Entrevista com o investigador Filipe Ribeiro de Meneses
"Mais perto do vício do que da virtude"
O autor da primeira biografia académica de Oliveira Salazar defende que o ditador se considerava o português mais capacitado para governar
Filipe Luís
No livro, parece defender que a principal prioridade de Salazar era manter-se no poder. Como explica a ideia do "sacrifício pessoal", as suas vacilações no cargo?
Não encontrei nada que me fizesse acreditar que Salazar alguma vez pensou a sério, e desejou, sinceramente, retirar-se da cena política, e sobretudo da Presidência do Conselho de Ministros. Teria feito todo o sentido, do ponto de vista da evolução do regime, a sua eleição à Presidência da República após a morte de Carmona: seria a demonstração cabal de que o regime era mais do que só Salazar. Mas Salazar travou essa eleição porque significaria a sua marginalização - isto depois de quase duas décadas a proclamar o desejo de se afastar de São Bento... Havia, parece-me a mim, uma enorme encenação a este respeito.
Mas é credível a tese do "sacrifício"?
Não mais nem menos do que o que sucede com outras figuras políticas - e Salazar era mais dono do seu tempo do que qualquer seu sucessor o conseguiu ser. Não tinha de comparecer perante o parlamento; raramente reunia o Conselho de Ministros; não se tinha de preocupar em manter a liderança partidária; não tinha de ir a Bruxelas semana sim, semana não... Tinha a vida que queria, e trabalhou como quis. Idealizou uma forma de governar e foi-lhe sempre fiel.
O poder era o seu "oxigénio", viciou-se nele, ou devemos acreditar na tese do espírito de missão?
Salazar desejava o poder, e convenceu--se de que governaria melhor do que qualquer outro português. Estou convencido de que ele acreditava ser (ou que a certa altura acreditou ser) uma figura providencial. Reprimiu quem reclamasse uma alternativa ao regime, mas travou a evolução desse mesmo regime para se proteger, impossibilitando assim o que sempre disse desejar - passar alguns anos antes da morte no Vimieiro, longe da política, tratando do seu jardim. Parece-me assim estar mais próximo do vício do que da virtude.
Nunca assumiu uma relação ou um casamento por deveres do Estado? Ou os compromissos afetivos assustavam-no?
A primeira explicação sempre me pareceu disparatada. Mas isso não quer dizer que a segunda seja correta. Parece--me mais simples dizer que organizou a vida como quis, subalternizando a vida emocional à carreira profissional.
Estabelece uma diferença entre Estado Novo e salazarismo. Qual é ela, tendo em conta que o Estado Novo, praticamente, não sobreviveu a Salazar?
Parece-me que o salazarismo - a fidelidade à pessoa de Salazar - era uma das muitas correntes que existiam dentro do Estado Novo. Este foi a continuação de uma ditadura militar em que vários movimentos combatiam pela supremacia ideológica, não desaparecendo automaticamente com a ascensão ao poder de Salazar. Havia republicanos conservadores, fascistas, monárquicos, católicos... e, pelo meio, oriundos destes setores e até de outros, surgiram os salazaristas. Mas não era fácil ser salazarista: o líder aparecia pouco, falava menos, e não gostava da palavra "salazarismo". O líder não queria deixar-se prender por um programa detalhado, e desconfiava de quem o quisesse seguir a todo o custo... Se o Estado Novo mal sobreviveu a Salazar não foi devido ao enorme vazio que este deixou e que Marcelo Caetano não conseguiu colmatar - foi porque, graças à guerra colonial, Salazar deixou o regime numa situação impossível de resolver.
Encontrou um Salazar-ser humano versus um Salazar-estadista? Ou as duas faces confundem-se?
As duas faces confundem-se. Se Salazar tem dúvidas sobre o caminho a seguir, estas são passageiras e apenas confiadas a um número muito reduzido de interlocutores. O professor de Direito - ou o católico - parece preocupar-se pouco com os poderes da PVDE/PIDE, com o que se passa no Tarrafal, com o assassinato de Humberto Delgado. O homem que se orgulhava de ter "nascido pobre" é insensível à pobreza extrema que se encontra no País, ou à emigração que a política económica dos seus governos provoca. Nunca visitou as colónias mas não duvidava do caminho traçado quanto à preservação do Ultramar.
Defende que Salazar estava convencido de que o seu regime era o mais apropriado à índole do povo português. Tendo em conta a longevidade do Estado Novo, esta tese não estaria certa, pelo menos no seu tempo?
Mas - justamente - qual é o seu tempo? São os anos Trinta, Quarenta, Cinquenta ou Sessenta? Qual é o verdadeiro Estado Novo? O segredo da longevidade do regime reside na sua capacidade de resposta e de evolução, acompanhando, de forma distorcida e sempre com algum atraso, o que se passa no resto da Europa. Salazar está no centro da teia, e luta por lá se manter, mas as prioridades do regime mudaram constantemente, porque os intervenientes também mudaram. Salazar quis, e conseguiu, ir renovando a sua elite ministerial de forma a evitar a cristalização do Estado Novo.
Há quem diga que, se Salazar se tivesse submetido a eleições livres, as teria ganho. Faz algum sentido?
Custa a crer, seja na realização de eleições livres em Portugal antes de 1974, ou na capacidade de Salazar de as ganhar. Mas uma coisa era votar contra Salazar dada a oportunidade de o fazer livremente - muitos o teriam feito - e outra bem diferente era lutar para que essas eleições se realizassem. Foram poucos os que o fizeram.
A faceta das violências, da repressão e dos crimes do regime não está relativamente desvalorizada no seu livro? Ou deve-se isso a um esforço de distanciamento político?
Não gosto do termo "desvalorizado".
A repressão existiu, e os crimes foram cometidos. Mas não escrevi uma história do Estado Novo - escrevi uma biografia política do seu líder. E por isso tentei transmitir no livro o distanciamento que Salazar criou entre essa repressão e a sua pessoa. Precisava dela para se manter no poder, mas não queria conhecer os detalhes do que se passava no Aljube ou em Caxias. Quando lhe chegava às mãos uma queixa precisa sobre o mau tratamento de presos políticos, pedia esclarecimentos ao diretor da PIDE - que obviamente dizia que as queixas eram injustas - e o caso morria aí. Era como a pobreza: denúncias da situação em que muitos portugueses viviam chegavam às mãos de Salazar, mas este não reagia. Era extremamente frio.
Dois dos períodos mais importantes do regime foram as guerras de Espanha e Mundial. Nota-se, no livro, um certo fascínio pela forma como Salazar se desenvencilhou nesses períodos...
Sem dúvida. Foi um esforço enorme, possível apenas graças a uma tenacidade e uma força de vontade singulares, impressionantes até. Trabalhou sob uma pressão constante durante quase dez anos. No entanto, temos de nos lembrar que muitas das decisões tomadas (a começar pelo apoio dado aos militares espanhóis em 1936) foram guiadas pelo desejo de salvaguardar o regime e, por isso mesmo, a posição do próprio Salazar: era isto depois apresentado como o verdadeiro interesse nacional.
Foi o homem certo no lugar certo durante a II Guerra Mundial? Teve aí ocasião para revelar o seu génio?
Revelou o seu génio (especialmente no que toca a Espanha durante a II Guerra Mundial), mas também as suas limitações. Demorou demasiado tempo a entender a fraqueza estratégica da Alemanha e as vantagens de que dispunha a Grã-Bretanha. Desta demora resultou, em parte, o desentendimento com Armindo Monteiro. Por outro lado, não parece ter entendido o funcionamento da Alemanha nazi. Convencido da paixão alemã pela eficiência, pela sistematização e pela uniformização, Salazar não se apercebeu da falta de nexo e de lógica que caracterizavam a política de guerra alemã. Vendo em Hitler um político tradicional, Salazar parece ter acordado demasiado tarde para o que aconteceria quando à política racial dos nazis se juntasse à necessidade de vencer uma guerra mundial. O facto de Salazar nunca ter denunciado o Holocausto, mesmo depois de finda a guerra, conta contra ele.
Tinha mesmo prestígio e notoriedade internacionais (sobretudo nos anos 30 ou 40) ou essa ideia resulta mais da propaganda do Estado Novo?
Salazar tinha mesmo prestígio. Não há dúvida que os mercados financeiros o admiravam. Os elogios feitos pelo Times ao ministro das Finanças português a partir de 1928 são disso testemunha. Por outro lado, a Europa dos anos Trinta estava a evoluir em direcção à extrema-direita, mas não o estava a fazer como um bloco unido: e nem todos os que pensavam que a era dos regimes parlamentares tinha acabado desejavam ser governados por demagogos como Hitler e Mussolini, ou generais brutais como Franco. Salazar aparecia como um modelo a seguir, sobretudo no mundo Católico. O seu passado profissional funcionava como uma garantia do seu valor, da sua modéstia e da sua moderação. Porém, quando se escrevia sobre ele, ou sobre Portugal, no estrangeiro, era com base nas publicações do Secretariado de Propaganda Nacional, o que criava uma imagem falsa da realidade portuguesa, sobretudo do corporativismo nacional.
Nota-se uma fractura entre o ante e o pós-guerra, no regime e na própria energia de Salazar. Salazar deixou de acreditar em si e no país?
É muito difícil falar sobre este período da vida de Salazar. Por um lado não deixou de trabalhar; consultamos os seus diários e vemos que ele continuou a receber pessoas, a rever legislação, a exercer a tutela habitual sobre a administração do país. Por outro lado, porém, quem o conhecia melhor estava espantado, ou mesmo assustado, com a sua condição física. Parece-me que a crise teve a ver com a dificuldade em ler o que se iria passar no mundo e, por consequência, em Portugal. Haveria guerra com a União Soviética? Qual o papel dos comunistas nos governos francês, belga e italiano? Sobreviveria Franco à enorme pressão internacional a que estava sujeito? Recuperaria a economia europeia? Qual o papel dos impérios coloniais num mundo dominado por soviéticos e norte-americanos (sobretudo após a independência da Índia)? O Estado Novo tinha demonstrado as suas limitações durante a guerra, e a contestação popular tinha aumentado. Salazar precisava de paz e de estabilidade, precisava de saber com o que contava no resto do mundo. Uma vez definida a situação internacional, o estado de espírito de Salazar melhorou.
O que pensava Salazar dos portugueses?
Salazar queixava-se sobretudo da falta de elites que o ajudassem a governar; muitos dos que tinham a educação necessária não eram politicamente aproveitáveis (e note-se que Salazar admitia a posições de responsabilidade pessoas oriundas de passados políticos bem distintos). No fundo era uma visão nacionalista e contrarrevolucionaria clássica: um povo rude mas bom, mal servido por uma elite politiqueira, dividida em fações inúteis e estéreis, incapazes de pensar no bem comum.
De episódios que o senhor descreve nesta obra podemos concluir que era Salazar detentor de um fino e inteligente sentido de humor?
Absolutamente. São extremamente divertidos os comentários trocados com o Secretário-Geral do MNE, Embaixador Teixeira de Sampaio, sobre Nicolás Franco, irmão e Embaixador do ditador espanhol em Lisboa. Mas, em geral, só alguns eleitos tinham contacto directo com este sentido de humor. Mesmo assim, por vezes o público tinha acesso a esta faceta de Salazar - veja-se, por exemplo, os artigos escritos no jornal Novidades durante a ditadura militar, em que Salazar criticou a obra financeira do General Sinel de Cordes de forma acessível a todos.
A ideologia ruralista, o medo do cosmopolitismo, do desenvolvimento, da prosperidade económica, faz de Salazar um asceta, um ecologista prematuro ou um provinciano de horizontes limitados?
Salazar era nacionalista, mas tinha pouca fé no seu país, sobretudo na capacidade de sobrevivência de Portugal se completamente aberto a influências estrangeiras. Pensava, como muitos nacionalistas (não só portugueses) que a população urbana estava atingida por um cosmopolitismo prejudicial. Mas Portugal nunca foi uma fortaleza do isolacionismo, nem mesmo nos anos Trinta - e nos anos Cinquenta e Sessenta sofreu transformações importantes na sua estrutura económica e no seu relacionamento com o resto da Europa. Salazar era cauteloso, mas não era, regra geral, dogmático. E onde ir buscar as elites de que tanto precisava para administrar o país e as colónias senão às cidades?
As observações de Salazar sobre o destino de um Portugal sem colónias, com cedências de soberania, estão de alguma forma confirmadas pela atualidade?
Passamos aqui da História para a política. Mas parece-me que a resposta à sua pergunta é 'não' - e isto porque Salazar conduziu o País - mas sobretudo o regime - para um beco sem saída por causa das colónias. Era impossível, como Marcelo Caetano depressa constatou, transformar o Estado Novo em algo mais aceitável domestica e internacionalmente quando se continuava a combater em África, quando era necessário o apoio de Pretória e de Salisbúria e quando a situação interna se estava a radicalizar. O "orgulhosamente sós" foi muito mais perigoso para a soberania nacional, e o papel de Portugal no mundo, do que qualquer outra política desde então seguida. Após o 25 de Abril e o PREC, a integração europeia deu um novo fôlego a Portugal, permitindo que o País se reinventasse após a queda dos mitos salazaristas e revolucionários. O que a União Europeia não fez, claro, foi transformar Portugal num país rico, e por isso as dificuldades financeiras de que Salazar beneficiou para se tornar parte imprescindível da ditadura militar a partir de 1928 continuam a atormentar a nossa vida nacional, 80 anos depois...
Salazar continua vivo e influente? O que subsiste e o que desapareceu?
O interesse em Salazar e no Estado Novo, que é enorme, não deve ser confundido com saudade do regime; é sobretudo o desejo natural de entender as especificidades do caso português, de tentar entender por que somos como somos (embora me pareça, após ter escrito o livro, que temos a tendência de exagerar o papel de Salazar neste processo: as nossas qualidades e os nossos defeitos, assim como alguns dos problemas que se nos atravessam pela frente são bem anteriores ao Estado Novo). Porém, nem todos os que tentam ir ao encontro deste interesse sobre o passado o fazem isentos de fins políticos. Quero dizer com isto que a memória de Salazar e algumas das suas características pessoais (o cuidado com os dinheiros públicos, por exemplo) são usadas como armas de arremesso ideológicas contra a "situação" atual. Quarenta anos depois da sua morte, pouco parece restar da obra de Salazar, porque Portugal seguiu um caminho bem diferente do por ele desejado. Mas se a I República não marcou um novo começo para Portugal e se o Estado Novo guardou muito da I República, parece-me lógico partir do princípio que o corte entre Estado Novo e o regime atual não foi total.
Fonte: Visão(aeiou, Portugal)
http://aeiou.visao.pt/mais-perto-do-vicio-do-que-da-virtude=f570269