sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Os que não foram heróis - parte 2

Os que não foram heróis - continuação
Por Renato Mezan

ensaio
HISTÓRIA

Arendt narra um fato que deixa isto absolutamente claro: em Amsterdã, em 1941, alguns judeus ousaram atacar um destacamento da Gestapo. A represália foi fulminante: 430 judeus foram presos e torturados, depois deportados para Buchenwald e Mauthausen. O mesmo aconteceu em outros lugares, com judeus e não-judeus que ousavam se rebelar ou sabotar instalações alemãs; a retaliação vinha logo, sobre centenas de inocentes, e com uma brutalidade aterradora. Não era viável resistir individualmente: esta é a verdade.

A Resistência francesa e os guerrilheiros que na Iugoslávia infernizavam a vida dos ocupantes foram constituídos a partir de bases preexistentes, especificamente o Partido Comunista, organizado já para a vida clandestina segundo as diretrizes de Lênin no famoso opúsculo Que Fazer?. Ora, os judeus como grupo eram bem organizados -as coletividades dispunham de escolas, orfanatos, órgãos assistenciais e, obviamente, sinagogas-, mas não se tratava de estruturas que pudessem ser convertidas do dia para a noite em entidades combatentes, sem falar no fato de que a maioria dos judeus não teria aderido a elas se por milagre pudessem escolher. Foi nas fileiras dos movimentos juvenis sionistas que finalmente se recrutaram os que podiam lutar, mas isto ainda estava longe, no horizonte distante, quando no verão de 1940 a Europa inteira se cobria de suásticas e o Terceiro Reich parecia mesmo poder durar mil anos.

Este poder se abate sobre os judeus com uma velocidade e com uma eficácia que os deixou completamente sem opção. No que se refere à Polônia, o processo Eichmann revelou que já em 21 de setembro de 1939, quando as ruínas de Varsóvia ainda fumegavam, Reinhard Heydrich -o “engenheiro da Solução Final”- convocou uma reunião em Berlim para tratar do destino dos três milhões de judeus que ali viviam. Os nazistas jamais esconderam seu anti-semitismo, mas agora ele não se limitava à discriminação legal ou a ocasionais episódios de brutalidade. Tratava-se de passar, como diz Heine na frase que tomei como epígrafe, das palavras aos atos. As diretivas do Führer eram: concentração imediata dos judeus poloneses em guetos, estabelecimento de Conselhos Judaicos (“Judenräte”) e deportação de todos os que viviam na parte ocidental do país para a área do Governo Geral da Polônia. Isto porque os territórios que faziam fronteira com a Alemanha haviam sido pura e simplesmente anexados ao Reich, com o nome de Warthegau (continham importantes reservas de minérios e petróleo); a parte oriental, até a fronteira do território anexado pela União Soviética, era conhecida como “Governo Geral”, e seria o palco do extermínio nos anos seguintes.

As ordens foram seguidas escrupulosamente, e a máquina pôs-se em marcha. O território do Reich deveria ser tomado “judenrein” o quanto antes: e isto significava deportar 400 mil judeus da Alemanha, da Áustria e dos Sudetos checos, além de 600 mil da nova província formada com a anexação da Polônia ocidental. Ainda não se falava em extermínio físico, mas é evidente que movimentar estas centenas de milhares de pessoas rumo a guetos na Polônia central, em trens de carga hermeticamente fechados, só podia acarretar conseqüências pavorosas. A concentração em guetos era uma etapa essencial neste esquema, e havia a diretriz bastante lógica de que eles fossem estabelecidos perto das estações ferroviárias, a fim de facilitar o transporte. Desta forma, em poucos meses se conduziram à Polônia e se trancaram em bairros superpovoados todos os judeus que tinham permanecido nos territórios do Reich.

Uma operação desta envergadura colocava problemas logísticos de extrema complexidade, e diversos departamentos do governo e das SS tiveram de trabalhar em conjunto -o Ministério dos Transportes, por exemplo, devia cuidar para que os horários dos trens de deportados não colidissem com o funcionamento dos trens normais, a polícia precisava garantir que os embarques se dessem em ordem etc. Mas tudo dependia, antes ainda, da boa vontade dos judeus em “cooperar”, como disse com convicção Eichmann em seus depoimentos. Ora, além dos motivos que já mencionei -a inércia natural a quem vive num país e obedece as suas leis, a dificuldade de opor resistência ativa à força inacreditável e à aparente invencibilidade dos alemães, mito que só foi abalado quando os russos impediram a conquista de Stalingrado e a maré da guerra começou a virar- há ainda um outro fator a ser considerado.

Trata-se do seguinte: a concentração -não em campos de prisioneiros, mas em guetos onde a vida prosseguia tão normalmente quanto possível- era ainda uma situação tolerável. Havia recursos para a iniciativa individual, desde a astúcia para conseguir alimentos ou remédios até a possibilidade de fugir, esconder-se com amigos ou no campo etc. A maioria dos judeus era de homens e mulheres com família, e julgavam, não sem razão, que seria melhor obedecer aos éditos do ocupante até que aquele pesadelo terminasse: não podiam suspeitar que a cúpula nazista já havia decidido seu extermínio.

Um outro elemento de enorme importância é o que chamei atrás de inércia. Não uso este termo num sentido moral: penso no fato de que as pessoas tendem naturalmente a se acomodar às circunstâncias da vida quando lhes parece que não há alternativa viável a elas. Em termos sociais, é preciso levar em conta que existiam governos nestes lugares, mesmo que títeres dos nazistas; havia leis a serem obedecidas, ainda que iníquas, uma polícia que vigiava as pessoas -infelizmente, uma polícia judaica que se somava às SS- e, sobretudo, o conhecimento de que na maior parte dos países a população apoiava, passiva ou ativamente, as medidas anti-semitas(1). Fugir em massa? Impossível. Resistir individualmente, só através da fuga ou do ocultamento por cristãos -foi o que aconteceu com a família de Anne Frank e com tantos outros. Indefesos, desarmados, tendo a perder o pouco que haviam conseguido salvar, e ordeiros por séculos de obediência à Lei, os judeus, nos primeiros dois anos da guerra, simplesmente não tinham outra opção exceto a de seguir vivendo.

A invasão da Rússia, em 22 de junho de 1941, marcou outro ponto de virada nessa história sinistra. Hitler, agora inteiramente tomado por sua megalomania, ordenou o extermínio físico de todos os judeus da Europa, como Heydrich contou a Eichmann numa reunião em novembro daquele ano. E, no Terceiro Reich, “Führerworte haben Gesetzkraft”, as palavras do Führer tinham força de lei. Por extraordinário que pareça, este era um dos princípios fundamentais da legalidade nazista –“l’Etat c’est moi”, literalmente e num sentido que nem mesmo Luís XIV podia suspeitar. Diversos textos jurídicos da época, citados por Hannah Arendt, não deixam qualquer dúvida a respeito.

Até então, havia na verdade dois métodos para lidar com a “Judenfrage”. A política de concentração atingia os judeus trazidos do Reich e os poloneses, assim como, nos diversos países ocidentais, as respectivas comunidades. Com a ocupação dos territórios da União Soviética, que incluíam os países bálticos com sua grande população judaica, entraram em cena os “Einsatzgruppen”, ou unidades de assalto, encarregadas de realizar fuzilamentos em massa. Havia quatro destes batalhões de assassinos, e seus alvos eram todos os funcionários soviéticos, além dos profissionais liberais, jornalistas, intelectuais e de modo geral a intelligentsia destas regiões, que, no radioso futuro traçado pelos nazistas, teriam a missão de fornecer trabalhadores escravos para a raça dominante. A estas categorias logo se somaram os judeus, os ciganos, os “rebeldes” de todo tipo, que pudessem representar alguma “ameaça” à “segurança do Reich”. Cerca de 300 mil pessoas foram assim fuziladas, não sem antes cavarem seus próprios túmulos coletivos, que em seguida eram cobertos de terra, às vezes com os corpos ainda se retorcendo nos últimos estertores da agonia.

Mas um método tão lento de matança não permitiria liqüidar com rapidez toda a população judaica do continente. A Solução Final veio para resolver este problema, e começou a ser delineada no outono de 1941, quando se decidiu ampliar o programa de eutanásia até então aplicado somente aos doentes mentais da própria Alemanha. Um decreto de Hitler datado de 1º de setembro de 1939 -o primeiro dia da guerra- ordenava dar a estes infelizes “uma morte misericordiosa”. O envenenamento por gás foi a fórmula encontrada, e até meados de 1941 foram mortos 50 mil internos em asilos alemães, austríacos e dos Sudetos.

Este foi o ensaio geral da “Endlösung”. Em janeiro de 1942, no subúrbio berlinense de Wannsee, Heydrich convocou uma reunião com os principais executivos do serviço público alemão e com os encarregados de todos os departamentos da SS. O objetivo era avaliar até que ponto a burocracia estatal de carreira estaria disposta a cooperar com o projeto de genocídio, a manter o segredo necessário para que as medidas fossem eficazes e de modo geral a considerar a ordem de extermínio como mais uma tarefa a ser executada. Não houve qualquer oposição da parte destes honrados funcionários, de quem dependia, na verdade, o bom funcionamento da máquina estatal; quanto às SS, era sua tarefa cumprir as ordens de Hitler.

Eichmann assistiu a esta reunião, assim como Oswald Pohl, encarregado do Wirtschafts und Verwaltungshauptamt -o WVHA, ou Escritório Central para a Economia e Administração da SS-, do qual passaria a depender a operação concreta dos campos. Matar pessoas em escala industrial tornava-se assim um assunto “econômico” e “administrativo”, pois havia problemas a serem resolvidos racionalmente -a capacidade de absorção dos campos, por exemplo, tinha de ser calculada em conjunto com as possibilidades de transporte de gente de toda a Europa, as “cargas” deviam lotar os trens para não desperdiçar combustível, havia questões de logística, produção do gás etc. O departamento de Eichmann foi encarregado de organizar o transporte, e durante os anos seguintes ele cumpriu com horrenda eficácia e infinita escrupulosidade essa tarefa.

Hannah Arendt reconstitui os procedimentos que conduziram à instalação dos campos de extermínio na região do Governo Geral da Polônia -Auschwitz, Treblinka, Sobibor, Maidanek, Belzek e outros. Todos conhecemos, depois de tantos livros e filmes, a seqüência macabra deste processo: como os deportados eram conduzidos no meio da noite em trens lacrados, como eram selecionados os mais aptos para os trabalhos necessários ao bom funcionamento dos campos, da cozinha dos oficiais às mulheres que deveriam servir de prostitutas e aos “Sonderkommandos”, encarregados de retirar os cadáveres dos galpões e de cuidar dos fornos crematórios; como os outros prisioneiros eram levados a crer que iriam tomar um banho, despindo-se e arrumando caprichosamente seus pertences; como eram trancadas as portas, ligado o gás e asfixiados os condenados; como eram em seguida queimados os seus corpos, produzindo colunas de fumaça que se podiam ver a quilômetros de distância; e, por fim, como eram arrancados os dentes de ouro, que, fundidos depois, viriam acabar nos cofres do Reichsbank. Estes horrores são por demais conhecidos para que nos demoremos neles, mas é preciso lembrá-los -o dever da memória- para que se tenha a medida da frieza e da naturalidade com que operava a indústria da morte.

3. Ilusão

Agora podemos tentar responder à pergunta que não cala: por que os judeus aceitaram morrer assim? Por que não se revoltaram nos trens, ou antes, ou depois, ao desembarcar no destino final?

A resposta é complexa. Em primeiro lugar, porque não sabiam o que ia lhes acontecer, ao menos nos primeiros tempos. Não havia informação precisa sobre nada na época da guerra, pois o rádio era censurado, a imprensa idem, e quem fosse apanhado ouvindo a BBC podia ter certeza de uma morte rápida como traidor. Para nós, que vivemos no tempo da internet e do mundo que cabe na palma da mão, é difícil imaginar o que anos de ocupação brutal, de propaganda mentirosa e de pavor constante podem provocar em matéria de ilusões ou de simples desconhecimento da realidade. Mesmo quando começaram a surgir os primeiros boatos do que se passava no Leste, poucos acreditaram que aquilo fosse mesmo possível -e o tamanho do seu engano só lhes era revelado quando o galpão se trancava e o Zyklon B começava a fazer efeito.
__________________________________________________
Notas:

1 - Nos países em que o governo ou a população boicotaram as medidas exigidas pelos nazistas, como a Dinamarca e a Bulgária, os judeus sofreram muitíssimo menos. Da Dinamarca, quase todos foram evacuados para a Suécia numa única noite, com a ajuda de barcos pesqueiros e muita audácia por parte da população local; da Bulgária, quase todos puderam emigrar para Israel depois de acabada a guerra. A própria França, onde o vergonhoso regime de Vichy endossava a política anti-semita, recusou-se a entregar os que eram cidadãos franceses para serem deportados, em virtude do que 250 mil dos 300 mil que ali viviam no início de 1940 puderam sobreviver.

Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,2.shl
Início:
Os que não foram heróis - parte 1

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Os que não foram heróis - parte 1

Os que não foram heróis
Por Renato Mezan

ensaio
HISTÓRIA

O gueto de Varsóvia em cena de "O Pianista", de Polanski
Psicanalista reflete sobre a submissão dos judeus ao terror nazista

À memória de David Sztulman, morí umadrichí(1)

“As idéias precedem os atos, assim como antes do trovão vem o relâmpago.”
Heine, « De l’Allemagne »

Na parede lateral da sinagoga que, na Congregação Israelita Paulista, é usada para os ofícios diários, estão gravados centenas de nomes: homenagem aos parentes dos membros da comunidade que pereceram durante a “Solução Final da Questão Judaica”, como os nazistas denominaram a mais fantástica realização dos seus doze anos de poder, nos quais não escasseiam horrores e crueldades.

Lembro-me da primeira vez em que entrei nesta sinagoga, durante os preparativos para meu “bar-mitzvá”. O mármore coberto de nomes me chamou imediatamente a atenção, e me recordo de ter pensado que o de minha avó Renata Mezan poderia estar entre eles; mas não foi da Alemanha, e sim de Milão, que ela partiu para uma morte horrenda em algum campo da Polônia.

Os nomes me fizeram pensar também na visita que Tzivia Lubetkin, uma sobrevivente do Gueto da Varsóvia, fizera à CIP poucos meses antes, e no encontro que David Sztulman, então diretor do Departamento Juvenil, organizara com ela. Tzivia Lubetkin havia sido uma importante testemunha no processo Eichmann, dois anos antes, e a este título é mencionada no livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, do qual voltaremos a falar. Ela nos contou sobre o Levante, sobre o heroísmo dos jovens comandados por Mordechai Anilewicz, sobre o prodígio que foram aquelas três semanas da primavera de 1943, quando algumas centenas de judeus enfim despertados da sua apatia resistiram às brigadas alemãs, até que somente uns poucos permanecessem vivos e pudessem escapar pelos esgotos.

Foi por esta época que li Mila 18, o romance de Leon Uris ambientado no Gueto. Anos depois, ao visitar Varsóvia, emocionei-me diante do monumento aos combatentes do gueto, que fica no local onde se erguia o número 18 da rua Mila, hoje uma praça(2). E sempre a mesma pergunta se apresentava diante dos meus olhos, na pequena sinagoga, ouvindo a voz pausada daquela senhora que nos falava em hebraico, em pé recitando um “Kadish” em memória daqueles milhões de mortos, ou ainda ao percorrer as alamedas silenciosas do que foi o campo de Auschwitz3, naquela mesma visita à Polônia: por que não resistiram? Por que marcharam tão passivamente para a morte? Por que somente anos depois de se iniciarem as atrocidades contra os judeus é que ocorreram episódios de resistência, entre os quais o levante? É a responder estas perguntas, ou ao menos encaminhar um esboço de resposta, que visa o presente artigo.

1. Submissão

E antes de mais nada, uma observação. A maneira como costumamos formular a pergunta inclui implicitamente uma nota de desdém, pois o “tão passivamente” nada mais é do que um eufemismo para “marcharam para a morte como carneiros para o matadouro”. Esta conotação é um insulto aos que morreram, acrescentando à sua tragédia um matiz vergonhoso que em nada nos honra, a nós, nascidos depois que tudo terminou, e que teríamos preferido que nossa história contivesse mais episódios como Metzadá (o suicídio coletivo dos combatentes contra Roma em 70 d.C.) ou como o levante do Gueto, e menos cenas como as que nos mostram os filmes sobre o Holocausto, longas filas de pessoas caminhando ordenadamente para as câmaras de gás.

Para compreender como tal coisa pôde acontecer, é preciso entrar no âmago da história, compreender o que era o regime nazista e o que fez com todos os que com ele tiveram contato, alemães e não-alemães, soldados e civis, carrascos e vítimas. Somente assim se pode vislumbrar também o significado da revolta do Gueto, e por que só após três longos anos de sofrimento é que ela pôde eclodir. Dados históricos são assim indispensáveis, mas igualmente a análise destes dados do ponto de vista psicológico, pois estamos lidando com um fenômeno de obediência coletiva a diretrizes tão absurdas, tão bárbaras e desumanas, que desafia a imaginação o simples fato de terem sido formuladas. Acusar de covardia as vítimas -pois é disso que se trata, quando vem à tona a metáfora dos carneiros- é, além de uma ofensa à sua memória, um erro grave, que provém da desinformação tanto quanto do nosso desejo de não nos identificar com elas.

É no livro de Hannah Arendt que encontro as informações necessárias para o que se segue. Enviada em 1961 a Jerusalém pela New Yorker, com a missão de cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, ela escreveu um texto sóbrio, porém que ainda hoje se lê com emoção. O que comove o leitor é a lucidez da pensadora, as questões que ela levanta -e como as levanta- à medida que as páginas vão se cobrindo de dados precisos, cortantes, aterradores. Hannah Arendt não se furta a examinar o papel dos próprios judeus na implementação da Solução Final, sem o qual ela não teria atingido aquele grau macabro de sucesso. E do que nos conta emerge a possibilidade de compreender, como disse, o que se passava nas mentes dos que não resistiram, assim como, talvez, nas daqueles que finalmente pegaram em armas e resgataram a honra do povo condenado.

A Solução Final, ou “Endlösung”, não foi a primeira política dos nazistas em relação aos judeus. Desde a eleição de Hitler para o posto de chanceler, as medidas antijudaicas foram postas em prática com uma determinação fanática e com uma meticulosidade toda germânica. Elas atingiram primeiro os judeus da própria Alemanha, excluídos do serviço público logo nos primeiros meses do regime -o que significava abandonar cargos nas escolas e Universidades, no rádio, em entidades culturais como museus e orquestras, nos serviços médicos etc. As Leis de Nuremberg de 1935 codificaram a exclusão da “raça inferior” e criaram a figura jurídica da “Rassenschande”, o crime de contato sexual entre arianos e judeus. Estas medidas não encontraram oposição dos alemães, antes pelo contrário: obtiveram um apoio mais do que formal, a ponto de Arendt poder falar em “cumplicidade ubíqua” da população e do Estado.

Duas observações cabem aqui. A primeira é que, no contexto dos anos 30, as medidas discriminatórias eram ainda um assunto interno da Alemanha e, por mais que chocassem o mundo civilizado, foram ativamente elogiados pelos anti-semitas de outros países, especialmente na Europa do Leste, que sempre viram na cultura alemã um modelo prestigioso. Em segundo lugar, os próprios judeus alemães as aceitaram, pois reconheciam no regime nazista a legalidade e a legitimidade do Estado constituído. Aceitar, é óbvio, não significa aprovar: é claro que esperavam que um dia os nazistas fossem alijados do poder e que fossem abolidas as leis vergonhosas. Alguns perceberam as proporções do horror e emigraram, mas a maioria se adaptou ao que parecia um mal menor e, em todo caso, passageiro. “As Leis de Nuremberg privavam os judeus dos seus direitos políticos”, frisa Hannah Arendt, “mas não de seus direitos civis; eles não eram mais cidadãos (‘Reichsbürger’), mas continuavam membros do Estado alemão (‘Staatsangehörige’). Os judeus sentiam que agora haviam recebido leis próprias e que não seriam mais postos fora da lei (...). Eles acreditaram que haveria um ‘modus vivendi’ possível, e chegaram a se oferecer para cooperar com a ‘solução da questão judaica’”(4).

Esse engano nos parece hoje incompreensível, mas na época não o era. A imensa maioria dos judeus alemães, apesar do anti-semitismo difuso do último século, havia se integrado à sociedade e à cultura do país em que haviam nascido, e no qual também haviam nascido muitas gerações de seus antepassados. Orgulhavam-se das contribuições dos seus às artes, às ciências e ao progresso da Alemanha; haviam lutado lealmente por seu país na Grande Guerra, e muitos haviam sido condecorados por bravura. Consideravam-se superiores aos “Ostjuden”, ou judeus do Leste europeu, que falavam ídiche, usavam longas barbas, cachos laterais no cabelo (“peies”), casacos de cor negra e viviam num universo religioso que lhes parecia antiquado e cheio de superstições. Seu próprio ambiente religioso era na maior parte dos casos o da Reforma judaica do século XIX, isso quando não eram completamente seculares: a religião era um assunto privado ou comunitário, mas de forma alguma os impedia de levar uma vida civil em nada diferente da dos outros 80 milhões de alemães. Até os sionistas se acomodaram com as Leis de Nuremberg, embora por outra razão: viam na segregação imposta aos judeus um elemento a favor de suas idéias, um primeiro passo para a recusa da assimilação e no sentido de um despertar da consciência nacional entre os refratários à sua mensagem política.

O primeiro grande abalo nesta visão otimista veio com a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, quando todas as sinagogas do país foram incendiadas e se quebraram milhares de vitrinas de lojas judaicas, cujos cacos no chão “brilhavam como cristais” (daí a alcunha com que ficou conhecida esta barbaridade)5. Ainda assim, a política oficial do Reich -que agora englobava a Áustria- era a de que os judeus deveriam sair do país, a fim de que este se tornasse “judenrein” (limpo de judeus). Sabemos que, apesar das extorsões financeiras e do labirinto burocrático, 150 mil judeus austríacos puderam emigrar relativamente em paz entre o “Anschluss” de março de 1938 e os primeiros meses de 1940 -Freud e sua família entres eles. Incidentalmente, era Eichmann o encarregado de negociar com os líderes da comunidade as questões de emigração; fez isso com notável eficácia, com o que veio a adquirir a fama de “perito em questões judaicas” que mais tarde o levaria chefiar o departamento encarregado da enorme tarefa de deportar milhões de pessoas para a morte no Leste.

2. Terror

“Foi com o início da guerra que o regime nazista tornou-se abertamente totalitário e abertamente criminoso”, escreve Hannah Arendt (p. 82). A invasão da Polônia colocou sob a bota alemã três milhões de judeus, cujo destino estava selado antes mesmo que as bombas acabassem de cair sobre Varsóvia. No filme “O Pianista”, de Roman Polanski, vemos a reação de uma família judia de classe média aos primeiros decretos dos ocupantes: medo, estupefação, tentativas de esconder algum dinheiro, indignação -mas principalmente inércia. Quando é formado o gueto, em outubro de 1940, os judeus vão disciplinadamente para as novas casas; assistem paralisados ao levantamento dos muros e continuam a viver como podem. Logo se instalam as doenças e a fome, mas cada um tenta prover a si e aos seus, buscando sobreviver, na esperança de que um dia aquele pesadelo chegaria ao fim.

Na Europa inteira, enquanto isso, a Wehrmacht conquistava um êxito atrás do outro. Com exceção da Inglaterra e da União Soviética, todos os países estavam sob o domínio alemão ou eram governados por regimes pró-Berlim, mesmo os neutros como Portugal, Espanha e Suíça. Nos países ocupados, colocou-se imediatamente em prática a segunda política nazista para os judeus, agora que a emigração em massa se tornara impossível: o que Arendt chama de concentração. Os judeus deviam se registrar e passavam a usar a estrela amarela; em seguida vinha a ordem para se mudarem para o gueto, que era murado e patrulhado pelas SS. Nesse processo, as lideranças judaicas colaboravam através dos “Conselhos Judaicos”, encarregados de obter os dados cadastrais e de cuidar de detalhes práticos como confisco de bens, distribuição de cartões para racionamento etc. A estes homens, sem dúvida atormentados pelas tarefas que deviam executar, parecia que estavam escolhendo o caminho da prudência, ao não confrontarem um invasor cuja crueldade e cujo total desprezo pela vida humana se manifestava diariamente, com uma ferocidade da qual ninguém julgaria capazes homens do século XX. A doutrina da superioridade racial certamente oferecia aos alemães uma boa justificativa para seus atos, e o reino do terror era implantado com uma rapidez de tirar o fôlego. Qualquer tentativa de oposição era punida com massacres e com requintes de crueldade; informantes e colaboradores abasteciam a Gestapo com o que ela precisava saber, e os judeus aceitavam, como todos os outros, a realidade pavorosa que tinha se abatido sobre eles quase do dia para a noite.
______________________________
Notas:

1 - “Meu mestre, que me mostrou o caminho.” David Sztulman, nascido na Polônia, foi por muitos anos diretor do Departamento Juvenil da CIP. Ele e sua esposa Sima despertaram meu interesse pela história e pelos valores do judaísmo e me proporcionaram alguns dos anos mais felizes de minha vida. Que este texto sirva como um testemunho da gratidão que lhes dedico.

2 - Varsóvia foi destruída durante a guerra, inclusive Stare Miesto, a cidade antiga. Seguindo planos e desenhos que puderam ser preservados, os poloneses reconstruíram as fachadas e a aparência urbana do centro histórico exatamente como eram em 31 de agosto de 1939. Mas das ruas onde ficava o gueto nada foi reconstruído: o espaço tornou-se uma praça.

3 - Auschwitz é hoje um monumento nacional polonês, dedicado à memória dos patriotas ali assassinados. Milhares de retratos cobrem as paredes do que foram os dormitórios, tendo em baixo de cada um o nome da pessoa. Não há uma única referência ao martírio dos judeus, nem nomes judaicos entre os retratos.

4 - Hannah Arendt, "Eichmann em Jerusalém: Um Relato Sobre a Banalidade do Mal" (1964), São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 50 ss.

5 - A "Kristallnacht" foi desencadeada como represália ao assassinato, por um jovem judeu, de um diplomata alemão na Embaixada em Paris. O pai deste jovem depôs no processo Eichmann (cf. Arendt, op. cit., p. 248).

Fonte: Revista Trópico(UOL)
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1619,1.shl
Continuação:
Os que não foram heróis - parte 2

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Mundo Maluco de Walter Sanning – Parte 9

Traduzido por Leo Gott à partir do link: http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2008/11/crazy-world-of-walter-sanning-part-9.html


Abaixo estão mais dois casos de manipulação e distorção flagrante para a conta de Walter Sanning.

Primeiramente, Sanning afirma (p.103) que um jornalista judeu-canadense de nome Arthur Raymond Davies, que freqüentou uma reunião da Comissão Judaica Anti-Fascista no outono de 1944, durante a qual o secretário Schachne Epstein, “relatou a evacuação de 3,5 milhões de judeus nos territórios ocupados pela Alemanha". O forista do RODOH (Warheitseeker [“revisionista”]) localizou a passagem no livro de Davies e gentilmente postou-o aqui. Isto é o que realmente Davies escreveu:

Ele agradeceu pelos judeus do mundo a ajuda do povo soviético. Ele recebeu os judeus da Polônia. Ele revelou que os alemães haviam assassinado cerca de cinco milhões de judeus e que a União Soviética tinha conseguido salvar 3,5 milhões.

Então, o que faz Sanning adicionar ou omitir? Em primeiro lugar, Epstein não mencionou evacuação; Sanning infere sem falar aos seus leitores que ele está desenhando uma inferência, em vez de um reporte direto do discurso. Isto em si é desonesto. Em segundo lugar, Epstein não especifica que os judeus "salvos" nunca tinham vivido nos territórios ocupados pela Alemanha. Epstein simplesmente diz que, bloqueando o avanço alemão, a URSS tinha salvado judeus em áreas desocupadas, tanto na URSS quanto no resto do mundo.

Em terceiro lugar, Sanning omite a mais óbvia refutação da sua interpretação: o assassinato de 5 milhões de vítimas judaicas. Claramente, muitas dessas vítimas deveriam estar vivendo nas áreas em que Sanning alega que foram evacuados. Além disso, toda a alegação de Sanning se embasa nas 5 milhões de vítimas, portanto, é uma desonestidade descarada usar uma fonte que, na verdade, refere-se a eles na mesma frase como "3,5 milhões" de judeus salvos, onde Sanning usa uma “Garimpagem de Citações”.

A segunda distorção de Sanning ocorre na p.112, onde ele consulta a proporção sexual de judeus soviéticos:


Com base na distribuição etária dos judeus na RSFSR, 705.290 de 2.267.814 de judeus registrados na União Soviética (1959) pertenciam à faixa etária de "0-28 anos", que no final da Segunda Guerra Mundial não tinha sido nem nascidos ou ainda eram muito jovens para o serviço militar; a estrutura sexual deveria ter sido mais ou menos equilibrada. A composição de masculino/feminino entre os maiores de 29 anos foi 677.984 e 884.540, respectivamente. [...]


Sanning, portanto, absurdamente tomou o perfil etário para a República Soviética, o RSFSR, que sofreram proporcionalmente muito menos óbitos no Holocausto do que nas repúblicas ocidentais, e usou-a para uma projeção sobre toda a população soviética, o que ele tem, então, usado como "provas" de que o Holocausto não ocorreu na área ocidental da URSS! Isso por si só já o desqualifica como um demógrafo honesto.

5 milhões de vítimas não judias? (1ª Parte)

Quem faz uma pesquisa Google buscando informação sobre vítimas não judias de chacina em massa nazi, encontra entre as primeiras páginas esta, titulada "Five Million Forgotten" ("Cinco milhões esquecidos") e que liga para um site chamado "Non-Jewish Victims of the Holocaust • Five Milion Forgotten" ("Vítimas não judias do Holocausto • Cinco milhões esquecidos"), mantido por Terese Pencak Schwartz. A este site também liga The Holocaust History Project (ligação # 22), que o refere como "A site focusing on the 5 million non-Jewish victims of the Holocaust"("Um site focado nas cinco milhões de vítimas não judias do Holocausto").

Segundo a Sra. Schwartz (minha tradução),

Onze milhões de vidas humanas preciosas perderam-se durante o Holocausto. Cinco milhões eram não judeus. Três milhões eram cristãos e católicos polacos.


Sob o subtítulo "Who Were the Five Million Non-Jewish Holocaust Victims?" ("Quem eram as cinco milhões de vítimas não judias do Holocausto?"), a Sra. Schwartz escreve sobre polacos, Testemunhas de Jeová ("For Their Religious Belief, They Stood Firm", "Mantiveram-se firmes pela sua fé religiosa"), ciganos romani ("For Their Race They Were Executed", "Pela sua raça foram executados"), opositores dos nazis por motivos políticos, humanitários e religiosos ("Men and Women of Courage From All Nations" - "Homens e mulheres corajosos de todas as nações"; "Priests and Pastors Died for their Beliefs" - "Padres e pastores morreram pela sua fé"), homossexuais, deficientes, crianças de raça negra esterilizadas, e conjugues de vítimas de perseguição que preferiram a morte ao divórcio. Não se apresenta um desdobramento das duas milhões de vítimas que, segundo a afirmação introdutória acima citada, pertenciam às outras categorias além de "cristãos e católicos polacos", mas são mencionadas algumas cifras parciais ("Half a million Gypsies, almost the entire Eastern European Gypsy population, was wiped out during the Holocaust" - "Meio milhão de ciganos, quase a totalidade da população cigana da Europa, foram eliminados durante o Holocausto"; "Between 5,000 to 15,000 homosexuals died in concentration camps during the Holocaust" - "Entre 5.000 e 15.000 homossexuais morreram em campos de concentração durante o Holocausto".) No que respeita aos deficientes, refere-se que "Durante o 'programa de limpeza' de Hitler, milhares de pessoas com várias deficiências foram consideradas inúteis e simplesmente mortas como cães e gatos". No que respeita aos polacos não judeus, há uma ligação para um artigo de Edward Lucaire, um escritor freelance, que menciona (minha tradução) "três milhões de cristãos polacos mortos que, por acaso, excederam largamente em número o conjunto de mortos entre os Testemunhas de Jeová (2.000), os ciganos (400.000), os homossexuais (10.000 no máximo, segundo Peter Novick em The Holocaust in American Life), deficientes, etc., habitualmente mencionados na literatura do Holocausto". Esta afirmação, bem como as cifras parciais referidas pela própria Sra. Schwartz, sugerem que o número agregado de vítimas das categorias da Sra. Schwartz para além dos "cristãos e católicos polacos" é bastante inferior aos dois milhões implícitos na sua afirmação supra citada. De facto é, como será pormenorizado na Parte 2 deste artigo, onde também mencionarei fontes que mostram que os "três milhões de cristãos polacos mortos" referidos por Lucaire e Schwartz são um exagero, resultante de um método de cálculo inadequado.

Portanto, onde é que a Sra. Schwartz obteve o total de cinco milhões de não judeus cujas "vidas se perderam durante o Holocausto"?

Esta cifra, ao que parece, remonta a Simon Wiesenthal, quem a "inventou" para "fazer com que os não judeus se sentissem como se fossem parte de nós" – ao menos isto foi o que Wiesenthal, segundo um discurso de Walter Reich sobre "The Use and Abuse of Holocaust Memory" – "O uso e abuso da memória do Holocausto" – , disse ao historiador do Holocausto Yehuda Bauer. A afirmação de Wiesenthal também é referida no óbito a Simon Wiesenthal de Michael Berenbaum, publicado em Forward em Setembro de 2005 (minha tradução):

De facto, a batalha filosófica melhor conhecida de Wiesenthal foi contra Wiesel. Os dois confrontaram-se indirectamente em fins da década de 1970 sobe a questão de quem eram as verdadeiras vítimas do Holocausto, isto é, se o Holocausto era um evento judaico ou um evento universal. Wiesel argumentou que o Holocausto era uma experiência unicamente judaica, arrumando o papel dos não judeus no Holocausto com o virar de uma frase: "Embora não todas as vítimas foram judeus, todos os judeus foram vítimas."
Wiesenthal, por outro lado, argumentou que o Holocausto foi a morte de 11 milhões de pessoas, 6 milhões de judeus e 5 milhões de não judeus. A cifra era inventada: Se considerarmos todas as mortes civis não judias, é demasiado baixa; se considerarmos apenas aqueles que morreram às mãos da maquinaria assassina nazi, é demasiado alta.[ênfase meu – RM]. Mas o aspecto central era a convicção de Wiesenthal de que a inclusão de não judeus era essencial ao seu compromisso pós-guerra. As nações deviam sentir que perderam a sua própria gente para que levassem os criminosos de guerra perante a justiça.


Qual é o significado do termo "maquinaria assassina nazi", conforme utilizado pelo autor da citação supra?

O termo evoca a imagem de chacina em massa sistemática executada por assassinos especializados, tal como foi praticada nos campos de extermínio nazis e nas operações móveis de matança das Einsatzgruppen e outras formações alemãs. Os anteriores, segundo Raul Hilberg em The Destruction of the European Jews, cobraram "até 2.700.000" vítimas judias, enquanto cerca de 1.300.000 judeus foram abatidos a tiro em campo livre. Hilberg estimou mais 150.000 judeus mortos pelos aliados romenos e croatas da Alemanha, 150.000 que morreram em "campos com mortandade de poucas dezenas de milhares ou inferior" (incluindo "campos com operações de matança" e campos de concentração tais como Bergen-Belsen, Buchenwald, Mauthausen, Dachau, Stutthof) e 800.000 vítimas judias de "guetização e ocupação em geral", somando as suas cifras um total da 5,1 milhões de vítimas da destruição pelos nazis da população judaica da Europa.

Quais destas vítimas judias da perseguição e chacina em massa nazis podem ser consideradas como tendo morrido "às mãos da maquinaria assassina nazi" no sentido da afirmação do Sr. Berenbaum, acima citada?

Todas elas, uma vez que o Sr. Berenbaum, enquanto afirma que a cifra de 5 milhões de não judeus de Wiesenthal é demasiado alta "se considerarmos apenas aqueles que morreram às mãos da maquinaria assassina nazi", não faz a mesma restrição no que respeita aos 6 milhões de judeus que também menciona, implicando desta forma que considera a totalidade dos 6 milhões como tendo morrido "às mãos da maquinaria assassina nazi".

Uma parte significativa das vítimas judias daquilo que Hilberg chama "guetização e ocupação em geral" morreu antes de os nazis terem começado com o extermínio sistemático dos judeus da Europa, conhecido como a "solução final" da "questão judaica". A matança com carácter de genocídio dos judeus começou, o mais cedo, em Agosto de 1941, altura em que, conforme salientado pelo historiador alemão Christian Gerlach na página 63 do seu livro Krieg, Ernährung, Völkermord ("Guerra, alimentação, genocídio"), as unidades das SS e da polícia alemãs nos territórios soviéticos ocupadas começaram a matar também mulheres e crianças judias em grandes números e logo avançaram para o extermínio de comunidades judias inteiras. Christopher Browning (minha tradução) "acredita que Hitler tomou a sua decisão em Julho de 1941, no pináculo das grandes vitórias militares na Rússia", enquanto Gerlach mantém que a autorização de Hitler para avançar com o genocídio a nível europeu foi dada em 12 de Dezembro de 1941 , e Peter Longerich afirma que (minha tradução) "Um escalamento adicional da política de extermínio pode ser observado no período entre Maio e Junho de 1942" e que (minha tradução) "em Julho de 1942 um programa abrangente de assassinar sistematicamente os judeus nas áreas sob controlo alemão tinha sido implementado". No entanto, muito antes da primeira destas datas, e ainda mais tempo antes de as deportações para o campo de extermínio de Treblinka terem começado em fins de Julho de 1942, a mortalidade por fome e doença já tinha sido elevada no Gueto de Varsóvia (minha tradução):

Em Novembro de 1940 o gueto foi selado. Já havia 445 mortes no gueto. Depois a mortalidade subiu rapidamente: em Janeiro de 1941 para 898, em Abril para 2.061, em Junho para 4.290 e em Agosto para 5.560. Depois a cifra mensal passou a flutuar entre 4.000 e 5.000 enquanto o gueto existiu.


Em outros guetos ghettos a situação era similar (minha tradução):

A intolerável densidade populacional, facilidades higiénicas e sanitárias inadequadas – no gueto de Lodz 95% dos apartamentos não tinham saneamento, água em condutas ou esgotos – a falta quase total de medicamentos, a falta de combustível para aquecer, e rações de fome, juntaram-se para produzir condições em que doença e epidemias eram inevitáveis. No gueto de Kutno, que os alemães alcunharam de Krepierlager ("Campo para bater as botas"), entre Março e Dezembro de 1941 42 % de todas as mortes foram pacientes de tifo. A taxa de mortalidade geral durante este período em Kutno foi quase dez vezes superior à taxa antes da guerra, uma vez que outras doenças contagiosas também eram comuns.


Na página 96 de The Destruction of the European Jews, edição para estudantes de 1985 (citada neste tópico do fórum RODOH), Raul Hilberg escreveu o seguinte (minha tradução):

A comunidade judaica da Polónia estava moribunda. No último ano anterior à guerra, 1938, à taxa de mortalidade média mensal em Lodz era de 0,09 por cento. Em 1941, a taxa aumentou para 0,63, e durante os primeiros seis meses de 1942 foi de 1,49. O mesmo fenómeno, comprimido num único ano, pode ser notado no gueto de Varsóvia, onde a taxa mensal de morte foi de 0,63 na primeira metade de 1941 e 1,47 na segunda. Na sua ascensão para este patamar, as duas cidades eram quase idênticas, embora Lodz fosse um gueto hermeticamente fechado, que tinha a sua própria moeda e onde o mercado negro era essencialmente o produto de trocas internas, enquanto o queto de Varsóvia estava envolvido em contrabando extensivo, "silenciosamente tolerado" pelos alemães. As taxas de natalidade em ambas cidades eram extremamente baixas: em Lodz havia um nascimento por cada vinte mortes, enquanto em Varsóvia, no início de 1942, o rácio era de 1:45. A implicação destas cifras é bastante clara. Uma população com uma perda neta de um por cento por mês diminui para cinco por cento do seu tamanho original em apenas vinte e quatro anos.


Podem os judeus que morreram a este passo de fome e doença considerar-se como tendo morrido "às mãos da maquinaria assassina nazi", independentemente de se (como Hilberg, que no parágrafo que se segue ao acima citado refere que o passo da mortandade judia não era "suficientemente rápido" para os decisores alemães, parece ter acreditado) ou não (como corresponde às teorias de Browning, Gerlach e Longerich, que na minha opinião têm a evidência em seu favor) os nazis já tinham a intenção de eliminar todos os judeus da Europa muito antes de soltar os seus esquadrões da morte móveis contra todos os judeus soviéticos e construir campos de extermínio para os quais eram deportados judeus de todas as partes da Europa dominada pelos nazis, em vez de as políticas nazis se terem tornado gradualmente mais radicais até atingirem a fase do genocídio, o mais cedo em Agosto de 1941?

Podem, se o termo "maquinaria assassina" do Sr. Berenbaum é interpretado num sentido mais amplo do que aquele que é sugerido pela sua redacção, de modo a incluir não apenas matanças directas sistemáticas mas também mortes devido a condições de vida deliberadamente impostas a uma população sabendo que iriam conduzir a um grande aumento da mortalidade, independentemente de o objectivo desta imposição ter sido ou não o extermínio ou a redução da população em questão.

Além de os submeter a mortíferas condições de vida, os nazis estavam activamente matando judeus já antes da que considero a data mais antecipada do início do programa de genocídio a nível europeu, ou seja, a que corresponde à teoria Browning. Na página 10 de Krieg, Ernährung, Völkermord, traduzida no meu artigo One might think that ... (versão portuguesa: Até parece que ...), Gerlach refere "de várias dezenas de milhares de polacos judeus e não judeus" assassinados pelos nazis até Maio de 1941. Uma recente exposição tem mostrado documentação sobre crimes cometidos pela Wehrmacht na Polónia em Setembro/Outubro de 1939, incluindo os seguintes (minha tradução):

Judeus polacos com as suas vestimentas e cortes de cabelo e barba tradicionais converteram-se em caça livre para os soldados alemães. Violentações e fuzilamentos arbitrários de judeus eram o pão de cada dia.


Um destes casos se encontra registado na acta oficial de uma reunião entre o comandante em chefe do exército e Reinhard Heydrich em 22 e Setembro de 1939, citada na página 63 do livro de Helmut Krausnick book Hitler’s Einsatzgruppen. Die Truppen des Weltanschauungskrieges 1938-1942 ("As Einsatzgruppen de Hitler. As tropas da guerra ideológica 1938-1942"), 1985 Frankfurt am Main: em Pulutsk, 80 judeus foram "abatidos a tiro pelas tropas de forma animal" ("niedergeknallt in viehischer Weise"). Em outro incidente perto de Rozan no rio Narew, 50 judeus, que durante o dia tinham sido empregues na reparação de uma ponte, foram à noite empurrados para dentro de uma sinagoga e abatidos a tiro "sem razão" (Krausnick, página 66). Um relatório do comandante de um Einsatzkommando referiu que a cidade de Bromberg estava "completamente livre de judeus" porque durante uma "acção de limpeza" em 11 de Novembro de 1939 todos os judeus que não tinham anteriormente fugido tinham sido "removidos", i.e. "eliminados" (Krausnick, página 73).

Tal como as vítimas das privações impostas pelos nazis nos guetos, as vítimas judias de estes e outros massacres iniciais, que não eram ainda parte de um programa de aniquilação sistemática, são obviamente consideradas pelo Sr. Berenbaum como tendo morrido "às mãos da maquinaria assassina nazi", o que se pode considerar correcto se o termo "maquinaria assassina" for entendido como incluindo também uma mortífera "limpeza étnica" e/ou massacres aleatórios resultantes de ódio racial inculcado nos seus executores por uma maquinaria de propaganda controlada pelo estado. A responsabilidade do estado por chacinas em massa resultantes de tal doutrinação é salientada no livro de Matthew Cooper The Phantom War ("A guerra fantasma"), como segue (minha tradução, ênfases acrescentadas por mim):

A história do regime alemão na Rússia ocupada em geral, e das suas medidas de segurança em particular, também revela muito sobre a responsabilidade de Hitler pelas incomensuráveis atrocidades que tiveram lugar durante a guerra. Certamente, embora tenha dado ordens de grande crueldade quanto às políticas a serem seguidas em relação à população russa, estão não incluíram a menção de qualquer desejo de cometer genocídio. Talvez, portanto, se possa argumentar que Hitler não tinha a intenção de permitir aos seus funcionários políticos e soldados dedicar-se à destruição de vinte milhões de russos, dos quais pelo menos 750,000 eram judeus – a enormidade destas cifras se torna clara quando se tem em conta de que o número de soldados e guerrilheiros soviéticos mortos em combate perfaz cerca de um terço do total. Talvez até se possa dizer que o Führer não tinha conhecimento de que semelhante matança, iniciada apenas por subordinados tais como Heinrich Himmler, estava acontecendo. Talvez. Mas o que pode ser estabelecido sem lugar a dúvida é que foi Hitler, e apenas ele, quem criou as condições devido às quais este mal pode ser feito. Foi ele quem formou a mentalidade dos invasores. Sem as suas arengas contra os eslavos e os judeus – os sub-humanos – e sem as suas ordens, ou as que emanaram à sua instância e com a sua aprovação dos seus mandos militares, os altos mandos da Wehrmacht e do exército, as atrocidades perpetradas pelos seus SS e os seus soldados não teriam tido lugar. Como Erich von dem Bach-Zelewski, chefe das formações contra-guerrilha das SS, iria dizer ao Tribunal Militar Internacional em Nuremberga depois da guerra: Se durante décadas se predica a doutrina de que a raça eslava é uma raça inferior, e que os judeus não são humanos de todo, uma explosão destas é inevitável. A responsabilidade por isto é de Hitler.


Quando em fins de 1941 as forças de ocupação alemãs na Sérvia lançaram uma campanha de mortíferas represálias contra a população civil, visando esmagar o emergente movimento de resistência, judeus e ciganos foram vítimas frequentes, e em certa altura até preferenciais, das matanças de represália. O texto seguinte é um extracto do artigo de Christopher Browning Germans and Serbs: The Emergence of Nazi Antipartisan Policies in 1941 (minha tradução, ênfases acrescentados por mim):

Enquanto os sérvios receberam uma folga parcial do terror alemão, isto não ajudou aos judeus e aos ciganos. Embora os alemães conseguissem perceber que nem todos os sérvios eram comunistas e que o fuzilamento indiscriminado de sérvios inocentes prejudicaria os interesses alemães, não tinham dúvida de que todos os judeus eram anti – alemães e que os ciganos não eram diferentes dos judeus. E quanto maior o cuidado a exercer na selecção de reféns sérvios, tanto maior a pressão de encontrar em outro sítio reféns para preencher a quota de 100:1. A nova política alemã estipulou de forma sucinta o seguinte: em princípio pode-se afirmar que os judeus e ciganos em geral representam um elemento de insegurança, e portanto um perigo para a ordem e segurança públicas. É, portanto, uma questão de princípio que em qualquer caso todos os homens judeus e todos os ciganos de sexo masculino estão à disposição das tropas como reféns. O destino dos homens judeus e ciganos na Sérvia estava assim selado, e a sua execução por pelotões de fuzilamento do exército foi completada até inícios de Novembro.
Ao mesmo tempo o rumo da batalha na Sérvia virou a favor dos alemães, e até Dezembro os guerrilheiros se tinham retirado às regiões montanhosas da Bósnia e da Croácia para além da fronteira sérvia. Continuariam a sua luta contra os alemães em outros sítios, mas não regressariam em força à Sérvia até 1944. Concluída a primeira fase da guerra de guerrilha na Sérvia, a conta dos mortos em represália se situava em cerca de 15.000, does quais aproximadamente 4.500 a 5.000 eram judeus e ciganos.


Também na União Soviética depois de 22 de Junho de 1941, os judeus foram alvo de retaliações por ataques contra tropas alemãs, antes de a sua matança sistemática pelas Einsatzgruppen e outras formações os tornar indisponíveis para estes efeitos. Seguem-se as minhas traduções de anotações em diários de soldados alemães, citadas em Hannes Heer, Tote Zonen. Die Deutsche Wehrmacht an der Ostfront. ("Zonas mortas. A Wehrmacht alemã na frente leste"), página 101:

Do diário do cabo Werner Bergholz:

(…)2.7.[1941] Esta noite dois guardas foram abatidos. Cem pessoas foram executadas por isto. Provavelmente eram todos judeus.


Do diário do Major Reich:

2.7.1941. Judeus abatidos. 3.7. Pomo-nos a caminho. 22 soldados russos, alguns deles feridos, são abatidos na quinta de um camponês.(…) 9.7. Comissário liquidado por destacamento de metralhadora. (…) 12.7. Casas limpas, ordenadas. O meu capacete é roçado por um tiro de trás. Três aldeões morrem por isto. (…) 13.7. Um soldado alemão da força aérea morto, 50 judeus abatidos a tiro.
.

Tal como as vítimas anteriormente mencionadas de privações em guetos e brutalidade aleatória na Polónia, as vítimas judias de matanças de represália na Sérvia e na União Soviética foram alvo de violência nazi contra não combatentes que não visava (ainda) o extermínio, não era parte da "solução final" da questão judaica. No entanto, todas estas vítimas são obviamente consideradas pelo Sr. Berenbaum como tendo morrido "às mãos da maquinaria assassina nazi", tal como os judeus mortos em campos de extermínio ou nas operações de matança móveis sistemáticas das Einsatzgruppen e outras formações das SS e da polícia. Este entendimento é correcto ao abrigo de uma definição alargada do termo "maquinaria assassina" que inclui não apenas vítimas de um programa de extermínio, mas também outros não – combatentes mortos deliberadamente (no sentido de que as suas mortes foram intencionadas ou pelo menos previstas e aceites) por violência que não era parte de acções militares, não visava atingir objectivos militares ou não estava justificada por necessidades militares, i.e. por actos ou omissões consideradas como criminais ao abrigo das legislações nacionais e do direito internacional em vigor na altura em que foram cometidos.

Ora, quantos não judeus morreram de facto às mãos da "maquinaria assassina nazi", conforme acima definida? Embora um número mais ou menos exacto seja difícil se não impossível de estabelecer, é demonstrável que a ordem de grandeza excede os cinco milhões "inventados" por Simon Wiesenthal. Na próxima parte deste artigo tentarei tabular, país a país, os não judeus que perecerem devido a violência criminal por parte de Alemanha nazi e dos seus aliados, abrangendo todos os países que ou fizeram parte dos poderes do Eixo ou foram ao menos parcialmente ocupados por estes.

[Tradução adaptada do meu artigo 5 million non-Jewish victims? (Part 1) no blog Holocaust Controversies.]

2ª Parte

sábado, 1 de novembro de 2008

Fundação inter-religiosa pede que João XXIII seja declarado «justo entre as nações»

Declaração de seu fundador, Baruj Tenembaum, representante judeu

BUENOS AIRES, sexta-feira, 31 de outubro de 2008 (ZENIT.org).- O criador da Fundação Internacional Raoul Wallenberg, Baruj Tenembaum, pediu que João XXIII seja declarado «Justo entre as Nações».

Este título é outorgado a quem salvou judeus durante o Holocausto por Yad Vashem, o Memorial do Holocausto de Israel.

«Se o Papa João XXIII não for declarado ‘Justo entre as Nações’, serão nossos filhos que o consagrarão, já que a figura deste grande personagem da história se agiganta dia a dia», afirma Tenembaum, prestigioso representante judeu e pioneiro mundial do diálogo inter-religioso desde os anos 60.

A declaração de Tenembaum, enviada à Zenit, acontece por ocasião do qüinquagésimo aniversário da eleição do cardeal Angelo Giuseppe Roncalli como sumo pontífice, adotando o nome de João XXIII.

Depois de ter participado, em junho de 2003, de simpósio científico organizado pela Universidade de Bolonha e pela Fundação João XXIII por ocasião do 40º aniversário do falecimento de Angelo Roncalli, o Correio Argentino emitiu um selo postal dedicado à memória do «Papa Bom».

Alguns anos antes, em setembro de 2000, em uma cerimônia na Missão Permanente de Observação do Vaticano nas Nações Unidas e em presença do então secretário de Estado Vaticano, cardeal Angelo Sodano, a Fundação Wallenberg declarou aberta a campanha internacional para o reconhecimento da ação humanitária desenvolvida por Angelo G. Roncalli.

Dom Roncalli, antes de ser Papa, recorda Tenembaum, «intercedeu diante do rei Boris da Bulgária a favor de judeus búlgaros, e diante do governo turco a favor de refugiados judeus que haviam escapado da Turquia».

«Também fez todo o possível para evitar a deportação de judeus gregos. Foi também uma das principais fontes de informação do Vaticano sobre a aniquilação de milhões de judeus da Polônia e da Europa do Leste.»

«Quando cumpriu funções como Delegado Apostólico do Vaticano, em Istambul, em 1944, organizou uma rede de salvação de judeus e outros perseguidos pelo nazismo», acrescenta o fundador.

«Graças às suas ações, milhares de condenados à morte salvaram suas vidas. Sua obra e figura se alinham assim junto a numerosos diplomatas salvadores do Holocausto, como o sueco Raoul Wallenberg, o português Aristides de Sousa Mendes e o turco Salahattin Ulkumen, entre muitos outros», acrescenta.

«Uma nova era nas relações da Igreja Católica com o judaísmo se inaugurou com o pontificado de João XXIII – constata Tenembaum. Tratou-se de uma época marcada pela compreensão e pelo entendimento, depois de séculos de preconceito e perseguição religiosa.»

«As portas do diálogo inter-religioso começaram a abrir-se então e continuaram abertas durante o pontificado do Papa João Paulo II, que costumava dirigir-se aos judeus como ‘os irmãos mais velhos’, que visitou os campos de extermínio do nazismo em sinal de contrição e solidariedade com as vítimas judias e que fez uma peregrinação à Terra Santa, no Estado de Israel.»

A Fundação Wallenberg leva a cabo uma vasta pesquisa histórica destinada a revelar o importante trabalho humanitário levado a cabo por Dom Roncalli.

«O objetivo é dar a conhecer à opinião pública internacional os fatos altruístas e generosos realizados pelo delegado apostólico Roncalli, muito antes de ser consagrado Papa João XXIII, em 28 de outubro de 1958», declara Tenembaum.

Mais informação em http://www.raoulwallenberg.net

Fonte: Zenit(31.10.2008)
http://www.zenit.org/article-19934?l=portuguese

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Resenha do livro "A Indústria do Holocausto"

Por Maria Luiza Tucci Carneiro*, especial para o iG Ler (igler@ig.com)

O livro "A Indústria do Holocausto", do norte-americano Norman Finkelstein, é um verdadeiro convite ao anti-semitismo, além de ser (ele mesmo) uma indústria captadora de recursos: a primeira tiragem é de 50 mil exemplares. Se para o autor o Holocausto "provou ser uma indispensável bomba ideológica", para nós ele continua a ser um fenômeno humanamente inexplicável.

A obra - que vem causando polêmica em todos os países onde foi publicada - abre trincheiras para os grupos revisionistas, representantes do pensamento da extrema-direita e que negam as câmaras de gás.

O texto se apresenta como uma faca de dois gumes, possibilitando uma leitura dúbia: de um lado, por tratar a questão judaica sobre um viés acusatório, anti-sionista e recuperar (sob nova maquiagem) o mito da conspiração judaica. Tais maquinações anti-semitas causam ainda maior estranheza por expressarem o pensamento de alguém cujos pais sobreviveram ao Gueto de Varsóvia e aos campos de concentração nazista.

Segundo o próprio autor, com exceção de seus pais, todos os membros de ambas as famílias foram exterminados pelos nazistas. Este é, por assim dizer, o outro lado da faca: o que atribui aos sobreviventes do Holocausto um "status de vítima". Mas é como vítima (sem status) que o autor faz jus à tradição americana da denúncia moral.

Em alguns momentos, o autor dá um tom de revolta à sua voz protestando contra a elite judaica americana que "explora" economicamente o Holocausto: daí a dubiedade da narrativa. Para Finkelstein existem duas fases distintas:

1) desde a Segunda Guerra Mundial até 1967: fase delineada por atitudes de menosprezo pelo tema. Nesta época, a elite judaica teria se alinhado à política americana priorizando a Guerra Fria, fazendo vistas grossas à entrada de nazistas no país, além de apoiar o rearmamento de uma Alemanha mal desnazificada.

2) após a guerra de 1967: quando o Holocausto tornou-se uma fixação na vida dos judeus americanos. Diante do "isolamento e vulnerabilidade de Israel" (p.28), a elite judaica teria começado a explorar o Holocausto visando lucros.

O raciocínio de Finkelstein baseia-se na existência de dois grupos distintos de judeus norte-americanos: os que foram "apenas" vítimas do Holocausto e aqueles que conquistaram status explorando a idéia de terem sido vítimas.

Estes seriam os responsáveis pela grosseira exploração do martírio judeu e pela transformação do Holocausto em O Holocausto, definido como uma verdadeira indústria da corrupção.

A idéia é de que esta catástrofe teve desdobramentos possibilitando ao Estado de Israel (definido pelo autor como "um dos maiores poderes militares do mundo, com uma horrenda reputação em direitos humanos") projetar-se como um Estado "vítima", além de oferecer facilidades aos judeus bem-sucedidos dos Estados Unidos, anti-comunistas, por excelência (p. 13).

A plataforma de defesa sustentada pelo autor finca-se no tom de "denúncia" atribuído à sua tese: a de que os judeus americanos estariam explorando a memória do Holocausto transformando-a em um "negócio".

Tanto a dedicatória como a epígrafe que abrem o livro - está última assinada pelo Rabino Arnold Jacob Wolf, da Universidade de Yale - reafirmam a identidade judaica do autor, ao mesmo tempo em que sintetizam a sua proposta: "A mim parece que o Holocausto está sendo vendido - não ensinado".

Tal "denúncia" é tendenciosa ao possibilitar uma "outra" leitura, perigosa no momento em que grupos neonazistas negam as câmaras de gás e os noticiários televisivos sobre a paz no Oriente Médio enfatizam uma abordagem anti-Israel.

Se a idéia de Finkelstein foi de retratar o legado de seus pais, certamente ele não foi feliz. Ademais, não é preciso ter sobrevivido a uma catástrofe (Shoah) para alcançar o grau de tirania praticado pelos nazistas.

"A Indústria do Holocausto" é uma obra rica em estereótipos recuperados dos mais exacerbados libelos anti-semitas, muitos dos quais se prestaram para sustentar uma outra indústria: a da "morte em série" nos campos de extermínio. No rol desta literatura panfletária está os "Protocolos dos Sábios de Sião", leitura de cabeceira de Adolf Hitler e dos neonazistas.

Como documento anti-semita, os Protocolos tentam provar que os judeus conspiram, há séculos, com o objetivo de controlar o mundo. Daí o texto (de origem russa, 1905) enfatizar os "interesses ocultos", conceito parafraseado por Finkelstein, noventa e seis anos depois. O autor (re)administra acusações anti-semitas ao afirmar que a memória do Holocausto está sendo modelada por "interesses investidos" e sendo utilizada para "extorquir dinheiro da Europa" (p.18).

Esta imagem estereotipada dos judeus enquanto "exploradores" e "aproveitadores" de situações trágicas pode ser identificada na maioria dos textos anti-semitas, alguns seculares. Aliás, por coincidência, um dos mais virulentos libelos anti-semitas produzidos no Brasil nos anos 30, leva o título "Indústria de Judeus".

Valendo-se de metáforas extraídas do mundo da industrialização, um diplomata brasileiro apela para a tese dos "agentes judeus" (comparados a força-motriz) que - através de sua astúcia, engenhosidade, destreza e criatividade - conjugavam o seu trabalho ao capital, objetivando o lucro ilícito.

Há também um livro anti-semita "Os judeus do cinema", de Oswaldo Gouvêa (Rio de Janeiro, 1935) que acusa empresas americanas de explorar a indústria cinematográfica. Valendo-se dos "capitalistas judeus da Broadway" teriam se tornado poderosas empresas, com domínio universal. Foi aí que "o Leão da Metro alvoroçou sua juba e deu o primeiro rugido de alarme entre os judeus" (p.74).

Mera coincidência ou não, o mito da conspiração foi retomado por Finkelstein e atualizado no espaço e no tempo histórico.

(*) Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora da Universidade de São Paulo, autora de "Holocausto. Crime contra a Humanidade" (Ática, 2000) e "O Anti-semitismo na Era Vargas" (Brasiliense, 1995, 2a. edição), entre outros.

OBS: Este texto, inédito, será ampliado pela autora para publicação em uma revista da comunidade judaica, para a qual foi originalmente concebido.

Fonte: IG
http://www.ig.com.br/paginas/igler/especiais/finkel/tucci.html

Entrevista com Norman Finkelstein, autor de "A Indústria do Holocausto"

Por Ricardo Besen (ricardobesen@ig.com)

iG Ler - Você rejeita a idéia da singularidade do holocausto. Não acha que esse é um assunto bastante complexo que é discutido de forma muito simplista em seu livro? Você poderia ter levado em consideração que historiadores e filósofos alemães discutiram o tema a sério e sem motivações políticas, como Theodor Adorno, por exemplo.

Finkelstein - Eu discuto o dogma de que o holocausto é CATEGORICAMENTE único. Como todos os temas de investigação histórica, ele deveria estar sujeito aos procedimentos fundamentais de contraste e comparação. Não há dúvida que alguns aspectos do holocausto nazista são significativamente únicos - cito inclusive o historiador Raul Hilberg quanto a esse ponto.

Aspectos da bomba atômica lançada sobre Hiroshima também são significativamente únicos. Mas será que um historiador japonês diria que não pode compará-la com o bombardeio convencional de Tóquio (onde provavelmente mais gente morreu)? O ponto de partida da indústria do holocausto é: "Não compare". O que quer que isso seja, não é história.

iG Ler - Você não exagera ao dizer que as pessoas eram indiferentes ao holocausto durante sua infância? Você menciona que seus pais sofreram privadamente. Deve-se admitir que o tema era de difícil tratamento, e não só por parte dos sobreviventes. Vários anos se passaram até que o livro de Primo Levi, "É isso um homem?" fosse publicado na Itália. Uma biógrafa de Levi, Sylvie Braibant, notou: "O mundo não estava preparado para isso". Não lhe parece que a hesitação em lidar com o assunto possa ter tido outras motivações que não as políticas?

Finkelstein - Em geral é difícil lidar com o sofrimento. Ainda ontem à noite assisti a um excelente - pois honesto - documentário sobre o Vietnã, "Regret to Inform....", ("Sinto informar..."). Foi terrivelmente doloroso rever o horror colossal infligido pelos EUA ao Vietnã.

A questão interessante é por que certos horrores são lembrados, enquanto outros são esquecidos. Essa é uma questão política e não "humana".

iG Ler - Uma das principais críticas a seu livro é que ele é movido por vingança pessoal pelos problemas que sua mãe teve para receber a indenização de guerra. De fato, você parece estar com pressa de chegar ao que considero a parte principal de seu livro, ou seja, a crítica à elite judaica americana. Você afirma que a posição dessa elite com relação a Israel mudou por razões políticas após a Guerra dos Seis Dias em 1967, mas trata o tema muito brevemente. Não lhe parece que o livro trata de questões complexas de forma muito rápida, tornando-o um alvo fácil para críticas (que, dado o tema, viriam mesmo que o livro fosse perfeito)?

Finkelstein - O subtítulo do livro é "Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus". É uma intervenção modesta. No entanto, acho que o livro levanta questões importantes. Raul Hilberg considerou minhas teses basicamente corretas. Ele sugere que talvez eu devesse expandi-las em um outro livro. É pouco provável que eu vá fazê-lo.

Considero o livro um acerto de contas com os "publicitários" do holocausto que corromperam e rebaixaram a memória do sofrimento do povo judeu. É uma desgraça, um crime até. A indústria do holocausto é uma das maiores fomentadoras do anti-semitismo e da negação do holocausto no mundo hoje. Ela deve ser exposta, repudiada e banida da vida pública.

Se - como Hilberg tem reiterado - esses "camelôs" do holocausto estiverem implicados em chantagem e extorsão contra a Suíça, eles devem ser processados criminalmente.

iG Ler - Você afirma que a maior parte das críticas que seu livro tem recebido nos EUA é composta de ataques pessoais e não às suas idéias. Houve alguma crítica preocupada em debater apenas idéias? Qual foi a reação do público norte-americano ao livro?

Finkelstein - A única resenha séria de meu livro nos EUA foi feita por William Rubinstein em "First Things" (que pode ser lida no site de Finkelstein). O "New York Times" liderou o ataque pessoal, logo seguido pelo "Washington Post".

O propósito desses ataques dos principais jornais foi impedir a discussão pública do livro e alertar as bibliotecas para que não o comprassem. Parece que a campanha de vilanização deu resultado. Não fui convidado a participar de nenhum programa importante no rádio ou na televisão. O número total de resenhas escritas pode ser contado nos dedos.

Em compensação, a maior autoridade mundial no holocausto nazista, Raul Hilberg, tem continuamente elogiado meu livro em entrevistas.

iG Ler - Qual é a dificuldade de debater nos EUA um tema como o holocausto, quando se vai contra a corrente?

Finkelstein - Os EUA são o quartel-general da indústria do holocausto. Não surpreende, portanto, que qualquer crítica a essa indústria, ou seja, à exploração do sofrimento dos judeus para obtenção de ganhos políticos e financeiros, seja suprimida. Um livro documentando que chocolate dá câncer provavelmente seria banido na Suíça.

iG Ler - Qual foi a recepção do livro na Alemanha e em Israel? Houve uma diferença muito grande com relação à recepção nos EUA?

Finkelstein - Na Alemanha o livro provocou um debate nacional. 130 mil cópias do livro foram vendidas em duas semanas. Ele está em primeiro ou segundo lugar na lista de best sellers lá, bem como na Suíça e na Áustria.

A reação oficial da mídia alemã foi quase que completamente negativa. Já há dois livros em processo de impressão denunciando o meu livro. Outras obras, que me atacam menos que essas duas, mas são também bastante críticas, serão publicadas pela minha editora alemã, a Piper.

A reação do público, pelo que posso julgar pelos e-mails que recebo, é mais positiva. A Alemanha está sufocada pelo "politicamente correto" no que se refere ao tema holocausto.

Acho que muitos alemães estão gratos que um judeu finalmente tenha publicado o que quase todo mundo pensa privadamente: o negócio do holocausto fugiu do controle.

Em Israel houve pouca repercussão.

iG Ler - Você cita múltiplas fontes em seu livro. Considerando que o assunto atrai um grande número de pessoas fora do ambiente acadêmico e que não terão acesso a essas fontes, a leitura não fica prejudicada? Que tipo de público você pretendeu atingir?

Finkelstein - Minha intenção foi escrever o livro para o grande público, daí sua brevidade e aparato acadêmico modesto. Escrevi muitos livros nos quais o espaço reservado às notas é maior que o corpo do texto. Evitei conscientemente fazer isso nesse livro.

As linhas gerais de meu argumento são claras e as fontes em que me apoio suficientes para meus propósitos. Aliás, ainda não li nenhuma resenha que tenha discutido realmente meus argumentos e fontes. Em vez disso, tudo que ouço são conversas sobre "teorias conspiratórias", "judeu que se odeia", "negador do holocausto" e por aí vai.

A primeira regra de um bom advogado é: se você não pode responder a uma questão, mude de assunto.

iG Ler - Embora não seja o tema direto do livro "A Indústria do Holocausto", tem-se afirmado que você compara a situação do povo palestino hoje com a dos judeus na Alemanha nazista. É verdade? Em caso positivo, como você justifica essa posição?

Finkelstein - Como notei acima, há alguns aspectos que são comparáveis, outros não. Algumas semelhanças são bastante significativas, como, por exemplo, a meta de criar em Israel um país etnicamente puro, o uso extensivo de prisões administrativas, tortura e assim por diante.

Por outro lado, não há câmaras de gás ou assassinatos em série. Nesse caso as duas situações contrastam significativamente.

Em um nível moral eu não comparo sofrimentos: sofrimento é sofrimento. Essa é a herança que meus pais me deixaram. É o que eu mais admirava neles. Não pretendo abandonar esse nobre princípio moral.

iG Ler - Você está a par da polêmica criada na Alemanha pelo discurso (veja matéria ao lado) proferido pelo escritor Martin Walser ao receber o "Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães" em 1998, no qual ele externa uma opinião semelhante à sua sobre a instrumentalização do holocausto? Concorda com o ponto de vista dele?

Finkelstein - Sim, acho que ele está correto. De fato, acabei de receber um e-mail de um jovem alemão que afirma que aquilo que eu disse em minha recente visita à Alemanha ecoava o que Walser afirmou. A diferença é que eu sou judeu, de forma que posso me "livrar" do sentimento (da instrumentalização do holocausto).

A exploração do holocausto nazista e a coerção moral da Alemanha, são, francamente, um espetáculo nauseante. É tempo de todos os moralizadores "desses alemães" olharem para o espelho. A imagem não é bonita, se formos honestos conosco enquanto, digamos, norte-americanos.

iG Ler - Você afirma que há poucos historiadores do holocausto -Raul Hilberg seria um deles - com credibilidade. Você acredita que a polêmica gerada por seu livro possa mudar isso?

Finkelstein - Meu livro não pretende ser uma contribuição para o entendimento do holocausto nazista. Há excelentes historiadores trabalhando nesse campo. O propósito de meu livro é expor todas as bobagens que a "educação do holocausto" vem promovendo, que são, na verdade, propaganda pura - uma arma ideológica em uma ação política corrupta.

Fonte: IG
http://www.ig.com.br/paginas/igler/especiais/finkel/entrevista.html

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Vaticano rejeita abertura de arquivos do Holocausto

CIDADE DO VATICANO - O Vaticano rejeitou hoje os pedidos de grupos judaicos pela imediata abertura dos arquivos secretos referentes aos anos do Holocausto durante o papado de Pio XII. A Santa Sé informou que será necessário esperar pelo menos mais seis anos antes que estudiosos possam consultar os arquivos. Historiadores e grupos judaicos exigem há anos a liberação dos documentos.

Líderes judeus e historiadores acreditam que Pio XII esquivou-se demais durante a Segunda Guerra Mundial da missão de salvar judeus da campanha de extermínio promovida por Adolf Hitler na Alemanha nazista.

O porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, qualificou como ''compreensíveis'' os pedidos de consulta aos arquivos secretos da época, mas hoje divulgou comunicado informando que a catalogação dos cerca de 16 milhões de documentos deve durar ainda mais seis ou sete anos.

Fonte: AE/AP - Agencia Estado
http://www.estadao.com.br/internacional/not_int269580,0.htm

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"Ninguém pode imaginar o que é um campo de concentração"

David Moyano: no lenço, as cores da bandeira republicana espanhola

David Moyano lutou contra Franco na Guerra Civil Espanhola, combateu os nazistas com o exército francês na Segunda Guerra e sobreviveu a um campo de concentração alemão. Aos 86 anos, ele recebeu DW-WORLD.DE em Bruxelas.

"Vou usar um distintivo para que você saiba que sou espanhol", dissera David Moyano ao telefone, quando combinávamos um ponto de encontro na estação de trem de Bruxelas. "Não se preocupe, você vai logo ver que sou espanhol", assegurou, quando tentei obter mais detalhes.

Eis que me encontrava na abarrotada estação de Bruxelas, tentando identificar um espanhol no meio da massa de gente. O que distingue um espanhol dos outros? Nos campos de concentração nazistas, era o triângulo azul com um "S" que portavam sobre a camisa do uniforme. "S" de "Spanier", "espanhol" em alemão.

O espanhol ainda tem o lenço azul com o 'S' que indicava sua nacionalidade no campo de concentração de Mauthausen

No campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, onde Moyano ficou entre 1941 e 1945, o emblema salvou sua vida. Acusado de um furto tão insignificante quanto improvável, ele foi espancado pelos SS alemães até ser dado por morto. Inconsciente, foi largado às portas do crematório, um corpo na neve. Alguém viu o "S" em seu uniforme e, percebendo que estava vivo, avisou outros espanhóis. Os compatriotas o resgataram.

David Moyano sobreviveu a Mauthausen. Eu o encontrei, andando pela estação central de Bruxelas, com um lenço no pescoço. Era um triângulo azul com um "S" estampado. Reconheci-o imediatamente.

"Não sou um desertor"

Hoje, David Moyano tem 86 anos e vive em um residência belga para idosos que lhe custa toda a sua pensão, comenta indignado. Da França, ele ainda recebe uma pequena renda pelos tempos que lutou ao lado do Exército na Segunda Guerra Mundial, "e esta é toda para mim". Ele tira do bolso um saquinho de plástico para mostrar seu documento de ex-combatente e sua identidade de deportado político, herança de sua militância durante a Guerra Civil Espanhola. "Não preciso de passaporte. Quando vou à França, mostro isso e basta. Não me fazem mais perguntas", diz, orgulhoso.

Moyano sempre carrega seu documento francês de ex-combatente e deportado político

Moyano e os demais republicanos espanhóis são curiosos heróis que perderam todas as batalhas. Eles foram derrotados na Guerra Civil. Na Segunda Guerra Mundial, ainda que os melhores tenham vencido, a permanência do ditador Francisco Franco no poder fez o gosto de fracasso prevalecer. A Espanha de Franco os despiu de sua nacionalidade por terem lutado contra as tropas nacionalistas. E, no entanto, a convicção de haver arriscado a vida pelo justo e o correto lhes concede a aura de quem triunfou em cada batalha.

"Eu tinha acabado de completar 14 anos quando me alistei no exército republicano. Foi na 118ª bateria, e nos mandaram para o Campo da Bota." Lá deveriam estar forças da União Soviética, que havia se engajado no apoio às tropas republicanas no combate às forças nacionalistas de Franco. Mas os soviéticos já haviam recuado, e a bateria de Moyano foi substituí-los. Os aviões que vinham bombardeá-los tampouco eram espanhóis: eram alemães ou italianos, aliados da guerra de Franco.

A Guerra Civil Espanhola durou três anos, de 1936 a 1939. O apoio que o chamado "Movimiento Nacional" obteve dos regimes fascistas da Alemanha e da Itália era o dobro do apoio oferecido aos republicanos pela União Soviética. Este não foi o único nem o principal motivo, mas os republicanos não puderam defender suas posições. "Eu tinha um tio no governo, e um dia ele me disse que naquela noite eles fugiriam, que eu não deveria voltar à bateria porque os falangistas estavam chegando. Mas eu não sou um desertor."

Da pátria perdida para a luta contra Hitler

O encontro com ex-companheiros na luta republicana foi registrado nesta foto

Mas a guerra estava perdida. David Moyano acabou atravessando a fronteira e se refugiando na França, como tantos outros. "Na França nos disseram: 'os que quiserem juntar-se a Franco, fiquem à direita; os que quiserem ficar aqui, à esquerda.' Os que foram para a direita foram mandados para a Espanha. Já nós ficamos, com a República."

A Segunda Guerra Mundial acabara de começar e o exército francês pediu voluntários para lutar contra a Alemanha nazista. Moyano e seus companheiros ingressaram no Batalhão Alpino. "Fomos para a montanha construir uma estrada militar e tínhamos que ir até a fronteira com a Itália. Ha ha ha! Aquilo era o máximo! Éramos todos jovens e valia a pena fazer tudo aquilo."

Após a queda da Linha Maginot, os nazistas ocuparam a França

"Mas então nos mandaram para a Linha Maginot." A Linha Maginot deveria proteger as fronteiras francesas, mas quando foi quebrada pelos nazistas, em 1940, o caminho para Paris ficou escancarado. "Estávamos rodeados. Nosso capitão disse 'salve-se quem puder', e nós, que éramos só algumas dúzias, fugimos para a montanha. Acho que eu me tremia dos pés à cabeça de medo dos alemães."

Na Linha Maginot, Moyano e seus companheiros foram aprisionados. No dia 25 de janeiro de 1941, eles foram deportados para o campo de concentração Mauthausen, perto da cidade de Linz, na Áustria. "Eu me lembro bem, porque o dia que nos fizeram ir à estação e disseram que não tínhamos que levar nada porque nos dariam roupas no lugar para onde iríamos, era meu aniversário."

Em casa, o passado do campo de concentração nas paredes

David Moyano entre as recordações do passado que guarda em casa

"Rendezvous", escreveu Moyano no calendário, marcando o dia para o qual nosso encontro estava marcado. O "rendezvous" era eu. Custa-lhe lembrar as coisas atuais; a memória, ele a guarda para não se esquecer do passado. No presente, Moyano vive com sua mulher num asilo, num pequeno apartamento. Um banheiro, uma pequena cozinha, uma sala e um quarto de dormir. A porta que dá para o corredor está sempre aberta, e por lá circula sem cessar um exército de enfermeiras.

A casa de Moyano parece um museu de Mauthausen. Em cada canto há uma foto, um recorte de jornal, um livro sobre o campo de concentração. Ele passou quatro anos em Mauthausen, que ficou conhecido como "o campo dos espanhóis". Sete mil de seus compatriotas foram deportados para lá. Mais de 4.300 morreram. "Ninguém pode imaginar o que é isso", diz, e conta histórias que mostram o quão dramáticos podem se tornar o frio e a fome.

A escada da morte: os prisioneiros carregavam blocos de pedra por seus 186 degraus e 31 metros

Os nazistas escolheram aquela região para construir Mauthausen, conta ele, porque "a pedra lá era boa". Os presos extraíam granito de uma pedreira, e a rocha era então usada para recobrir ruas de Viena e de cidades alemãs. Com os blocos de pedra nas costas, eles subiam a escada da morte: 31 metros e 186 degraus. Os SS se divertiam ao fazê-los cair.

"Eu sobrevivi ao campo porque era jovem, e porque não passei todo aquele tempo na pedreira", diz Moyano. Quando as tropas norte-americanas libertaram Mauthausen, em 5 de maio de 1945, ele já não trabalhava no campo. Alguns presos eram enviados a fábricas vizinhas para servir de mão-de-obra gratuita.

"Estou morto para a Espanha"

Heinrich Himmler, comandante-chefe das SS, em visita a Mauthausen

"Depois da guerra, fomos obrigados a ir para a França", lembra Moyano. "Lá nos trataram bem, fomos atendidos por médicos. Eu tinha perdido alguns dentes nas derrotas e tinha sido operado de uma úlcera em Mauthausen. O médico me perguntou onde eu tinha sido operado, e eu respondi que no campo de concentração. Ele já não disse mais nada."

O médico certamente terá pensado no mau hábito nazista de fazer experimentos médicos com presos no campo de concentração. Mauthausen ficou especialmente conhecido por esta prática.

Moyano guarda livros e fotos sobre Mauthausen; na foto, um preso sendo levado para a execução

Depois da Segunda Guerra Mundial, a França se encarregou da maior parte das vítimas espanholas do nazismo. A Espanha, que não havia feito nada para impedir o envio de seus cidadãos para campos nazistas, aprovou, em 1951, um decreto que os despia definitivamente de sua nacionalidade espanhola. Os afetados foram todos aqueles que haviam sido deportados, ou os que haviam lutado com os exércitos aliados na Segunda Guerra e as chamadas "crianças da guerra" – os menores que a República havia mandado para fora do país durante a Guerra Civil Espanhola para que permanecessem a salvo.

Recuperado de seus anos no campo de concentração, Moyano se mudou para a Bélgica, onde enfim teve tempo para aprender a ler e a escrever. Hoje, é eletricista aposentado e cidadão belga. Na Espanha, as leis que anularam sua nacionalidade permanecem vigentes. "Da Espanha, não espero nada", diz. "Estou morto para eles."

Luna Bolívar Manaut (jc)

Fonte: Deutsche Welle
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,3649025,00.html

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Israel critica intenção da Igreja de beatificar papa Pio 12

Pio 12: silêncio sobre o Holocausto

Beatificação de Pio 12 causa indisposição entre o Vaticano e Israel, devido à controversa atuação do papa durante o Holocausto.

No Memorial Yad Vashem, em Jerusalém, no chamado "Salão da Vergonha", há uma foto de Pio 12 (1939–1958). Um quadro de informações chama a reação do então papa ao assassinato de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial de "controversa".

"Mesmo quando notícias sobre a morte dos judeus chegaram ao Vaticano, o papa não protestou, nem de forma verbal nem escrita. Em dezembro de 1942, ele optou por se distanciar, não assinando uma declaração dos Aliados na qual se condenava o extermínio dos judeus. Quando os judeus foram deportados de Roma para Auschwitz, o papa não fez nada", pode-se ler entre as informações disponíveis.

Beatificação inaceitável?

No mais tardar desde o convite do presidente Shimon Peres ao papa Bento 16 para que este visitasse Israel, debate-se publicamente a respeito do papel desempenhado por Pio 12 em relação ao Holocausto. A discussão se torna ainda mais acirrada quando se fala em beatificar o referido pontíficie. Isaak Herzog, ministro israelense de Assuntos Sociais, afirmou na última sexta-feira (24/10), em entrevista ao jornal Haaretz, que a beatificação é "inaceitável".

Registro oficial dos prisioneiros de Auschwitz, no Museu Yad Vashem

"Depois de uma audiência com este papa, em Roma, meu avô sentiu necessidade de uma mikvá [banho ritual judaico de purificação]", diz Herzog, neto do primeiro rabino-chefe de Israel, que se encontrou com Pio 12 em 1943, numa tentativa fracassada para pedir que o papa intercedesse em prol da salvação de judeus húngaros.

Abertura de arquivos

O Vaticano revida as críticas, afirmando que o assunto é de ordem interna da Igreja Católica e não de interesse público. O padre Peter Gumpel chegou a declarar à imprensa italiana que Bento 16 não poderia visitar Israel antes que a foto de Pio 12 e os comentários sobre ele fossem retirados do Memorial Yad Vashem. Segundo ele, seria difícil para os católicos saber que Bento 16 estaria visitando um museu "onde um de seus antecessores é difamado injustamente". Gumpel, por sua vez, está envolvido no processo de beatificação de Pio 12.

Dan Michmann, especialista israelense em questões ligadas ao Holocausto, ressalta que "se a Igreja Católica beatificar Pio 12, o problema não será nosso". Michmann, no entanto, exige, neste contexto, que o Vaticano abra completamente seus arquivos. "Somente um acesso irrestrito a toda a documentação do período poderia influenciar os resultados das pesquisas feitas até agora sobre o assunto", completa.

Um papa que se calou?

Uma das razões da atual discussão é a publicação de uma pesquisa sobre Pio 12 e seu suposto silêncio frente ao extermínio dos judeus. Dois historiadoes italianos esclarecem, a partir de documentos britânicos, que Pio 12, em 1943, fez declarações que demostravam sua indiferença em relação à então iniciada deportação dos judeus de Roma.

Memorial Yad Vashem: lembrança às vítimas do Holocausto nazista

Esses documentos, revida Gumpel, já são há muito conhecidos e foram desmentidos. Além disso, Gumpel afirma que o encontro a que se refere a documentação aconteceu dois dias antes da invasão do gueto de Roma pelas tropas nazistas SS e não dois dias depois.

Pontificado controverso

Um grupo de teólogos católicos e membros do grupo Diálogo Cristão-Judaico defende uma interrupção no processo de beatificação de Pio 12. Um documento assinado por nove professores universitários dos EUA, Reino Unido e Bélgica lembra que o pontificado de Pio 12 desencadeou "controvérsias consideráveis".

Segundo os especialistas, o papa condenou os efeitos da guerra para as vítimas inocentes, não tendo, porém, citado diretamente a perseguição dos judeus. Os professores ressaltam a necessidade de que o Vaticano libere o acesso a mais documentos, a serem analisados pelos "melhores pesquisadores desta área".

Por ocasião dos 50 anos de morte de Pio 12, o atual papa Bento 16 defendeu a continuação do processo de beatificação de Pio 12, iniciado nos anos 1960. O decreto final que beatifica o ex-papa ainda se encontra nas mãos de Bento 16 para ser assinado. (bb / sv)

Fonte: Deutsche Welle
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,3745119,00.html

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...