizam com a democracia é muito maior. Ainda assim, não se deve negligenciar a presença desses movimentos.
Quando o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, nega o Holocausto, Michaela diz que a reação geral é de choque. A direita, claro, simpatiza com as declarações dele, e esses grupos se valem dessas manifestações.
Fonte: zerohora
http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/mundo/noticia/2013/05/neonazismo-alemao-apresenta-sua-nova-face-4135046.html